sexta-feira, 12 de setembro de 2025

A principal égide de crescimento humano reside na capacidade de lidar e enfrentar à maldade

 A bondade e a maldade estão presentes em todos os seres humanos, o mal ocupa espaços quando há a ausência do bem. Quem viveu ou vive em ambientes carregados de adversidades e conflitos exalará a maldade de forma mais intensa do que a bondade, e aqueles que viveram ou vivem em ambientes de harmonia e cooperação, serão preponderantemente bondosos. O mal emerge naqueles corações onde a virtude não é construída e conquistada, enquanto o bem é aquilo que dá sentido e unidade a todos as ideias humanas, fomentando um senso de justiça e verdade que dá coesão a nosso convício coletivo, o que é o maior dentre todos os seus propósitos.

Há bastante sinergia e convergência entre o que quase todas as sociedades historicamente aprenderam e observaram sobre este tema. Tanto nas filosofias que emergiram e fomentaram o pensar no Ocidente quanto no Oriente - nos embriões do pensamento na Grécia e na Índia - as sociedades humanas entenderam que a bondade é um reflexo de uma progressiva aproximação de contemplação do conhecimento e da verdade, como um princípio unificador da ordem e facilitador da harmonia de convívio em grandes grupos humanos, representando em si uma estratégia de sobrevivência da vida humana que alinha as nossas naturezas animal e civilizatória. Onde há estas sementes de bondade e harmonia coletiva, de respeito e amor pelo próximo e pela própria vida humana como um todo, aumentam as dificuldades para sobrar espaços através dos quais germinará a maldade.

Ainda assim, ela surgirá sempre, porque está profundamente presente na essência humana, e por isso todos tem que saber que precisarão confrontá-la ao se deparar com ela. Quando nos deparamos com a maldade, o que a história toda nos indica é que não pode haver indiferença. Há que se encontrar os melhores meios possíveis para confrontá-la e não permitir que suas sementes germinem, cresçam e se multipliquem.

A filosofia do Oriente recomenda uma linha específica de enfrentamento à maldade. No Hinduísmo, por exemplo, o enfrentamento da maldade humana se relaciona aos conceitos de karma e dharma, e a sua superação é encontrada no que é chamado em sua filosofia como autotranscendência. Trata-se de um estado de desenvolvimento espiritual interior que proporciona proteção perante a maldade alheia, um estado no qual se atinge um pleno equilíbrio emocional e espiritual.

O karma se refere à relação entre as ações humanas e as suas respectivas consequências. Neste conceito, a forma mais comum de manifestação do mal é vista como como o reflexo de um acúmulo de energias geradas por ações negativas que cada um acumulada ao longo da vida. As consequências deste acúmulo emergem através de devoluções de tais energias que retornam na forma como tudo ao redor é refletido também negativamente. Assim como tudo no universo físico, trata-se de uma relação de ação e reação. Tudo ao seu redor vai te devolver as vibrações negativas, porque se você está com um acúmulo de mais sentimentos negativos entregues às pessoas, aos outros animais e a todas as coisas que te cercam, tudo isto te entregará energias negativas de volta.

Como tudo é revertido? Com o equilíbrio definido como dharma, que se refere ao conjunto de deveres éticos e morais que cada um deve seguir na sociedade de acordo à individualidade de sua própria natureza humana. Só há equilíbrio frente ao karma que cada um acumula em sua vida quando o ser humano segue um caminho consciente de geração de boas ações, reduzindo o estoque de efeitos de todas as ações negativas passadas acumuladas.

Encontrar o seu dharma é o caminho de combate à maldade, encontrando a harmonia interna, de purificação da própria alma (associado na filosofia ocidental ao coração, que é a essência do sentimento humano de cada pessoa), obtendo equilíbrio frente a tudo que está ao seu redor, cooperando para a manutenção da ordem de convívio coletivo, e produzindo justiça nas relações sociais humanas.

Já o Budismo carrega uma doutrina cujo entendimento é muito parecido, no qual a maldade deve ser tratada por meios que façam crescer a sabedoria e a compaixão tanto dentro de si quanto nas relações sociais de convívio coletivo. Para os budistas, a maldade é tida como um reflexo da ignorância e do apego excessivo ao mundo material, com ela sendo uma consequência de três raízes do mal que partem da ignorância (avidya), gerando o apego (raga) e o ódio (dvesha), de forma que todas as pessoas precisam enfrentar e domar estas três raízes dentro de si para poder assim enfrentar e se livrar da maldade.

Ambas as visões, do Hinduísmo e do Budismo, são linhas de pensamento que defendem que não se combata a maldade com vingança ou com ódio, mas com ações virtuosas, recomendando que a maldade seja vista com compaixão, pois ela nada mais é do que a manifestação física de uma alma presa num ciclo de sofrimento. Assim, em vez de retaliações, esta deve ser enfrentada com práticas da paciência e compreensão, sendo a maldade vencida através da eliminação de sentimentos negativos como raiva, orgulho e ganância. Assim, recomenda que a maldade humana seja enfrentada de uma maneira compassiva e espiritual, cultivando compaixão e buscando no conhecimento os meios para transcender à ignorância e alcançar harmonia.

O exemplo histórico que pode ser considerado o ápice desta forma de pensar no contexto da história humana foi materializado por Mohandas Karamchand "Mahatma" Gandhi, quem defendeu a doutrina da satyagraha na luta de independência da Índia frente a Inglaterra no Século XX. A filosofia sustentada por detrás da satyagraha se sustenta na composição desta palavra no idioma hindi, a qual significa: "firmeza no caminho e na verdade". Seu conceito é o de que, acima de tudo, há que se insistir sempre na verdade, pois ela sempre prospera. Satya significa "verdade", e agraha significa "insistência educada". Ou seja, trata de insistir constantemente na verdade de um modo pacífico e educado para se alcançar aos objetivos almejados.

Assim, Gandhi embasou uma filosofia política de que a verdade e a não-violência caminham sempre juntas, e a persistência neste caminho é a única a produzir dignidade humana em favor da verdade. É um princípio que consiste no inverso da resistência bélica através da luta armada, defendendo que os direitos devem ser conquistados através de sofrimento e de formas de resistência pacífica.

Só que nem sempre este caminho é suficiente para superar a maldade imposta pela humanidade. Na história já aqui contada da guerra entre os povos maori e moriori, na Oceania, não havia solução pacífica. Muito pelo contrário, a opção por não lutar foi justamente a causa da destruição e da maldade avassaladora a eles levada pela guerra. Da mesma forma, os povos subjugados e escravizados pelo Reino de Ajudá, na África, nunca tiveram a opção de não lutar, pois eram atacados por soldados hábeis no uso de mosquetes e outras armas de fogo fornecidas por traficantes europeus, as quais fizeram com que um reino com apenas 100 mil habitantes conseguisse escravizar 20 mil seres humanos por ano. Os povos inca e asteca também não teriam, através desta estratégia, tido sucesso e revertido seus destinos de acabarem subjugados pelos conquistadores europeus.

Ter a capacidade de enfrentar e superar a maleficência é um processo catalisador, um acelerador, do crescimento individual humano. É por isso que o mal existe, porque quando obtemos ensinamentos ao lidar e vencer os desafios por ele nos impostos, através de uma busca interior profunda de conhecimento interior para seguir adiante livres dos traumas e das marcas deixadas, evoluímos em espírito e nos tornamos mais fortes. A principal égide do crescimento humano reside na capacidade de lidar e enfrentar a maldade!

Essa afirmação encontra respaldo em várias vertentes da psicologia, assim como na história evolutiva coletiva da humanidade. A maldade deve ser entendida não apenas como atos intencionais de prejudicar a alguém, mas como toda a adversidade, todos os conflitos e todos os desafios inerentes à existência do ser humano, desempenhando um papel fundamental para o desenvolvimento psicológico, social e moral de cada um dos indivíduos ao longo da história humana.

É se enfrentando ao caos que se cria a ordem. Forças destrutivas como a escravidão, as guerras e os grandes desastres naturais, todos grandes fatores de sofrimento, foram até aqui superados um a um, e levaram a humanidade a prosperar a partir do que foi aprendido em cada um destes processos, impulsionando a criação de sistemas de proteção, cooperação e justiça, e assim semeando prosperidade. A enorme capacidade humana de se adaptar e de se superar sempre esteve fortemente correlacionada a uma luta frequente de enfrentamento de forças adversas.

Psicologicamente, o enfrentamento da maldade é o que molda os nossos instintos e as nossas emoções, transformando o medo em coragem e resiliência. Foi lidando com conflitos e processos traumáticos, e celebrando triunfos sobre adversidades, que a humanidade desenvolveu seus valores e seus laços coletivos. A nível individual, o enfrentamento da maldade — seja ela manifestada em traumas, perdas, injustiças ou falhas internas — é essencial para o crescimento emocional e psicológico.

Todos os indivíduos possuem um lado oculto, composto por impulsos, emoções e características que carregam maldade. Ignorar a isto resulta em estagnação. Enfrentar e superar a isto é o que promove a verdadeira individuação! A resiliência e a capacidade de se recuperar e crescer após adversidades é um dos traços mais importantes para o bem-estar psicológico. O enfrentamento de dificuldades promove o desenvolvimento de habilidades de autocontrole, empatia e até criatividade, fortalecendo o ser humano e expandindo as suas perspectivas, levando-nos a compreender melhor aos outros e ao mundo ao nosso redor.

Lidar com a maldade — em si mesmo e nos outros — força que você questione a tudo e busque soluções que beneficiem não apenas a si mesmo, mas também a comunidade a qual você está imerso. Este crescimento moral está ligado à empatia e ao altruísmo, ajudando a encontrar o propósito de vida. A maldade, por mais desafiadora que seja, é uma força inevitável na existência humana. Enfrentá-la é o que proporciona crescimento. Confrontando-a, somos levados a desenvolver resiliência, compaixão e sabedoria. Por isto, a maldade, por mais dor que proporcione, é parte do processo de evolução humana.

A principal égide de crescimento humano reside na capacidade de lidar e enfrentar à maldade. Foi assim na evolução da história da humanidade, e é assim na história de evolução e crescimento na vida de cada um de nós.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

A humanidade e a sua capacidade já demonstrada de ser abominável e extremamente cruel

Durante séculos intelectuais da humanidade se debruçaram em reflexões visando responder a uma pergunta: os seres humanos são inerentemente bons ou inerentemente maus? Tais reflexões levaram a uma divisão política de pensamentos em duas correntes, uma que entendia que o ser humano nasce puro, e é a sociedade quem o corrompe, enquanto outra argumentou que o ser humano ao vir ao mundo em seu estado puramente animal nasce bruto e cruel, e é a sociedade quem o corrige.

A própria divisão em duas visões completamente antagônicas sobre a possível resposta já é um sinal em si de que tal embate ideológico envolve conceitos criados pelo próprio ser humano para fazer comparações entre uns e outros. Faz parte de nossa natureza social construir balizamentos de referência cujo âmago é única e exclusivamente comparativo. Discutir se os seres humanos são bons ou maus em sua essência faz tanto sentido quanto discutir se os seres humanos são naturalmente gordos ou magros. Não há uma essência ou inerência, a ambiguidade e a variedade são parte vital da característica humana desde sempre!

Tanto a bondade quanto a maldade se fazem presentes dentro de cada um de nós, prontas para serem externalizadas em favor da autodefesa frente às condições enfrentadas no ambiente ao qual se está imerso. Naqueles ambientes carregados de adversidades e conflitos, o espírito maldoso emerge como mecanismo de defesa individual em favor da sobrevivência, enquanto naqueles envoltos por harmonia e cooperação, o espírito bondoso aflora como construtor de laços sociais de fortaleza na forja de coesão e sinergia do grupo.

Em meio a tais vetores manifestados por esta essência do espírito humano, a bondade sempre surgiu como fator agregador de construção de crescimento coletivo, enquanto a maldade sempre foi vetor de ruptura e afastamento. Enquanto uma é geradora de união, a outra é produtora de isolamentos. E tanto para o caso de uma quanto de outra, não há resposta certa na forma de cada um lidar, sendo a única opção o aprendizado para fazer as melhores escolhas que potencializem fatores agregadores e geradores do crescimento individual, e mitiguem os efeitos danosos de desagregações e rupturas.

Entre os dois extremos, não há dúvida que o mais difícil para todos é aprender a lidar e enfrentar à maldade, e saber minimizar os seus potenciais danos. A história da humanidade nos mostra o quão danoso e perverso o ser humano pode ser em suas relações sociais. E há um fato em especial na história que se destaca como o extremo de até onde a maldade humana pode chegar...

A escravidão existiu desde o início da história da humanidade. Suas chagas já estavam presentes nos mais antigos registros escritos da humanidade. Em documentos antiquíssimos como o livro do Gênesis, no Antigo Testamento da Bíblia, é narrada a venda como escravo de José, um dos filhos de Jacó, vendido por iniciativa dos próprios irmãos. O Código de Hamurabi, considerado o primeiro conjunto de leis da história humana, dividia a sociedade em três grupos: homens livres proprietários de terras, funcionários públicos e escravos. Estes são exemplos de como a perversidade desta prática é tão antígua quanto a nossa própria história civilizatória o é. E se a escravidão estava presente já nos primeiros registros existentes, é sinal que era prática que se remetia a tempos mais longínquos na história dos sapiens, sem que se possa definir qualquer data para quando ela teria sido iniciada.

O uso de mão de obra cativa foi alicerce de todas as antigas civilizações, incluindo a egípcia, a grega e a romana, em diferentes escalas também foi um dos principais negócios tanto dos vikings, na Escandinávia, como em povos pré-colombianos nas Américas, como o inca e o azteca. Também assegurou a prosperidade de Gênova, Florença e Veneza no auge do Renascimento. Até grandes intelectuais humanistas como John Locke, pensador originalmente responsável pelo conceito de liberdade na história do Ocidente, foi um dos acionistas da Royal African Company, empreendimento criado com o único propósito de traficar escravos. Não há uma única região do planeta que não tenha abrigado em algum momento de sua história passada a escravidão!

Escravo, em português. Esclave, em francês. Schiavo, em italiano. Sklave, em alemão. Slave, em inglês. Todas estas palavras são derivadas em seus respectivos idiomas da palavra em latim slavus que, por sua vez, servia para designar os eslavos, habitantes da região dos Bálcãs, do Leste da Europa e sul da Rússia, às margens do Mar Negro. Esta região foi a grande fornecedora de mão de obra cativa para o Oriente Médio e o Mediterrâneo por muitos séculos.

Presume-se que, no auge da civilização grega, 70 mil dos 155 mil habitantes da cidade de Atenas eram cativos, ou seja um pouco menos da metade de sua população. A escravidão era norma padrão. Também se presume que haveria meio milhão de escravos em Roma na mesma época na qual Jesus Cristo viveu em Jerusalém. Mais adiante, por volta de 740 d.C., cerca de cem anos após a morte do profeta Maomé, uma série espetacular de conquistas muçulmanas criou um extenso domínio intercontinental indo desde onde hoje é o Paquistão até onde é o Marrocos, passando por todo o Oriente Médio, pelo sul de França, Espanha e Portugal, e ocupando todo o norte da África. A escravidão também foi a base de expansão do islã, e como logo veremos, foi a primeira semeadora de escravizações massivas na África ao fomentar longas caravanas que cruzavam o Deserto do Saara par capturar cativos.

Em todas estas histórias, de diferentes civilizações, houve legiões de cativos sendo utilizados em trabalhos domésticos, na agricultura, como soldados, funcionários burocráticos ou como eunucos guardiões de haréns. Os eunucos eram homens privados de sua virilidade mediante a castração de seus órgãos genitais ainda na adolescência, para que perdessem seu apetite sexual. Esta prática existiu em China, Índia, Pérsia, e é citada em vários trechos da Bíblia. Na Dinastia Ming havia 100 mil eunucos na China, 70% dos quais servindo no Palácio Imperial. A incapacidade de que se reproduzissem fazia com que imperadores e reis lhes confiassem muitas vezes altos cargos públicos, já que nunca teriam herdeiros para reivindicar patrimônio e status social. Naturalmente, os índices de mortalidade dos processos de castração, com remoção total ou do pênis ou dos testículos, eram altíssimos, com cerca de 90% dos que passavam por este bárbaro processo cirúrgico rudimentar morrendo imediatamente ou alguns dias após a operação. Eram níveis de crueldade absurdos.

O ponto de partida para o maior processo de escravização registrado pela história humana teve início a partir do momento no qual uma bula do Papa da Igreja Católica deu aval para que as Grandes Navegações Portuguesas tivessem o status de "Nova Cruzada", desta vez contra os mouros e os infiéis da África. As caravelas e naus portuguesas cruzaram então os mares ostentando em suas velas a Cruz da Ordem de Cristo, herdeira da instituição criada para a realização das Cruzadas de reconquista de Jerusalém, a Ordem dos Cavaleiros Templários. Inicialmente, a "Nova Cruzada" tinha a intenção de alcançar e socorrer a um lendário reino cristão isolado na "Região das Etiópias", o qual seria comandado pelo "Preste João" (preste significava presbítero). Esta missão havia consumido ao imaginário do folclore português por décadas, e deu um verniz missionário para empreitadas cujos reais objetivos eram militares, políticos e econômicos. Cada avanço geográfico financiou o passo seguinte durante mais de um século. Se por um lado foram histórias de bravura e coragem pelo destemido enfrentamento do desconhecido, por outro semearam a tudo de mais negativo e maldoso que pode existir no espírito humano.

Ao amanhecer de 8 de agosto de 1.444 os moradores de Lagos - um pequeno vilarejo murado na região do Algarve, em Portugal - foram despertados pelas notícias recém-chegadas do mar de que meia dúzia de caravelas estavam ancoradas no cais ao pé da ladeira de casinhas brancas protegidas pelos canhões da antiga fortaleza com uma carga inusitada de 235 homens, mulheres e crianças, todos escravos que foram ali separados de suas famílias e arrematados em leilão, familiares aos quais nunca mais voltariam a ver em ser suas vidas. Estava dada a largada para o maior processo de escravização já visto no Planeta Terra.

O primeiro lote, de 46 escravos, ficou reservado ao homem de chapéu de abas largas, botas de cano comprido até os joelhos, e que montado a cavalo supervisionava toda a operação. Era o infante Dom Henrique, quinto filho do já falecido rei Dom João I, e irmão do regente do trono português, Dom Pedro I. A cena foi registrada por Gomes Eanes de Azurara, filho de padre, cronista real, cavaleiro da Ordem de Cristo, guarda-mor dos arquivos da Torre do Tombo, biógrafo de Dom Henrique, e autor dos relatos referentes às primeiras navegações portuguesas pela costa da África. Estes primeiros escravos a aportarem em Portugal eram azenegues, uma das etnias do povo berbere, habitantes da parte ocidental do Deserto do Saara.

O estabelecimento da construção de uma estrutura econômica na costa da África, como já relatado, foi custoso, demorado e árduo para Portugal. Em 1.446, uma expedição liderada por Nuno Tristão terminou em desastre depois de seus 21 tripulantes e mais 5 meninos aprendizes arriscaram-se em subir um rio em busca de escravos. Foram emboscados por uma dúzia de canoas e só os cinco aprendizes sobreviveram, tendo ficado a deriva e sendo resgatados apenas nove semanas depois.

Foram revezes como este que fizeram com que a partir de 1.448 Portugal mudasse a sua estratégia, deixando de caçar e capturar, para assim não correr risco de retaliações, e passando a comprá-los de mercadores de escravos já por lá estabelecidos, em especial devido às relações construídas com alguns dos chefes mais poderosos da Guiné, que capturavam seus inimigos para vendê-los aos portugueses.

Em 1.460, ano da morte do infante Dom Henrique, os portugueses já conheciam relativamente bem cerca de 3,5 mil quilômetros da costa da África, até a altura de onde hoje está Serra Leoa. Por volta de 1.430 tinham explorado as Ilhas Canárias e o Arquipélago dos Açores. Em 1.440, estavam colonizando a Ilha da Madeira, descoberta em 1.419. Em 1.448 construíram o Forte de Arquim, ao sul do Cabo Branco, região onde hoje fica a Mauritânia (aquele que se tornou o primeiro entreposto importante do comércio de escravos de Portugal).

O maior de todos os feitos foi a ultrapassagem do Cabo Bojador, na costa do Deserto do Saara Ocidental, um lugar mítico na imaginação dos marinheiros até o início do Século XV por causa de suas ondas fortíssimas e seus baixios traiçoeiros, com ventos que permitiam a navegação rumo ao sul, mas não o retorno em sentido oposto, tendo se tornado uma barreira psicológica para os europeus. Em 1.291, os irmãos genoveses Ugolino e Vadino Vivaldi o tinham cruzado, numa primeira tentativa de encontrar o caminho às Índias, mas ninguém nunca mais teve notícia deles. A barreira só foi efetivamente vencida em 1.434 pelo português Gil Eanes, o primeiro a ultrapassar o Cabo Bojador e voltar são e salvo para contar a história. Como já contado, o segredo para o cruzar era não resistir às fortes correntes que arremessavam os barcos ao sul, deixando a embarcação se afastar do continente até alto-mar, onde era possível encontrar ventos e correntes marinhas fluindo em sentido oposto.

O plano português de contornar à África para chegar à Índia ganhou corpo a partir de 1.453 quando os turcos-otomanos ocuparam Constantinopla, assumindo o monopólio do comércio de caravanas de mercadores. O litoral da África foi então cada vez mais sendo dominado estratégica e militarmente. Entre 1.456 e 1.460 os portugueses encontraram as 10 ilhas do Arquipélago de Cabo Verde, até então completamente desabitadas. Nos vinte anos seguintes, chegaram ao Golfo da Guiné e às Ilhas de São Tomé e Príncipe, até por fim cruzarem pela primeira vez à Linha do Equador. Em 1.488 Bartolomeu Dias circundou o Cabo da Boa Esperança e primeiro em 1.498, por Vasco da Gama, e depois em 1.500, por Pedro Álvares Cabral, foi alcançada a Índia, tendo nas décadas seguintes os navegadores portugueses alcançado a China, Indonésia e Japão.

Em todo este tempo até que conseguissem chegar à Índia, o que financiava a expansão das expedições portuguesas era o tráfego de pessoas escravizadas na África. Em 1.486, o navegador João Afonso de Aveiro foi o primeiro a subir o Rio Benim, logo chamado de "Rio dos Escravos", dando início a um tráfico restrito à costa africana. Os portugueses compravam escravos no Golfo de Benim e os revendiam na própria África na Costa do Ouro - no Senegal e no Niger - em troca deste metal precioso tão cobiçado na Europa. Com este propósito foi erguido em 1.482 o Castelo de São Jorge da Mina, que se tornou o principal entreposto de estoque de escravizados enquanto estes não eram transportados para serem negociados. Um terço dos escravos comprados pelos portugueses no fim do Século XV era revendido a mineradores africanos, cujas minas foram um segredo que ficou bem guardado durante algumas décadas, até que os portugueses descobrissem suas localizações e efetivamente as dominassem militarmente.

A outra ponta estratégica que viria a gerar um crescimento exponencial da morbidez escravocrata durante os séculos seguintes estava do outro lado do Oceano Atlântico. Portugal alcançou a costa do Brasil em 1.500, mas levou muitas décadas para efetivamente colonizar este território. À medida que foi fazendo isto de forma mais intensiva, com a ampliação de lavouras de cana de açúcar ali instaladas, a cruel dinâmica de exploração econômica de escravizados comprados na costa africana tomou um novo rumo e uma nova dimensão.

O Oceano Atlântico possui duas correntes de ventos que criaram dois eixos de navegação do tráfico de escravizados. O primeiro era dominado pelos portugueses, saindo um pouco mais ao sul da Linha do Equador, das regiões onde estão Benim, Nigéria, os dois Congos e Angola, e levando direto ao litoral brasileiro, chegando a Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, com as correntes de volta levando direto à região centro-sul do litoral africano. O segundo eixo era dominado por espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, saindo de regiões acima da Linha do Equador, entre Gana e Senegal, e levando diretamente à região do Caribe, cujas correntes de retorno passam primeiro pela Europa e só depois pela África. A primeira rota foi aquele trajeto feito por Pedro Álvares Cabral em 1.500 quando este aportou no Brasil, e a segunda foi a feita por Cristóvão Colombo em 1.492 e em outras viagens dele nos anos seguintes, aquelas que aportavam nas ilhas da América Central.

Com a chegada de Portugal à Índia, foi aberto um mercado altamente lucrativo de porcelanas, sedas e especiarias como cravo, canela, pimenta, noz-moscada, gengibre, sândalo e almíscar, produtos cultivados em Índia, Ceilão, e especialmente nas Ilhas Ternate e Tidore, no Arquipélago das Molucas, hoje pertencente à Indonésia. A Europa passou a obter estas especiarias mais baratas com Portugal do que lhe custava comprar aos mercadores muçulmanos que dominavam as rotas terrestres. Era um comércio de lucros astronômicos: a viagem de Vasco da Gama em 1.498 transportou mercadorias de volta à Europa que cobriram em 60 vezes o custo da expedição, a viagem do corsário inglês Francis Drake ao redor do mundo entre 1.577 e 1.580 gerou um lucro de 4.700% para os seus investidores.

Ao mesmo tempo foram construídas redes de comércio no continente africano que espalharam alguns produtos ali produzidos e consumidos por todos os continentes. Entre produtos vegetais comestíveis originados na África e espalhados pelo mundo através do comércio dos navios portugueses estão o dendê, o quiabo, o inhame, o sorgo, a banana da terra, o feijão fradinho, o milhete (também conhecido como painço), o tamarindo, o hibisco e a pimenta malagueta. Igualmente se origina na África a noz-de-cola, produto que séculos depois daria origem a refrigerantes gasosos como a Coca-Cola e a Pepsi-Cola.

As relações que Portugal construiu na África foram bastante distintas das construídas nas Américas e na Ásia. Inicialmente a estratégia adotada foi a de realização de razias (incursões rápidas visando saque) que começaram nas zonas mais próximas do litoral entre 1.520 e 1.570, e progrediram rapidamente, cerca de trinta quilômetros a cada década, à medida que aumentava a demanda por cativos para além do Oceano Atlântico. As principais razões da ocupação restrita na África era a resistência dos chefes locais em ceder território para estrangeiros e, principalmente, o pavor europeu das doenças epidemiológicas das moléstias tropicais. Por exemplo: entre 1.575 e 1.591, cerca de 1.700 europeus perderam a vida em Angola, sendo que só cerca de 400 em combates com os povos locais, os demais cerca de 1.300 tendo morrido em decorrências de doenças tropicais.

O coração político e econômico da África pulsava nas cabeceiras dos três mais importantes rios da região situada logo abaixo do Deserto do Saara: o Níger, o Gâmbia e o Senegal. Era o centro de gravidade da África Ocidental, dominando as artérias vitais de comércio e intercâmbio entre todos os povos das regiões costeiras a sul e a leste, assim como as famosas rotas das caravanas transaarianas que cruzavam o deserto em direção ao litoral norte, à borda do Mar Mediterrâneo, e em direção ao Sudão e ao Egito. Lá estiveram localizados os maiores estados medievais africanos: os Impérios de Gana (do Século VIII ao Século XIII), de Mali (do Século XIII ao Século XVII), de Songai (Séculos XV e XVI), e de Bornu (do Século XIV ao Século XIX). Há evidências arqueológicas de centros urbanos nesta região que remontam a cerca de 250 a.C.. Entretanto, eram estados que ocupavam áreas geográficas relativamente pequenas se comparadas aos impérios em Ásia, Europa e Américas pré-colombianas: o maior destes impérios, o Songai, abrangia uma área de menos de 1 milhão de quilômetros quadrados. Para efeito de comparação: o Império Romano chegou a ter 6,5 milhões de quilômetros quadrados, o Império Otomano teve 5,2 milhões, e o Império Inca chegou a ter 2 milhões.

Um fator foi fundamental para que o desenrolar dos fatos se tenha dado como se deu: quando Portugal chegou à costa africana, encontrou uma rede de tráfico de escravizados já montada e instalada, articulada pelos povos islâmicos que ocupavam o norte do continente. Era uma rede de caravanas que cruzavam o Deserto do Saara para obter escravizados num vil sistema de comércio de seres humanos ali existente já havia alguns séculos, levando centenas de pessoas para serem vendidas para que executassem trabalhos forçados até as margens do Oceano Índico, em viagens que também transportavam ouro, sal e tecidos por esta rota. Os principais destinos eram Zanzibar (onde hoje é a Tanzânia) e Mogadíscio, na região da Somália. Mas estas caravanas também chegavam às regiões da Arábia e da Índia. Quando as caravelas portuguesas passaram a alcançar o litoral atlântico, gradativamente as rotas se ajustaram para lhes fornecer escravos em tais portos.

O que se pode concluir a partir destas evidências é que os portugueses não ocuparam o interior do continente africano porque, além do receio das epidemias tropicais, encontraram uma rede de abastecimento que lhes levava escravos no litoral e que assim lhes mitigava em muito os riscos e os custos no processo de obtenção de tal mão de obra. Este também é o principal motivo pelo qual os portugueses não foram bem-sucedidos com a escravização dos indígenas no Brasil, pois não havia redes internas de tráfico de escravos entre os povos sul-americanos capazes de lhes oferecer cativos em larga escala e a tão baixo custo. Por isto, na ocupação da África, limitaram-se a ocupar os litorais do continente e ali estabelecer feitorias, castelos e postos de compra e venda de escravizados, porque havia povos africanos que os capturavam e os conduziam ao litoral para que fossem vendidos, o que deixava o processo muito menos custoso e arriscado do que terem eles mesmos que fazer as incursões adentrando território, como era necessário para escravizar indígenas no Brasil.

Cruelmente, esta condição econômica de exploração de tais condições de comércio desumanas fez com que a chegada de Portugal ao litoral da África levasse a quantidade de escravizações a ter um crescimento vertiginosamente exponencial ao longo dos séculos seguintes: no Brasil, em 1.574 os cativos chegados a África representavam apenas 7% da força de trabalho escravo nos engenhos, contra 93% de indígenas, em 1.591 eram 37%, e por volta de 1.638 já compunham a totalidade, incluindo aos recém-chegados da África e os crioulos (como eram chamados no Brasil os escravos descendentes de africanos nascidos no país).

Assim, a causa preponderante para a preferência por escravizados africanos é que inexistia um mercado de escravos organizado na América pré-colombiana, ainda que houvesse escravidão em pequena escala entre os indígenas que viviam no território como resultado de captura de prisioneiros em guerras intertribais. Como já dito, na África já funcionavam, desde muitos séculos antes da chegada dos portugueses, centros fornecedores de cativos com rotas de transporte cruzando o Deserto do Saara em caravanas e cortando o continente, uma logística pronta.

Era um comércio desumano, abominável e extremamente cruel. O historiador norte-americano Joseph Miller fez um cálculo assustador a respeito da mortalidade neste tráfico de cativos: ainda na África, entre 40% e 45% dos escravizados morriam no trajeto entre as zonas de captura e o litoral; do restante, entre 10% e 15% pereciam durante o período em que ficavam à espera do embarque nos portos africanos; dos sobreviventes que embarcavam nos navios, outros 10% morreriam na travessia; por fim, mais 15% morreriam nos três primeiros anos de cativeiro. Traduzindo em números absolutos, ao longo de mais de 350 anos, entre 23 e 24 milhões de seres humanos teriam sido arrancados de suas famílias e comunidades na África com destino ao Brasil, e apenas 9 milhões teriam sobrevivido aos tormentos dos três primeiros anos de escravidão.

Os participantes africanos do tráfico de escravos incluíam príncipes e ricos mercadores, uma elite da África que estava profundamente envolvida na comercialização de cativos, com o tráfico humano sendo economicamente um grande negócio, que envolvia milhares de pessoas, incluindo agentes comerciais e contadores que faziam o controle contábil das transações, com toda uma estrutura de fornecimento de água e comida, abrangendo seguradoras, estaleiros, bancos de crédito, empresas de transporte, tripulações e estruturas de apoio logístico, com uma complicada estrutura burocrática. Ao mesmo tempo, os europeus tiveram que se adaptar ao padrão monetário peculiar da África, que utilizava conchas marinhas como moeda em lugar de peças de metal ou papel. A principal delas era coletada nas praias de Angola, então sob monopólio do rei do Congo, Mbiki a Mpanzu.

Nem rupturas políticas profundas foram capazes de alterar a dinâmica de tal prática, os interesses econômicos derivados desta exploração imperavam. Um exemplo é que por problemas de falta de herdeiro para a sucessão ao trono de Portugal, de 1.580 a 1.640 o reino foi governado da Espanha, de Madrid, pelo que ficou sendo chamado de União Ibérica. Foram três reis espanhóis a terem governado Portugal neste período (todos de nome Felipe). Nem isto mudou o mercado de uso de mão de obra escravizada.

Da União Ibérica, os portugueses herdaram um inimigo com quem tinham boas relações comerciais e diplomáticas até então, mas o qual tinha problemas políticos com a Espanha. Como consequência, no Século XVII uma nova potência passou a atacar e ameaçar ao domínio português no Oceano Atlântico: as Províncias Unidas, uma ambiciosa coligação de 7 pequenas nações Protestantes Calvinistas - Holanda, Zelândia, Utrecht, Frisia, Groninga, Guéldria e Overissel, as sete nações neerlandesas -. As guerras entre Neerlandeses e a União Ibérica foi travada a nível global, com conflitos armados acontecendo no Atlântico Norte, na região de Flandres, nas costas da América e da África, e chegando até as regiões ocupadas por Portugal na Índia (em Goa), no Ceilão, na China (em Macau) e no Arquipélago das Molucas, na Indonésia.

Em decorrência de tal conflito global, na metade daquele século as 7 Províncias conquistaram e dominaram uma área de mais ou menos um milhão de quilômetros quadrados no litoral brasileiro (duas vezes o tamanho da Espanha) num trecho que no futuro seria parte dos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. O território foi conquistado por uma frota de 67 navios equipados com 1.170 canhões e 7 mil soldados armados. Os neerlandeses também impuseram um bloqueio na foz do Rio Tejo, em Portugal. Era uma guerra com fins religiosos (católicos contra protestantes) e naturalmente envolvendo também disputas e interesses econômicos. A paz só foi selada no Acordo de Haia, cidade da Holanda, em 1.661 d.C., e custou 25 toneladas de ouro aos cofres públicos de Portugal. Isto reescreveu alguns rumos da história, mas tampouco em nada afetou ao tráfico de mão de obra escravizada.

A dinâmica do fluxo de escravizados africanos enviados pelos portugueses para o Brasil já era relativamente significativa, mas volumosamente ainda um tanto pequena frente às dimensões que viriam a ser registradas pela história posteriormente. Por volta de 1.600, o número de africanos cativos no Brasil já era quatro vezes superior ao número de descendentes de europeus. Dos 150 mil habitantes que a colônia tinha naquela altura, 120 mil eram escravos, descendentes de africanos já libertados ou indígenas, enquanto os descendentes lusitanos somavam apenas 30 mil, havendo a relativa significância, portanto, de quatro para um. Mas a densidade populacional das cidades portuguesas nas Américas ainda era muito baixa em tais tempos: a população de Salvador, então capital do Brasil, era de 14 mil habitantes em 1.585, e ainda era de 40 mil habitantes em 1.750. Um crescimento relativamente pequeno para um período de tempo tão longo, de quase duzentos anos.

O que mudou esta história por completo em termos quantitativos e catalisou a maldade e o nível de crueldade daquele abominável processo foi a "febre do ouro", a qual mudou por completo a paisagem econômica e geográfica da América Portuguesa. Nos duzentos anos anteriores, a colonização por Portugal do território que viria a ser o Brasil se dera apenas ao longo do litoral. Entre as 16 vilas e cidades fundadas até então, só uma - São Paulo de Piratininga, de 1.554 - estava localizada além da Serra do Mar (um padrão similar à forma de ocupação portuguesa na África, com fortíssima concentração no litoral, no entorno a portos). Com a descoberta de jazidas de ouro, entre 1.700 e 1.800 foram fundadas 49 vilas, a maioria das quais no interior do continente. Só entre 1.711 e 1.714 foram criadas 7 novas vilas na região de serras e vales de Minas Gerais, entre elas a Vila Rica de Ouro Preto, descrita como "a cabeça de toda a América e, devido à opulência de suas riquezas, a mais poderosa gema de todo o Brasil".

Entre 1.700 e 1.750, o Brasil respondeu sozinho pela metade da produção mundial de ouro, tendo garimpado entre 800 e 1.000 toneladas. Uma segunda boa notícia para os portugueses na mesma região foi a descoberta de diamantes, comunicada a Portugal em 1.729. Com a assinatura do Tratado de Madrid em 1.750, o qual revogava o Tratado de Tordesilhas e reconhecia novas fronteiras entre as terras de Portugal e Espanha na América do Sul, a exploração se acentuou ainda mais.

A partir do Século XVII, estimulada pelo crescimento do consumo de açúcar na Europa e pela expansão das fazendas de cana-de-açúcar no Brasil, o tráfico de escravos explodiu. A descoberta de ouro e diamantes, e a expansão de outras culturas de cultivo, como algodão e tabaco, fizeram com que se alcançassem patamares ainda mais elevados no Século XVIII. Por isto, 85% de todas as viagens de navios negreiros aconteceram depois de 1.700. Neste período, o Rio de Janeiro se tornou o maior porto de recebimento de tráfico negreiro da história da humanidade, responsável sozinho pelo transporte de 1,5 milhão de escravos de meados do Século XVI até 1.852.

Com a “febre do ouro”, só de Portugal entre 500 e 800 mil pessoas mudaram-se para o Brasil em busca de obter fortuna com o ouro entre 1.700 e 1.800, ao mesmo tempo em que o tráfico de escravizados rumo a esta região mineira se acelerou intensamente, com cerca de 2 milhões de africanos de pele escura cruzando o Oceano Atlântico em estado de escravidão. Em cem anos, foram transportados mais do que o dobro dos duzentos anos anteriores. Até então, 60% dos escravos que chegavam ao Brasil eram das regiões de Angola e do Congo. A partir da descoberta de ouro, predominaram os escravos "mina", oriundos da faixa litorânea de Gana e da Nigéria, no Golfo de Benim, áreas onde havia minas de ouro, podendo-se encontrar escravos especializados em tal extração.

Nove em cada dez expedições de tráfico negreiro eram organizadas no Brasil. Das viagens atracadas em Luanda, Angola, entre 1.736 e 1.770, 41% tinham saído do Rio de Janeiro, 22% de Pernambuco e 22% de Salvador, tendo, portanto, 85% sido organizadas no Brasil, e apenas 15% em Portugal. O tráfico negreiro no Brasil se dividiu em quatro períodos: o primeiro chamado Ciclo da Guiné, partindo de Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau, e passando por Cabo Verde; o segundo foi o Ciclo do Congo e de Angola, que persistiu até 1.850; o terceiro foi o Ciclo da Costa da Mina (Nigéria, Benim e Togo) no Século XVIII. No Século XIX ainda houve o Ciclo de Moçambique, o quarto e último.

Aliada aos traficantes de escravos, uma nova elite militar africana surgiria a frente de estados predatórios que, apoiados por armas e recursos europeus, nasceram e se firmaram com o propósito de lucrar com a guerra contra seus vizinhos, vendidos como prisioneiros para capitães de navios portugueses, ingleses, franceses, holandeses, dinamarqueses, alemães e norte-americanos. Foi assim que floresceram os Reinos de Futa Jalom, na Alta Guiné, entre os atuais países de Senegal e Guiné-Bissau; Axante, cuja dinastia reinante sobreviveu até o Século XXI governando o interior de Gana; Daomé e Oió, entre as atuais República de Benim e Nigéria; e Cassanje e Luanda, em Angola. Todos eles alimentaram a engrenagem do tráfico, fornecendo escravos em troca de canhões, espingardas, chumbo, pólvora, tecidos, bebidas alcoólicas, rolos de fumo, barras de cobre e ferro, entre outras mercadorias.

O principal fornecedor de escravos na Costa da Mina era o Reino de Ajudá (ou Hueda). Embora fosse um território minúsculo, com apenas 64 quilômetros de comprimento por 42 de largura, e com menos de 100 mil habitantes, ele conseguia exportar 20 mil escravizados por ano. Entre 1.700 e 1.725, saíram de Ajudá mais de 400 mil escravizados, cerca de 40% daqueles que cruzaram o Oceano Atlântico neste período. O reino havia se consolidado como ponto final de inúmeras rotas de tráfico que chegavam do interior da África, onde eram vendidos escravizados oriundos de 30 diferentes grupos étnicos, transportados em caravanas muçulmanas chegadas de regiões tão longínquas quanto as fraldas do Deserto do Saara, 800 quilômetros ao norte, ou do interior da região onde hoje é o Sudão, a 1.600 quilômetros a oeste dali.

A guerra era um estado constante, e havia uma característica cultural específica que estimulava que assim o fosse: a poligamia era um traço cultural muito forte na África, reis e homens da nobreza tinham muitas esposas, o que resultava num grande número de filhos, fazendo com que todos fossem candidatos à sucessão após a morte do pai. Estas disputas de linhagem por poder estavam entre as causas da escravização, pois implicavam em conflitos armados, cujos derrotados e seus apoiadores tendiam a ser convertidos em cativos. Uma parte expressiva dos escravizados era obtida através de incursões militares entre os povoados. Conquistava-se terras para enviar sua gente para trabalhos forçados nas Américas, em troca de um fluxo de riquezas com as quais Portugal alimentava tais elites africanas, aumentando ainda mais o seu poder, o que retroalimentava o processo todo.

O conflito que foi melhor catalogado pela história ocorreu em 4 de março de 1.727, quando os moradores de Savi, capital de Ajudá, foram acordados por tiros de canhões disparados por sentinelas que guardavam as entradas da cidade. O reino estava sendo invadido pelos exércitos de Agaja, soberano do Reino de Daomé. A invasão foi implacável e a devastação foi total, estima-se que tenha causado 5 mil mortes e cerca de 10 mil pessoas tenham sido escravizadas. Os soldados de Daomé eram particularmente hábeis no uso de mosquetes, armas de fogo fornecidas pelos traficantes europeus.

O Reino de Daomé se tornou uma das peças centrais da lógica escravista. Centralizado, autocrático e militarizado mais do que qualquer outro estado africano, Daomé tinha como rival apenas ao Império Oió, seu vizinho iorubá situado onde atualmente fica a Nigéria, que o desafiara em campo de batalha inúmeras vezes nas três primeiras décadas do Século XIX. Conhecido como príncipe Gapê antes de subir ao trono, o rei Guezo era bisneto de Agaja, o conquistador de Ajudá, e governou de 1.818 a 1.858, sendo o mais longevo de todos os reis de Daomé. Sua chegada ao poder se deu por um golpe de estado contra o irmão Abandozan. Seu pai, o rei Angolô, fora assassinado de forma misteriosa em 1.797. Ele teria apontado Gapê como seu sucessor, sendo o príncipe ainda uma criança. A luta de sucessão levou à morte três príncipes - irmãos de Gapê - tendo Abandozan conseguido se impor belicamente sobre todos os demais pretendentes.

Dezenas de pessoas da corte real foram eliminadas neste processo. Abandozan teria vendido a mãe de Gapê - Nã Agotimé - uma das esposas de seu pai Angolô, como escrava para o Brasil, tendo sido ela enviada para o Maranhão. Por desavenças sobre prestações de contas do tráfico escravo, Abandozan também mandou para a cadeia Francisco Félix que, supostamente nascido em Salvador, na Bahia, era o maior dentre os traficantes da África naquele momento. Na prisão, ele recebeu a visita de Gapê, supostamente interessado em identificar a localização de sua mãe no Brasil. Os dois formaram uma aliança em pacto de sangue, a partir da qual Francisco Félix foi libertado numa fuga facilitada por 60 soldados leais a Gapê, e a partir da qual o traficante alimentou o príncipe com armas que lhe permitiram dar o golpe sobre o irmão e ascender ao trono de Daomé. Em troca, Francisco Félix recebeu favores que fizeram dele "o maior traficante de escravos de todos os tempos", como o definiu Pierre Verger.

Por volta de 1.750, o horror dominava a serra e os vales próximos à Feira de Cassanje, interior de Angola, assim descrito pelo historiador norte-americano Joseph Miller: "Ali as pessoas matavam e eram mortas como se a vida nada valesse. Não usavam roupas e consumiam carne humana e insetos vivos. Os cadáveres eram jogados nas estradas e devorados pelos famintos que por elas trafegavam. Quando estranhos se aproximavam, os fugitivos se escondiam na copa das árvores e atacavam todos os forasteiros que julgassem capazes de dominar. As guerras, agravadas por secas arrasadoras, produziam uma devastação tão absoluta que os homens mais jovens sobreviviam apenas da captura, do consumo, e da venda de outras pessoas. Cerca de 90% da população envolvida nos conflitos acabou dizimada. O território ficou quase completamente desabitado".

Na esteira da grande onda escravagista ficava um cenário de morte e ruína. No início do Século XIX, estima-se que havia mais escravos no continente africano do que nas Américas. Ao cruzar a região da Senegâmbia, o explorador escocês Mungo Park estimou em seus relatos de viagem que 3/4 da população era escrava, e assim registrou: "o trabalho aqui é todo ele feito por pessoas cativas".

Diferentemente do resto da costa da África, em Angola os portugueses se aliaram a soberanos locais para controlar diretamente o tráfico de escravizados em todas as suas etapas, da captura ao embarque nos navios que os conduziam à América, estando diretamente envolvidos em razias, sequestros, guerras e outros processos de escravização da população nativa. E ali a brutalidade e a escala foram ainda maiores do que em qualquer outra região do continente: estima-se que de um total de 10,5 milhões de cativos que chegaram à América vivos até a metade do Século XIX, pelo menos 5,7 milhões, que são 54%, eram de Angola.

Na visão europeia, a gente da África era bárbara, sem moral, sem leis, vivia em contínua guerra, era mais predisposta à preguiça, à instabilidade emocional e aos vícios, e tinha uma inviabilidade para se regrar em si mesma. Argumentos para enganar a si próprios e se camuflar frente a seus próprios níveis de barbaridade e falta de moral no abominável e maldoso trato de exploração cruel de seres humanos. A própria poligamia, característica cultural de muitos daqueles povos, era utilizada como argumento para endossar a barbaridade e a falta de moral vistas pelos europeus como a justificativa para os atos deploráveis de escravização.

A proporção do tráfico humano foi maior em relação ao Brasil, onde cerca de 70% dos 4,9 milhões de cativos que chegaram vivos até 1.850 eram originários de Angola e suas vizinhanças. Luanda foi o maior porto fornecedor de tráfico negreiro na história, tendo só dali partido 12 mil viagens transportando aproximadamente 4 milhões de escravizados, cargas humanas vivas. Em escala: em 1.798, a população do Brasil era estimada em 3,25 milhões de pessoas, sem incluir os indígenas "bravios" (ou seja, que não tinham sido incorporados à civilização colonial portuguesa). Os índios "pacificados" correspondiam a 7,7% do total, os brancos a 31,1%, negros e mulatos libertos a 12,5%, e os demais 48,7% - quase a metade, portanto - eram escravos chegados da África. Mais da metade destes 10,5 milhões de escravizados chegou à América entre 1.700 e 1.800, sendo 2 milhões só no Brasil. Entre 1.751 e 1.800 foram 3,4 milhões de escravos comercializados, entre 1.801 e 1.850 foram 3,0 milhões, e entre 1.701 e 1.750 foram 2,2 milhões. Nos períodos anteriores, o volume era menor: entre 1.501 e 1.550 tinham sido 44,5 mil, entre 1.551 e 1.600 sido 154 mil, entre 1.601 e 1.650 foram 527,7 mil, e entre 1.651 e 1.700 foram 989 mil. Uma escalada exponencialmente crescente, indicando que não há limites quando a maldade não é domada nos seres humanos. Um censo do governo português em Angola feito entre 1.777 e 1.778 demonstrou o efeito devastador deste tráfico escravista: havia duas mulheres para cada homem adulto entre 15 e 60 anos. No Brasil, a proporção era inversa.

A dinâmica interna africana por trás de tamanha crueldade deste mercado também é importante de ser registrada: um estudo feito por navios britânicos ao libertarem escravos de navios escravagistas no Oceano Atlântico mostrou que 30% dos escravizados tinham sido sequestrados por outros africanos, 11% em decorrência de processos judiciais nos quais eram acusados de diversos crimes, entre os quais o adultério, 14% foram vendidos para quitar dívidas contraídas por eles próprios ou por seus familiares, e 34% era composto por prisioneiros de guerra.

Para atender a interesses próprios, é comum da natureza humana utilizar-se de meios supostamente civilizatórios para maquiar a sua crueldade e a sua maldade em ações de barbárie cometidas. Até mesmo a lei se converteu em instrumento de escravização. Qualquer que fosse o crime cometido, a pena passou a ser a condenação à escravidão. O mercador inglês Francis Moore notou as consequências disso ao longo da costa da Senegâmbia, na África Ocidental, na década de 1.730, deixando seu relato: "Desde que o tráfico de escravos assim entrou em vigor, todas as punições passaram a ser a escravidão; havendo vantagens em tais condenações, constituíram-se um excessivo rigor punitivo, a fim de assegurar o benefício da venda do criminoso. Não só o assassinato, o roubo e o adultério eram punidos pela venda do criminoso como escravo, mas as maiores frivolidades passaram a ser penalizadas da mesma maneira".

A história de crueldade deste tráfico humano nas Américas era tão cruel quanto aquela ocorrida tanto na África quanto nos navios de transporte que cruzavam o Oceano Atlântico. Os dois principais mercados de destino em termos de volume estavam um na América do Norte e outro na América do Sul: nos Estados Unidos era reduzido o número de alforrias concedidas, o que combinado à elevada taxa de natalidade e expectativa de vida mais longa levou a um aumento de população escravizada sem necessidade alta de reposição; no Brasil ocorreu o contrário, os índices de alforria eram mais altos e a taxa de natalidade em cativeiro era inferior à dos Estados Unidos, de forma que a expectativa de vida não passava de 18,3 anos, sendo a necessidade de reposição bem mais elevada.

Entre 1.792 e 1.815, as Guerras Napoleônicas na França levaram a um amplo movimento de rupturas em favor de mais liberdade, mas estas foram em grande medida transformações brancas que mantinham a segregação racial e deixavam à margem a liberdade da população negra e escravizada. Em 1.791, a Assembleia Nacional Francesa chegou a condenar a escravidão, entretanto, em 1.802, pressionado pela sangria de recursos em função da guerra, Napoleão Bonaparte reintroduziu a escravidão em todas as colônias francesas.

Entretanto, os alicerces de transformação cultural estavam semeados, e gradativamente as barreiras foram sendo derrubadas, e nem sempre pacificamente. No Haiti - colônia francesa na América Central - houve a maior insurreição de escravizados em quase cinco séculos de escravidão nas Américas. Tratou-se de um banho de sangue que se arrastou por 12 anos. Estima-se em 100 mil o número de escravizados que se juntaram à revolta. A ampla maioria dos colonos brancos foi massacrada. Dos 40 mil soldados da França enviados para reprimir à rebelião, somente 8 mil regressaram para a Europa vivos. Foi o único país nas Américas a ter conquistado a sua independência (em 1.804) a partir de uma revolta de escravizados!

Em 1.815, reunidos no Congresso de Viena - que redesenhou as fronteiras geográficas e políticas ao fim das Guerras Napoleônicas - as principais potencias europeias (representadas por Grã-Bretanha, França, Espanha, Portugal, Áustria, Prússia, Rússia e Suécia) assinaram um documento no qual se declarava que o tráfico de africanos escravizados era "repugnante a todos os princípios de humanidade e moralidade universal", recomendando também que todos os países nele envolvidos o abolissem assim que possível. Apesar da ênfase nas palavras, nenhum prazo foi definido para que isto de fato acontecesse. O que, de fato, tardou em ser materializado em realidade.

México, Chile, Bolívia, França e Inglaterra aboliram o cativeiro em seus domínios entre 1.818 e 1.840. Nas décadas seguintes, seria a vez de países como Argentina, Colômbia, Dinamarca, Equador, Peru, Suécia, Tunísia, Uruguai e Venezuela. Por volta de 1.855, restavam apenas três grandes territórios escravistas nas Américas: Brasil, Cuba e Estados Unidos. A abolição nos domínios norte-americanos aconteceu em 1.865, no final de uma guerra civil na qual morreram cerca de 750 mil pessoas. No ano seguinte foi a vez de Cuba.

Nos Estados Unidos da América, a Guerra de Secessão foi a maior tragédia humanitária da história do país e teve como o seu principal motivo a luta pelo fim da escravidão. O norte do país era mais industrializado e menos dependente da agricultura, e foi onde a luta pelo fim da escravidão ganhou adesão, enquanto o sul era majoritariamente agrícola e sustentado por grandes plantações mantidas pelo trabalho da mão de obra escrava, com uma estrutura econômica mais similar à da América Latina. A eleição em 1.860 de Abraham Lincoln como presidente da república - um defensor das posições do norte - foi o gatilho para o início dos conflitos, que começaram em 1.861 quando representantes do sul do país tentaram constituir um país independente, os Estados Confederados da América, e lutaram então contra a União, aliança federativa dos estados do norte, região na qual a maioria era de imigrantes protestantes fugidos dos conflitos religiosos na Grã-Bretanha.

Nos quatro anos de luta armada que se seguiram, morreram 620 mil soldados – 260 entre os confederados e 360 nas tropas da União – mas ao somar as perdas de vidas civis, o total de mortos chegou a 750 mil. O resultado daquela guerra seria crucial para o futuro econômico dos EUA, assim como para o fim da escravização, já que após ela, isolado e como último país escravista nas Américas, o sistema escravista do Brasil ficou encurralado e sem alternativa. Ainda assim, a resistência à abolição ainda persistiu por duas décadas mais no Brasil, tendo a marcha sido bem mais lenta devido à resistência obstinada da aristocracia escravista, sustentáculo do poder político local. Em 1.871 foi proclamada a Lei do Ventre Livre, que concedia liberdade aos recém-nascidos e criava fundos para a compra da alforria de adultos. Uma segunda lei, em 1.885, declarava livre todos os sexagenários (com idade acima de 60 anos). Por fim foi assinada a Lei Áurea, em 13 de maio de 1.888, que decretou o fim da escravidão legal no Brasil. Legalmente, dava-se fim em todo o planeta à mais desumana de todas as práticas já vigentes por nossa espécie.

A escravidão esteve presente em praticamente todas as sociedades do passado humano, em todas as partes. Foi endêmica tanto na Roma Antiga quanto na África. Porém, foi o desenvolvimento das colônias de açúcar nas Américas, a partir do princípio do Século XVII, o que provocou uma escalada extrema do tráfico internacional de escravos e um aumento sem precedentes da importância da escravidão dentro da África. Em Angola, Benin, Gana e Togo, por exemplo, o número de cidadãos escravizados exportados atingiu um total acumulado superior à população que estas regiões detinham em 1.400. O recrudescimento de conflitos foi alimentado pela gigantesca importação de armas e munição que os europeus trocavam por escravos na costa do continente.

Em 1.730, cerca de 180 mil armas foram recebidas por ano só no litoral oeste do continente. Entre 1.750 e princípios do Século XIX, só a Grã-Bretanha trocou entre 283 e 394 mil armas por ano. Entre 1.750 e 1.807, os ingleses forneceram um extraordinário volume de 22 mil toneladas de pólvora, chegando a uma média de 384 mil quilos ao ano, além de 91 quilos de chumbo anuais. Um grande exemplo, entre muitos que há na história humana, de como o desenvolvimento econômico pode causar e se alimentar de subdesenvolvimento alheio em alguma outra parte, numa grande herança histórica da importância da consciência com que as escolhas são feitas, e quais consequências estas podem vir a ter a longo prazo.


quinta-feira, 31 de julho de 2025

Quem não tem coragem, não consegue assumir a sua própria individualidade, e não conquista o que deseja nem o seu lugar único no mundo

Além da superioridade militar imposta por suas armas de metal e pelo uso da pólvora, houve diferenciais silenciosos e sorrateiros que fizeram com que as vitórias dos espanhóis não se dessem só por tais razões. Primeiro, houve um componente religioso por detrás: muitos nativos acreditaram que Pizarro era o deus Viracocha que estava retornando. Segundo, houve um componente político: tribos subjugadas e inimigas dos impérios Inca e Asteca se juntaram aos espanhóis para derrubar a seus imperadores inimigos e deles opressores. Estes dois fatores estiveram presentes tanto na vitória de Francisco Pizarro sobre Atahualpa, líder do Império Inca, no Peru, quanto na de Hernán Cortés sobre Moctezuma, líder do Império Asteca, no México. Mas houve um terceiro fator, e o mais marcante: em todas as Américas as doenças que chegaram com os europeus - varíola, sarampo, tifo e peste bubônica - provocaram um genocídio silencioso, matando 95% da população nativa pré-colombiana.
Embora os germes não tenham atuado só num sentido - febre amarela, malária e outras doenças tropicais também mataram muitos colonizadores europeus nas Américas, na África e na Índia - a proporção de mortes claramente pendeu muito mais para um lado do que para outro. Há uma razão para que assim tenha sido: doenças infecciosas como varíola, sarampo e gripe surgiram como germes em seres humanos derivados, por mutação, de germes ancestrais semelhantes que infectavam animais. Logo, os humanos que domesticaram animais séculos antes na Eurásia, muito antes de que aquele encontro tivesse acontecido, foram as primeiras vítimas destes germes, acabando por desenvolver resistência a eles. Quando entraram em contato nas Américas com povos sem resistência a tais germes, provocaram epidemias mortais que devastaram populações inteiras.
Todos estes fatores juntos são realidades que precisam ser entendidas para que se tenha uma correta compreensão das causas e consequências que se desenrolaram por detrás deste reencontro entre as diferentes frentes da espécie humana que milênios antes tinham se dispersado pelo planeta. Entretanto, para efeito do domínio político instaurado paulatinamente a partir do primeiro contato, o fator mais relevante dentre todos os outros foi o diferencial do volume de conhecimento acumulado. A grande diferença foi a de que os europeus detinham o controle da escrita, grande difusor de conhecimento (entre os quais os da navegação), enquanto os povos conquistados não tinham tal domínio. Nas Américas, a habilidade de escrever estava restrita às elites de alguns povos de onde hoje é o México. Já os europeus, além da escrita, dominavam também as técnicas de impressão, grande difusora de conhecimento. Ainda que Pizarro e seus homens fossem analfabetos, eles tinham acesso a conhecimentos que lhes foram ensinados e que só puderam ser propagados em função da escrita e da impressão.
As terras às quais os espanhóis chegaram tinham um longo histórico de desenvolvimento e evolução próprios, onde estiveram presentes todos os elementos que marcaram processos evolutivos da espécie humana em todas as demais regiões do planeta. Entretanto, quando os navegadores espanhóis chegaram às Américas havia apenas dois "Estados" claramente definidos no novo continente: os astecas na região onde hoje é o México, e os incas na região onde hoje é o Peru e seus entornos.
Em suas cartas e comunicados, o navegador Hernán Cortés escreveu sobre grandes cidades, reinos e por vezes repúblicas, mas jamais se perguntou quais poderiam ser considerados um "Estado", até porque este conceito mal existia ainda naquela época. Ele hesitou em chamar Moctezuma de imperador, até porque não o igualaria a seu soberano, o rei Carlos V, mas a sociedade mexica tinha todos os elementos de um "Estado político" organizado: planejamento administrativo e ordenamento urbano, hierarquia militar e unidade religiosa, a qual fazia o papel de controle da informação sobre os conhecimentos a respeito das divindades que acreditavam que controlavam o mundo.
No Império Asteca, os meninos quando nasciam recebiam um escudo e quatro flechas, com as parteiras orando para que fossem guerreiros valiosos. Como em todas as sociedades humanas ancestrais por todo o planeta, era a representação da associação do ser masculino à figura da guerra e da caça. Ao nascerem as meninas recebiam rocas e teares, numa associação à figura feminina à dedicação às tarefas domésticas e de sustentação alimentar da comunidade. Isto não foi de todo a regra por todo o planeta nas nossas sociedades ancestrais, já que nem toda sociedade no passado da humanidade esteve assim organizada, mas foi como a ampla maioria delas se estruturou desde o passado mais remoto da história humana.
Historicamente, na Mesoamérica a primeira grande civilização foi a olmeca, ainda que estes não possam ser considerados um único grupo étnico ou político. Eles deixaram uma ampla variedade de cerâmicas, estatuetas e esculturas antropomórficas com uma identidade cultural facilmente reconhecível, datadas do período entre 1.500 e 1.000 a.C., e encontradas em diversos pontos de uma imensa área da América Central e do sul do México. Foram eles os inventores dos sistemas de calendário, das escritas com glifos e dos jogos de bola, variantes comuns de todas as civilizações que ocuparam a Mesoamérica a partir de então. A realização cultural mais característica deste povo foram as imensas cabeças de dimensões colossais esculpidas em pedra basalto, pesando toneladas, encontradas por todas as regiões por eles ocupadas, onde não foram encontradas quaisquer evidências arqueológicas de uma estrutura militar e administrativa estável, apenas de controle de uma extraordinária difusão cultural a partir de centros cerimoniais únicos.
Somente muitos séculos depois da cultura olmeca, por volta do ano 1.150 d.C., que o povo mexica migrou de uma região mais ao norte dali rumo ao sul, saindo das terras que eles chamavam de Aztlán (cujo local exato é desconhecido) em direção ao vale central do que hoje é o México. Buscavam o local onde as profecias diziam que construiriam um grande império, que deveria ser fundado no local exato onde avistassem uma águia comendo uma serpente em cima de um cacto. Foi onde construíram Tenochtitlán e fundaram o império da Tríplice Aliança Asteca, união política entre as três maiores cidades-Estados náuatles: Tenochtitlán, Texcoco e Tlacopan.
Em sua migração e no seu posterior processo de domínio e ocupação de populações adjacentes, depararam-se com ruínas de cidades colossais abandonadas por outros povos anteriores a eles que também tinham construído grandes impérios e centros cerimoniais. Foi o caso da enorme cidade de Teotihuacán, a qual hoje se sabe que teve o seu auge cerca de oito séculos (800 anos) antes da chegada do povo mexica à região onde foi construída Tenochtitlán, as duas separadas por uma distância de pouco mais de 50 quilômetros. O declínio de Teotihuacán ocorreu por volta do ano 600 d.C. e quando os astecas a descobriram, maravilhados, chamaram-na de "Lugar dos Deuses", tendo sido eles quem batizaram seus monumentos como "Pirâmide do Sol", "Pirâmide da Lua" e "Calçada dos Mortos". Não restou qualquer relato do propósito para o qual os teotihuacanos tinham construído aquelas edificações colossais.
Os cidadãos de Teotihuacán tinham sido prolíficos artesãos e criadores de imagens, tendo deixado para a posteridade desde monumentais esculturas de pedra até minúsculas figuras de terracota detalhadamente trabalhadas, além de murais vividos de registros de suas atividades humanas. Em nenhum destes registros havia qualquer imagem com representações de soberanos subjugando subordinados, como era comum nas artes equivalentes deixadas por povos que foram seus contemporâneos na Mesoamérica, como os povos zapoteca e maia, para os quais este tema é constante nas obras por eles deixadas. Entre os períodos de Teotihuacán e Tenochtitlán, também houve outras grandes civilizações mesoamericanas na região, como Monte Alban (500 a 800 d.C.), Tula (850 a 1.150 d.C.) e Cahokia (800 a 1.200 d.C.). Várias expressivas civilizações, mas nenhuma com escala similar à obtida pelo Império Maia.
Na época da chegada dos espanhóis às Américas já se havia passado seis séculos desde o colapso da Civilização Maia, cujas sociedades sobreviventes composta por seus descendentes estavam descentralizadas e divididas numa enorme variedade de municipalidades e principados, muitos dos quais já não tendo mais a um soberano. Seu calendário, detalhadamente esculpido em pedra, registra a criação de seu povo num período próximo a 3.100 a.C., e seus registros, compilados no final do Século XVI nos livros Chilam Balam, tratam incessantemente de desastres e tribulações que acometeram a governantes opressores e despóticos, contra quem acabaram havendo rebeliões que os derrubaram. Uma história igual a tantas outras vividas em tempos paralelos na Europa, na Ásia ou na África. Regressaremos à história maia quando viermos refletir sobre os fracassos de nossa coletividade humana.
A América do Sul também registrou a sua história própria de desenvolvimento civilizatório. Nela, alguns tipos de centros cerimoniais monumentais já existiam desde 3.000 a.C., tendo deixado seus restos para serem explorados por arqueólogos em tempos mais modernos. Posteriormente, entre 1.000 e 200 a.C. há indícios de um único centro - Chavín de Huántar - no planalto setentrional de onde hoje está o Peru, tendo este exercido uma grande influência cultural na região, derivando em três centros políticos: nos planaltos centrais surgiu um grupo militarizado, os wari; nas margens do Lago Titicaca emergiu a metrópole de Tiwanaku, com seus 420 hectares, alimentada por um engenhoso sistema de lavouras elevadas que permitiu o cultivo agrícola nas altitudes gélidas do altiplano boliviano; e no litoral norte do Peru se formou a cultura mochica, com seus luxuosos túmulos de sacerdotisas-guerreiras recobertos de ouro. Nada em Chavín de Huántar indica a presença de um governo secular. Não há fortificações militares nem distritos administrativos óbvios. Quase tudo parece ter a ver com cerimônias rituais e conhecimentos esotéricos.
Estas civilizações precederam ao grande império que ali existia na época da chegada dos espanhóis, o Império Inca. Nele, as montanhas representavam a espinha-dorsal do poder imperial (curiosamente o oposto da Europa e da Ásia, onde as montanhas serviam de abrigo a rebeldes e heréticos que se refugiavam em terras altas para fugir do poder coercitivo de reis e imperadores). No topo da Cordilheira dos Andes, mais próximos à "Morada dos Deuses", estava o super-reino de Tawantinsuyu, cujo significado na língua quechua era algo próximo a "regiões estreitamente unidas", referindo-se aos quatro "suyus", as grandes unidades administrativas de poder do Sapa Inca.
Da capital Cusco, os incas da realeza extraíam a mita, um imposto sob a forma de trabalho ou corveia recolhido de todo o império, que se estendia por uma região que ia desde onde hoje está a cidade de Quito, capital do Equador, até a cidade de Santiago, hoje capital do Chile - um território de aproximadamente 4 mil quilômetros - onde era exercida a soberania do "Deus Sol" sobre 80 províncias contíguas e incontáveis grupos étnicos distintos. Os primeiros europeus os consideravam administradores magistrais. Conforme relato de Pedro Cieza de León em seu livro de 1.553 intitulado "Crônicas do Peru": "em cada capital de província havia contadores chamados de guardiões e ordenadores de nós, que registravam e contavam o que fora pago em tributos (estes nós na língua quechua se chamavam "khipukamayuqs"), podendo ser estes registros equivalentes desde prata, ouro, roupas e animais de rebanho até lã e outras miudezas. Estes nós podiam produzir um registro de tudo que havia sido pago num decorrer de ou um ou dez ou vinte anos, e mantinham tão bem as contas que não deixavam passar sequer um par de sandálias". Para fazer os registros, os nós nas cordas tinham variação de tamanho e diferentes combinações de cores.
Toda esta história do continente anterior à chegada dos navegadores que cruzaram o Oceano Atlântico a partir da Europa, e que com suas grandes navegações transoceânicas proporcionaram um reencontro da humanidade ao aportarem nas Américas, reforça a imensa complexidade por trás das dispersões e desenvolvimentos da história humana. Ainda que claramente uns tenham conseguido se impor e subjugar aos outros, toda ela é retrato de uma história na qual não havia melhores ou piores, assim como em toda a história sapiens, o que havia eram diferenças que se juntaram e construíram um processo de transformação social e cultural conjunto.
Entre similaridades e diferenças, realçam-se histórias de bravura e coragem que moldaram o destino da nossa civilização, inspirando transformações que nos forjaram. A humanidade sempre desafiou os limites do possível, e esta característica foi o que nos trouxe a tudo que nos cerca até aqui. Enfrentar ao desconhecido com determinação exigiu muita coragem, além de espíritos e mentes inquietos, capazes de sonhar além de seu tempo. Nem tudo foi glória, tanto atrevimento custou muitas vidas humanas, e o que é mais doloroso, principalmente vidas jovens. Entretanto, o espírito humano provou a resiliência da espécie Homo sapiens, sempre encontrando força na união e esperança num futuro mais promissor. Cada geração teve a sua própria saga, e assim foi por todos os rincões e entre todos os povos que pisaram sobre o Planeta Terra. Nossa história, muito mais do que apenas um relato de conquistas materiais, é sobretudo um tributo à indomável capacidade humana de superar o medo e transformar tudo que está a seu redor.

O ser humano, por sua natureza, tende a poupar esforço cognitivo, pois nosso cérebro é um devorador de energia. Assim, como dinâmica padrão, estamos sempre buscando poupar esforço para conservar potência. Essa perspectiva, traz consigo um reconhecimento de uma tendência humana de se ater à realidade já existente, já conhecida, em detrimento a lidar e enfrentar o desconhecido. Por causa desta característica humana biológica, a coragem para empreender e se aventurar é fator diferencial, porque ela nos tira do senso comum. Complementarmente a isto, nossa história nos dá uma grande lição: ainda que a coragem seja fator fundamental para o alcance da plenitude humana, ela só tem sentido quando é dosada pela sabedoria acumulada.
É fator essencial: a coragem tem que ser combinada com sensatez e conhecimento. Na nossa história, se estas forças tivessem sido sempre equilibradas, nossa bravura para enfrentar e domar o desconhecido teria custado muito menos, com a nossa espécie tendo entregado muito menos vidas jovens a tais aventuras e desbravamentos. Tal qual, esta lição serve à vida de cada um de nós. Precisamos ter consciência de que devemos ter muita coragem para enfrentar os desafios com os quais nos deparamos ao longo de nossas vidas, mas precisamos ter sensatez sempre para saber dosar até onde estamos dispostos a assumir riscos. Nesta cruzada, há que ter consigo boas doses de racionalidade e conhecimento, assim como saber encontrar a atitude certa para se posicionar para impor limites e alcançar conquistas. São as escolhas que fazemos o que determina os caminhos de nosso destino.
Um relato histórico que bem retrata a importância de tais fatores é contado numa tragédia que foi muito bem catalogada e registrada, e que serve de referência para outras muito parecidas que ocorreram ao longo da história humana: em dezembro de 1.835 o povo maori partiu do leste da Nova Zelândia com 900 homens em embarcações para invadir as Ilhas Chatman, onde vivia um povo de caçadores-coletores chamado moriori. Indiscriminadamente, os maori dizimaram aos moriori - idosos e crianças, homens e mulheres; independente de idade ou gênero, todos foram mortos -. Uma resistência organizada dos moriori poderia ter evitado o massacre, pois eles tinham o dobro de homens para lutar e se defender, mas suas tradições envolviam resolver todos os problemas e conflitos pacificamente, sempre reunidos num conselho, e por causa disto decidiram não lutar, porque acreditavam que poderiam resolver aquela situação da mesma forma. Pagaram com suas vidas por tal decisão.
O povo maori era uma numerosa população de agricultores, cronicamente envolvido em constantes guerras ferozes, tinha tecnologias e armas melhores, e agia de forma organizada e sob uma liderança forte. O povo moriori só tinha artefatos rudimentares, além de que era inexperiente em matéria de guerra. O resultado final era previsível, com os maori tendo chacinado aos moriori. Uma história que ilustra a importância de como uma consciência a respeito de causas e consequências é fator fundamental para embasar escolhas em tomadas de decisão.
Um milênio antes, estes dois grupos tinham a um mesmo povo como ancestral comum, sendo ambos grupos polinésios que migraram por volta do ano 1.000 d.C. para estas ilhas da Oceania após partirem da Austrália. É uma história que representa toda a experiência humana, em pequena escala, de como os ambientes afetaram a evolução organizacional das sociedades humanas ao longo da história, e sobre como as escolhas regidas pelas respectivas culturas definiram destinos. A corrida por deter conhecimento construiu suas consequências.
Para ter uma consciência clara a respeito de como se posicionar e agir diante de riscos, é fundamental levar consigo conhecimento, pois só a sabedoria nos leva às melhores escolhas. Esta é uma verdade que foi retratada na própria história das Grandes Navegações que foi aqui narrada. Entre os Séculos XVI e XVIII, dois milhões de marinheiros morreram nos mares por causa do escorbuto, uma doença cuja origem era um mistério. A dieta durante as viagens dos navegadores que se embrenhavam em tais aventuras era feita à base de biscoitos e carnes secas, não incluindo frutas e legumes. Somente em 1.747 o médico britânico James Lind descobriu a causa do escorbuto: falta de vitamina C. Uma falta de um conhecimento simples que matou milhões de pessoas!
Para as muitas vidas perdidas durante as ousadas demonstrações destemidas e intrépidas de se lançar às águas turbulentas do Oceano Atlântico em busca de um sonho, de nada serviu ter apresentado tamanha coragem. Para nós, como indivíduos, tudo é uma questão de se encontrar a dosagem certa, uma vez que tampouco a falta de coragem proporciona algo de concreto. Já disse uma vez um poeta: navios que ficam sempre ancorados no porto podem ser mais seguros, já que nunca correm perigo, mas navios não foram feitos para isso, logo se nunca assumissem riscos, não haveria razão pela qual devessem ter sido construídos, logo nunca teriam existido.
Todos estes componentes apresentados de formatação da coragem dentro de cada um de nós se sustentam sob fatores muito similares, nas formas de construção de nossa relação com tudo que nos cerca. A nossa propensão a ter ou não coragem para enfrentar os desafios que a vida nos apresenta se relaciona intimamente com a forma como lidamos com toda a herança que recebemos, tanto pelas regras nos apresentadas por nosso universo e nossa natureza, quanto pelas condições nos apresentadas pela nossa humanidade civilizatória, pelas características dentro das quais estamos imersos em nossa terra, por nossa cultura e por nossos conhecimentos acumulados. Como lidar com tudo que está ao nosso redor? É preciso coragem, e bastante, porque necessitamos disto no que é mais elementar, sendo necessário coragem para pensar diferente do todo a qual cada um está imerso, para que assim cada qual busque e encontre a sua própria identidade, dizendo ao mundo quem é você, construindo e contando a sua própria história, deixando uma marca única, que só você é capaz de deixar.
É fundamental que nós como seres humanos, dentro do contexto de propósito que cada um de nós tem em nossas respectivas vidas, sejamos capazes de superar a superficialidade. Isto depende de muita reflexão, para efetivamente extrair dos fatos que você viveu as suas ideias próprias, o seu conceito, unicamente seu, sobre qual efetivamente é um entendimento do mundo, aquele exclusivamente seu, diferente de qualquer outro. Uma identidade unicamente sua só é obtida com o aprofundamento de nossos próprios pensamentos, relacionados às experiências que cada um viveu unicamente na sua vida, a qual não é comparável àquelas que qualquer outro teve.
É preciso coragem para operacionalizar o seu pensamento, saber manejá-lo, questionando quais ideias foram impostas pelos outros a você e quais são suas próprias crenças, unicamente suas, para assim construir as próprias ideais a partir da sua experiência de vida individual, aquela exclusiva a cada um de nós.
Não quer dizer que você não deve considerar tudo à sua volta e construir um mundo no qual só você vive, muito pelo contrário, pois a vida humana não é assim. É preciso aprender constantemente com o pensamento dos outros, assim como com tudo que a vida nos apresenta, recriando tais pensamentos, buscando aprendizado o tempo inteiro, para assim moldar o mundo às suas próprias experiências, aquelas que são exclusivamente suas, ao mesmo tempo em que molda você ao tudo que existe no seu entorno.
Trata-se de estar sempre observando, pois é a partir do que vivemos e absorvemos que vamos construir um entendimento daquilo que funciona em volta de nós, a partir do qual vamos moldar a nossa personalidade individual, que estará o tempo todo em transformação, porque precisamos apresentar estes princípios às impressões dos demais com quem convivemos. Na vida, é preciso ter um constante ânimo de aprendiz, estar buscando aprender sempre coisas novas, o tempo todo, porque é isto e somente isto o que nos faz crescer.
É necessário estar o tempo todo refletindo, chegando a conclusões, e submetendo estas para aqueles que te cercam, num processo contínuo de apresentar seus pontos de vista e trocá-los com os dos demais, para ensinar aquilo que a vida te mostrou com as experiências que foram só suas, e ao mesmo tempo aprender com as lições de vida que cada um dos demais teve e que são exclusivamente deles, encontrando pontos comuns para que assim estejamos sempre aprendendo uns com os outros e construindo uma coletividade melhor. Entendendo isto, você está entendendo o que é dito de forma mais complexa como sendo a dialética das relações humanas, com seus processos constantes de construção de teses, sínteses e antíteses o tempo todo moldando cada processo contínuo de construção, desconstrução e reconstrução.
Só com coragem estas relações são construídas eficientemente, de forma a te proporcionar a aprendizagem constante, aquela que é o que te proporciona crescimento individual. Quem não tem coragem, não consegue assumir a sua própria individualidade. E é a partir disto que conquistamos o que desejamos, aquele que é o nosso lugar único no mundo. Se você não se expressar, se você não construir, ninguém fará por você. Esta será a escolha que te proporcionará evolução.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

O reencontro da humanidade quando a Europa aportou com suas Grandes Navegações nas Américas revela a imensa complexidade por trás das dispersões e desenvolvimentos da história humana

Supõe-se que o Homo sapiens teria chegado ao continente das Américas entre 20 mil e 15 mil anos atrás (mas como já citado há evidências que sugerem a possibilidade de terem chegado há ainda mais tempo do que isto). Quase todos os indícios apontam fortemente a um avanço que começou no extremo noroeste do continente, cruzando da atual Sibéria para o atual Alasca, com uma expansão subsequente, ao longo de milênios, rumo à América do Sul. Naquela época, o nível dos oceanos era bem mais baixo e havia uma conexão por terra firme ligando Ásia e América do Norte.

Mas a história de ocupação dos ancestrais humanos das Américas ainda conserva alguns mistérios. No começo dos Anos 1.990, estudos de um esqueleto no Brasil (batizado de Luzia) encontrado na região de Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais, e que havia décadas estava esquecido num museu, foi datado de aproximadamente 12 mil anos atrás e provou que a migração de ocupação das Américas era muito mais complexa do que se imaginava até então. O crânio de tal esqueleto - o mais antigo até então encontrado no continente - tinha detalhes de anatomia similares aos de africanos e aborígenes da Austrália, e bem distinto da anatomia dos crânios siberianos ou de qualquer uma das populações de nativos indígenas encontradas no continente na chegada dos europeus. E não foi o único encontrado com tais características, dezenas de esqueletos encontrados nos arredores desta região - datados entre 11.500 a.C. a 8.000 a.C. - tinham a mesma característica anatômica, indicando que diferentes povos, de diferentes origens, e em migrações sequenciais ao longo de milênios, teriam ocupado e se espalhado pelas Américas. Outra evidência, esta genética, tão misteriosa quanto, é a presença de tribos indígenas no Brasil cujo material genético estudado indicou um alto grau de parentesco com povos polinésios da Oceania, sem similaridade genética alguma com povos da Ásia ou da América do Norte.

Mas ainda que perdurem muitos mistérios, independentemente desta profunda diversidade ainda não totalmente explicada sobre estes primeiros habitantes do continente, há um fator mais claro dentre todos a ter sido determinante neste reencontro humano no momento da chegada dos europeus ao continente, o fato de que nas Américas não havia ferramentas de metal, cavalos, burros, camelos ou bois, assim como não havia escrita. Todo o transporte era feito a pé, em canoa ou em trenó, e a capacidade de estoque de conhecimento era limitada.

O continente teve densidades populacionais expressivas em seu passado remoto, sobretudo na parte de novas terras que vieram a ser encontradas e exploradas pela Espanha, onde capitais pré-colombianas como Teotihuacan ou Tenochtitlan tiveram uma escala que superava em muito ao tamanho das primeiras cidades na China e na Mesopotâmia, e faziam com que as antigas cidades da Grécia, como Tirinto e Micenas, ficassem parecendo pouco mais do que povoados fortificados. Entretanto, as condições geográficas e naturais das terras em que estas densas populações viviam não lhes facilitou o desenvolvimento de inovações que pudessem ter representado uma barreira para o domínio cultural europeu que se seguiu.

Também nas terras às quais chegaram os portugueses e que vieram a ser o Brasil o histórico de ocupação era antigo e com áreas de grande densidade populacional, como na região da bacia da Floresta Amazônica, onde foram encontrados fortes indícios de que uma parte considerável da floresta teve influência antropogênica em seu passado, isto é, alterações provocadas na estrutura natural causadas pela presença humana. A marca mais destacada encontrada pelos arqueólogos é a "terra preta", um solo altamente nutritivo, formado por uma mistura de restos de carvão, fragmentos de cerâmica e excrementos humanos, em extratos de até dois metros de profundidade e que são datados de alguns milhares de anos atrás.

Já no litoral, as marcas mais antigas encontradas foram os sambaquis - montes de conchas que podiam chegar a 50 metros de altura em alguns casos - datados de mais de 8 mil anos, construídos por um povo que caçava peixes, tubarões, baleias e golfinhos (cujos ossos foram encontrados nestes montes) o que é um forte indício de que detinham uma grande habilidade e bons conhecimentos de navegação em mar aberto. Sua cultura acabou desaparecendo por volta do Século I, quando passam a ser encontrados indícios arqueológicos da presença de agricultores do ramo tupi-guarani nas regiões antes ocupadas por aqueles construtores de sambaquis.

Culturalmente, entre estes povos ancestrais originais, especialmente na região da Amazônia, era muito comum o xamanismo, a crença de que certas pessoas conseguiriam transitar misticamente entre as esferas dos espíritos dos mortos, dos animais e dos seres humanos. Um elemento muito comum nestas mitologias nativas era a crença de que no início dos tempos, quando tudo teria sido criado, praticamente não havia diferença entre os seres humanos e os outros animais, que pensariam e se comportariam mais ou menos da mesma maneira. É um retrato precoce de autoconsciência da natureza animalesca compartilhada pela humanidade com todas as demais espécies animais do planeta.

Entre os idiomas, a língua mais falada na América pré-colombiana era a aruak, um grupo de cerca de sessenta diferentes idiomas aparentados, originário da região da Floresta Amazônica e disperso desde a região do Mar do Caribe, na América Central, até o Chaco, onde hoje é o Paraguai. A segunda maior família linguística era a tupi, que reunia um pouco mais de quarenta diferentes idiomas dispersos desde o norte do que é o Brasil até terras onde hoje está a Argentina. Em terceiro o grupo de idiomas carib, que são cerca de trinta, concentrados ao norte da Amazônia e na América Central. Depois havia o grupo de idiomas macro-jê, que somavam entre vinte e trinta línguas diferentes, sendo o único destes quatro grandes grupos que não era originário de dentro da região da Floresta Amazônica.

Os grupos aruak tinham um comportamento hidrocêntrico; ou seja, tinham no centro de sua cultura o fator de deslocamento pelas águas dos grandes rios, sendo exímios navegadores, que tiveram a capacidade de chegar às ilhas da América Central, tendo sido os primeiros habitantes de Cuba, Hispaniola, Jamaica e Porto Rico, e que, por isto, foram os primeiros que vieram a ter contato com os navegantes europeus da esquadra de Cristóvão Colombo em 1.492. Por onde os aruak estiveram, a tendência foi de formação de alianças relativamente pacíficas com grupos de diferenças étnicas e linguísticas, não havendo uma ideologia de conquista ou de virtudes intrínsecas da guerra. Seus líderes, chamados amulawnaw, eram exaltados pela generosidade e pela capacidade de se comunicar, sendo contraponto aos chamados ipuñoñori-malu (a "gente ruim"), os sujeitos que não tinham habilidade para falar e eram considerados agressivos e antissociais.

Já sobre o tronco linguístico tupi, a maioria das pesquisas científicas concorda em estimar uma idade para ele de aproximadamente 5 mil anos. A sua língua é classificada em 10 ramos diferentes, a metade dos quais sendo encontrados somente na região do Brasil onde está demarcado o estado de Rondônia, próximo à fronteira com a Bolívia, onde acredita-se que é a origem de expansão deste povo. Outros quatro dos dez ramos estão mais espalhados, mas todos restritos à área da Floresta Amazônica. Apenas um ramo deste grupo linguístico, o tupi-gurani, espalhou-se por todo o continente. Este ramo reúne idiomas muito parecidos, que compartilham cerca de 70% dos cognatos de seu vocabulário básico, tendo aparentemente se expandido num movimento de pinça: as evidências sugerem que em algum momento um grupo tupi migrou pelo rio Madeira, desceu o rio Amazonas até sua foz, e a partir de então se expandiu pelo litoral do que hoje é o Brasil, enquanto um outro grupo desceu pelo rio Paraguai em direção ao Pantanal, daí dispersando-se pelo Paraguai e em direção ao sul e ao sudeste do que hoje é o Brasil, este vindo a ser aqueles que foram classificados como guaranis.

Após contornar boa parte da América do Sul por caminhos opostos, estas duas vertentes deste povo se encontraram onde hoje é o litoral sul do estado de São Paulo, numa região conhecida como Cananeia, onde por volta de 1.500 havia uma fronteira entre as terras dos tupiniquins (do ramo tupi) e dos carijós (do ramo guarani), que apesar de ainda conservarem idiomas similares, viviam em guerra uns contra os outros.

Diferentemente aos aruak, a guerra sempre foi uma constante na cultura tupi-guarani. Há uma associação relativamente clara entre as etnias expansionistas e uma "cosmologia predatória" dos tupi. Grupos como os tupinambá, os chiriguano, os juruna e os munduruku eram conhecidos pela ferocidade em batalha e pelo hábito de capturar escravos na guerra, sendo em alguns casos, como os juruna, os munduruku e os mawé, muito comum o uso das cabeças decepadas dos inimigos como troféu de batalha. Suas armas de guerras mais temidas, as ybyrapema, ou "espada tupinambá", como era chamada pelos portugueses, serviam para esquartejar os inimigos de guerra, cuja carne era consumida (cozida) pelos vencedores (inclusive os bebês, com as mães besuntando seus mamilos com o sangue do inimigo para que seus filhos também pudessem desfrutar). Era um ritual que acreditavam servir para absorver a força dos inimigos, por isso sendo fundamental que a participação fosse coletiva. Os povos tupi consideravam aquela forma a mais honrada das mortes, reservada apenas a inimigos que consideravam dignos de recebê-la (jamais dada a mulheres ou crianças). O consumo antropofágico era o ápice de uma cerimônia que objetivava essencialmente a vingança. Aos olhos europeus, tais "costumes bárbaros" se revelavam o mais espantoso dentre todos os encontrados nas novas terras. Era a mesma percepção que os espanhóis tiveram sobre os rituais de sacrifício e extração do coração das vítimas praticado pelo povo azteca no México.

Diferenças e segregações também se faziam presentes entre os povos originários das Américas. Segundo os relatos dos primeiros colonizadores, os botocudos (do grupo macro-jê) eram descritos como vivendo "como animais": sem aldeias permanentes, lavouras, ou uso do fogo, sendo comedores de carne crua, com um estilo de vida altamente móvel, como caçadores-coletores. Os povos tupis se referiam às populações macro-jê como "tapuias", cujo significado seria de certa forma equivalente a "bárbaros", pois eram vistos como "menos desenvolvidos". A etimologia da palavra "tapuia" no idioma tupi não tem um significado referente a uma etnia, refere-se a "aqueles que vivem no meio do mato", sendo assim equivalente àqueles que não viviam organizados em aldeia.

Inicialmente, a ocupação dos portugueses após a sua chegada ao território que hoje é o Brasil se restringiu no primeiro século apenas ao litoral. Assim, praticamente todo o contato que tiveram nos primeiros cem anos de sua presença foi com diferentes povos do ramo tupi e com alguns macro-jê. No interior continental, havia uma maior densidade populacional na região do Alto Xingu, a nordeste do que hoje é o estado federativo brasileiro de Mato Grosso, ao sul da Floresta Amazônica. Nesta região conviviam uma dezena de etnias diferentes, falando idiomas totalmente distintos de três dos grandes troncos linguísticos - gente de fala aruak, como os yawalapiti e os waurá, de fala carib, como os kalapalo e os kuikuro, e de fala tupi, como os kamayurá e os aweti - além dos trumai, que eram de um grupo de língua dita isolada, sem parentesco próximo a nenhum outro idioma conhecido. Todos vivendo em uma cultura compartilhada, relativamente homogênea, com cerimônias em comum, trocas ritualizadas e casamentos frequentes entre grupos diferentes.

O primeiro relato de um europeu sobre esta região apareceu somente em 1.723, de Antônio Pires de Campos, que revelou ter encontrado gente em tanta quantidade que em um dia de marcha era possível cruzar de dez a doze aldeias, todas vivendo de suas lavouras de mandioca, milho, feijão e batatas, e que faziam seus próprios "vinhos", em aldeias interligadas por estradas muito diretas e largas, e conservadas tão limpas que nelas não se achava folha. Calcula-se que 50 mil pessoas viviam no Alto Xingu no Século XVI, o que era a mesma população que vivia na capital portuguesa, Lisboa, naquela época.

Foi em meio a todo este contexto que as famosas cartas de Américo Vespúcio fizeram menção a 4 viagens dele ao "Novo Mundo": uma primeira em 1.497 (nunca comprovada), e outras três amplamente catalogadas. Em todas Vespúcio foi um dos capitães nas respectivas frotas: em 1.499 comandada por Alonso de Ojeda, a serviço da coroa de Castela e Aragão, quando esteve na América Central e onde hoje é a Venezuela, e duas em 1.501 e 1.503 com Gonçalo Coelho, já a serviço da coroa de Portugal, ao longo do litoral do Brasil.

Na viagem entre 1.501 e 1.502 na frota de Gonçalo Coelho, Vespúcio além de ter vindo a ser a responsável por dar o nome de América ao continente, também batizou pontos importantes da costa brasileira, dando os nomes ao rio São Francisco, ao Rio de Janeiro, e a Angra dos Reis.

Nestas viagens, eles também descobriram que nem todos os nativos eram dóceis como os encontrados pela frota de Cabral. Em seu primeiro aporte, na região onde hoje está o Rio Grande do Norte, os índios potiguar mataram e devoraram antropofagicamente a três marinheiros da frota. Mais ao sul voltaram a fazer contato quando encontraram índios tupiniquim, em expedição que foi até o limite demarcado pelo Tratado de Tordesilhas, em Cananeia, onde deixou a um degredado para viver entre os nativos, um homem supostamente chamado Cosme Fernandes Pessoa, que viria a ficar conhecido como "Bacharel de Cananeia".

Na sua última viagem, foi Vespúcio quem fundou o primeiro assentamento português na América da Sul, onde hoje é a cidade de Cabo Frio, a 150 quilômetros a nordeste do Rio de Janeiro. Lá ele deixou 24 homens vivendo, e que acabaram mortos por indígenas nativos, um destino supostamente muito similar ao que teria, oito décadas depois, o primeiro assentamento inglês no território onde hoje são os Estados Unidos quando - em 1.585, em Roanoke, onde hoje é a Carolina do Norte - 89 homens, 17 mulheres e 11 crianças desapareceram na primeira tentativa de formação de uma colônia local.

As duas expedições de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio passaram meses no litoral do Brasil e informaram ao rei que ali não havia metais ou especiarias. A única descoberta com valor comercial era um pau-de-tinta, de nome pau-brasil, que servia para tingir tecidos. Para realizar esta única atividade econômica identificada, o rei português cedeu o monopólio de exploração pelos anos seguintes a um consórcio formado por Fernando de Noronha (cujo nome na verdade era Fernão de Loronha) e pelo abastado italiano Bartolomeu Marchioni. Um mercado que eles tiveram que disputar com piratas franceses financiados pelo banqueiro Jean Angot, que chegaram pela primeira vez às novas terras descobertas pelos portugueses já em 1.504.

Na expedição de 1.503 houve um desentendimento entre Coelho e Vespúcio, o qual levou este último a ser expulso de Portugal. Ele, o homem que deu nome ao novo continente, voltou então a buscar emprego junto aos espanhóis, tendo passado a ser a partir de então o capitão-mor das esquadras da Espanha.

A ocupação europeia do novo continente se dividiu em três frentes. Na América do Norte os espanhóis quase que imediatamente encontraram ouro e prata no densamente povoado Império Asteca. Na América Central, eles não tardaram a descobrir que havia um outro oceano do outro lado das terras às quais tinham chegado, além de logo também terem tomado conhecimento de que havia uma outra área densamente povoada mais ao sul, onde também havia abundância de ouro, o Império Inca, ao qual logo trataram de alcançar. Enquanto isso, sem a mesma sorte de logo se deparar com ouro, os portugueses desceram o litoral da América do Sul tentando encontrar os mesmos minerais achados em grandes quantidades pelos espanhóis.

Nesta busca, em 1.514 duas caravelas comandadas pelos portugueses Estevão Fróis e João de Lisboa chegaram à foz do Rio da Prata, que num primeiro momento acreditaram ser o estreito final do novo continente, o qual se contornado supostamente levaria às "Ilhas das Especiarias", na Ásia. Ao fazer contato com os nativos locais nesta foz, imediatamente repararam que não falavam as mesmas línguas faladas no litoral brasileiro. Aquele era o povo charrua, o qual também chamou atenção deles por não andar desnudos como os demais nativos com quem tinham tido contato mais ao norte. Eles andavam com o corpo coberto, afinal precisavam enfrentar temperaturas bem mais frias, por isso usavam peles de guanaco como vestimenta.

Com estes povos eles encontraram um martelo de prata (por isso o rio ganhou tal nome) que lhes foi contado que viria de altas e distantes montanhas onde a neve nunca desaparecia, de um povo rico em ouro, que teria tanto ouro que o usava em suas armaduras. Lá também haveria prata, cobre e estanho. Estas notícias vieram a iniciar uma obsessiva corrida de expedições que duraria pelos 20 anos seguintes na busca por encontrar àquele reino fabulosamente rico, que se tratava do Império Inca, na Cordilheira dos Andes, onde hoje é o Peru.

Quando os serviços de espionagem identificaram onde estava a nova foz alcançada, imediatamente descobriram que estavam em terras demarcadas pelo Tratado de Tordesilhas como sendo possessões da Espanha, a qual enviou para lá uma expedição comandada por Juan Díaz de Solís, que lá aportou em 1.516. Tal frota subiu o "mar doce" até onde desaguava o rio Uruguai, onde ao tentar desembarcar muitos acabaram mortos por um ataque de flechas dos guerreiros locais. Entre os mortos estava o capitão Solís.

Os sobreviventes tentaram regressar, mas acabaram naufragando nas imediações da ilha de Florianópolis, onde o grupo acabou vivendo por mais de quinze anos dentro de uma tribo carijó. Tais indígenas confirmaram a eles as histórias sobre um poderoso império de ouro e prata das distantes montanhas com neve eterna, e lhes indicaram que havia uma rota por terra partindo da região onde hoje é o estado brasileiro de Santa Catarina - o Caminho do Peabiru - pela qual se alcançava o rio Paraná e de lá se chegava às terras do tão poderoso império.

Desde 1.513 os espanhóis já sabiam que havia um outro oceano do lado oposto às novas terras, tendo o alcançado por terra pela América Central. Dispostos a contornar o continente e alcançar a estas outras águas, onde já tinham deduzido que ficaria um caminho às "Ilhas das Especiarias", em 1.519 foi enviada uma expedição sob bandeira espanhola, ainda que comandada inteiramente por navegantes portugueses dissidentes, para tentar lá chegar. O capitão desta frota foi o português Fernão de Magalhães (para os espanhóis: Hernando de Magallanes). Aquela frota viria a ser a primeira na história a circundar inteiramente o Planeta Terra, provando empírica e cientificamente a sua circunferência.

Assim como Colombo, Magalhães foi parar em Castela porque após ser recebido em audiência, o rei português lhe havia negado o financiamento à sua viagem exploratória para alcançar à Ásia pelo lado ocidental. Sua frota zarpou de Sevilha em 20 de setembro de 1.519 com 5 naus. Parou primeiro nas Ilhas Canárias e de lá seguiu para o Rio de Janeiro, onde havia vivido por quatro anos um dos membros da tripulação - João Lopes de Carvalho, o Carvalhinho - ali degredado em 1.511 e resgatado em 1.515 pelo navegador espanhol Francisco Torres, que o levou a Sevilha.

Em janeiro de 1.520 a expedição fez a sua terceira parada, na foz do rio da Prata, onde após um mês de explorações, concluiu não se tratar do estreito que levaria a um outro oceano. Seguiu então viagem e em 27 de novembro conseguiu se livrar do labirinto de ilhas e montanhas geladas e concluir o cruzamento daquele que ficou sendo chamado como "Estreito de Magalhães", adentrando ao Oceano Pacífico.

Só que suas dificuldades ainda estavam muito longe de terminarem. Foi uma desgastante viagem que parecia não ter fim pelas águas do Pacífico. A expedição teve que lidar com algumas tentativas de motim de uma tripulação física e mentalmente exaurida. Somente em 13 de março de 1.521 a frota chegou às Filipinas. Lá, fez uma aliança com o rajá Zula, o que os envolveu em um conflito militar com o rajá da ilha vizinha, no qual Fernão de Magalhães acabou morto, assim como diversos de seus homens. A partir de então só a nau Victoria, comandada por Juan Sebastián Elcano, seguiu viagem até aportar, enfim, nas Ilhas Molucas (hoje parte da Indonésia) em novembro de 1.521, por fim alcançando à terra das especiarias.

Dali em diante as rotas eram melhor conhecidas, e em 8 de setembro de 1.522, prestes a completar 3 anos desde que tinha dali zarpado, Elcano aportou novamente em Sevilha, concluindo assim, com apenas 18 sobreviventes da tripulação original de 265 homens, a primeira viagem de circum-navegação do planeta a ter sido feita na história.

Os limites de ousadia e coragem aventureira dos navegantes naqueles tempos os embrenharam em peripécias que pareciam impensáveis e até impossíveis. Em 1.524, dois náufragos da expedição de Solís, ambos portugueses - Aleixo Garcia e Francisco Pacheco - arregimentaram cerca de dois mil índios flecheiros carijó para uma jornada em busca da Serra da Prata através do Caminho do Peabiru. Eles partiram da foz do rio Itapocu e foram margeando os rios Iguaçu, Paraná e Paraguai até a confluência deste último com o rio Pilcomayo, no local onde viria a ser fundada, muito tempo depois, a cidade de Assunção. Percorreram durante quatro meses uma distância de aproximadamente mil quilômetros até encontrarem os chacos paraguaios, uma extensa região inundada que impedia que as trilhas tupi-guarani se encontrassem às trilhas inca.

A partir de então subiram por via fluvial pelas águas do Pilcomayo até as proximidades de sua nascente, já cerca à Cordilheira dos Andes, onde atacaram vilarejos em Chuquisaca, próximo a Sucre, na atual Bolívia, tendo saqueado artefatos como taças de prata, peitorais de ouro e diversos objetos feitos de estanho. Estavam, e não sabiam, a uns 150 quilômetros da "montanha de prata" em Potosi. Entretanto, satisfeitos com os saques, regressaram. Quando estavam chegando de volta ao rio Paraguai, acabaram atacados por índios payaguá, tendo muitos morrido. Os poucos sobreviventes, entre os quais Francisco Pacheco, conseguiram regressar ao Porto dos Patos, em Santa Catarina, com apenas alguns poucos dos objetos saqueados. Foi o suficiente para que os relatos daquela aventura chegassem a Portugal e Espanha através dos navegantes das expedições que ali paravam, o que acelerou a corrida ao ouro e à prata por aquela rota. Uma nova tentativa por terra pelo Peabiru, desta vez partindo de Cananeia, foi liderada em 1.531 por Pero Lobo e Francisco de Chaves, junto a uma tropa de oitenta índios. Todos acabaram dizimados no meio do caminho, sem que nunca se tenha tido notícias de onde nem por quem o foram, simplesmente desapareceram.

Oficialmente para as cortes de Portugal e Espanha, a "Corrida à Serra da Prata" através das terras que hoje são parte do Brasil foi iniciada em 1.530 pela expedição portuguesa de Martim Afonso de Sousa. Uma empreitada na qual todos os navegantes, tanto portugueses quanto espanhóis, dependiam de estadias estratégicas no litoral do Brasil e um apoio logístico fundamental para viabilizar tais expedições. Neste suporte, três nomes se destacavam como seus provedores. Na baía onde veio a ser fundada a cidade de Salvador vivia desde 1.509 o náufrago Diogo Álvares Correia, o Caramuru, casado com Paraguaçu, filha de Itaparica, chefe dos índios tupinambá. Mais ao sul, em São Vicente, vivia desde 1.508 o degredado João Ramalho, ali abandonado à própria sorte pelos portugueses, tendo se casado com Bartira, filha de Tibiriçá, chefe dos índios guaianá, quem era uma de suas várias esposas, tendo tido ele incontáveis filhos e netos. Ali ele liderava uma tropa de cerca de cinco mil índios tupiniquim, comandando uma rede de escravização (sobretudo de índios carijó). Ramalho foi nomeado oficialmente por Martim Afonso como capitão-mor da vila de Santo André, no planalto paulista. E, por fim, perto dali, mais ao sul, vivia o já citado Bacharel de Cananeia, por lá abandonado (supõe-se que pela primeira expedição de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio, mas podendo ter desertado ou da esquadra de Cabral ou mesmo de alguma expedição secreta anterior). Ele vivia com seis esposas, tinha duzentos escravos carijó, diversos genros que eram náufragos ou desterrados europeus (tanto portugueses como espanhóis) e liderava uma tropa de cerca de mil índios embiá (do tronco guarani), com a qual comandava uma intensa rede de escravização intertribal por ele ali implementada.

Ainda que intensa, a corrida para alcançar a serra da prata pelo sul, no entanto, seria curta, pois já em 1.532 o espanhol Francisco Pizarro a alcançaria pelo norte, descendo a partir da América Central (notícia que só viria a chegar à Europa em 1.534). Definitivamente então ficou claro para a monarquia espanhola a importância estratégica logística da bacia do rio da Prata, tanto que a primeira tentativa de fundação de Buenos Aires - que séculos depois se tornaria a capital da Argentina, na foz do rio da Prata - deu-se com a fundação de uma vila em 1.535 pelo nobre Pedro de Mendoza, comandante de uma rica expedição financiada por banqueiros alemães, a qual acabou destruída em ataque de uma coligação de índios querandi, charrua e chaná, a qual deixou cerca de dois mil e quinhentos espanhóis mortos.

Não foram só os espanhóis que tiveram dificuldades em formar vilas e ocupar as terras às quais chegaram, o infortúnio português foi similar. Justamente a partir de 1.534 o rei de Portugal iniciou o fracionamento do território brasileiro em capitanias entregues a 12 donatários: sete militares com honraria de bravura por lutas na África e/ou na Índia, mais quatro que eram parte da tesouraria ou fiscais de controle administrativo da monarquia, e uma como prêmio a um navegante, Pero de Góis, um dos capitães da frota dos irmãos Martim Afonso e Pero Lopes de Sousa, ambos também donatários e heróis nacionais em batalhas anteriores.

Destes 12 donatários, 4 sequer colocariam seus pés nas terras recebidas, tendo só 8 aventureiros o feito. E só duas capitanias viriam a conseguir de fato serem estabelecidas: em Pernambuco, onde vingou a lavoura de cana de açúcar, e em São Vicente, graças mais à trupe de náufragos e degredados que ali viviam liderados por João Ramalho do que pelas deliberações do rei Dom João III. Mas tais donatarias nunca conseguiram se transformar em núcleos efetivos de colonos no sentido literal da palavra, sendo na verdade ocupadas por conquistadores dispostos a saquear as riquezas, principalmente minerais, da terra.

Nesta divisão da "Costa do Brasil", os principais beneficiados foram os irmãos que comandaram a expedição de 1.530: Martim Afonso de Sousa e Pero Lopes de Sousa que, juntos, receberam os territórios que iam de Macaé até Laguna, numa estratégica invasão das terras castelhanas delimitadas pelo Tratado de Tordesilhas cujo objetivo era controlar as trilhas indígenas do Caminho do Peabiru que levavam à Serra da Prata. Pero Lopes ainda recebeu terras no nordeste, entre a baía da Traição (cerca de 75 quilômetros no norte de João Pessoa) e a ilha de Itamaracá, como recompensa por dali ter expulsado e prendido traficantes franceses de pau-brasil. Ambos, no entanto, não se dedicaram a colonizar tais terras: Martim Afonso comandou a vitória sobre o Egito e se tornou vice-rei na Índia, e Pero Lopes comandou vitórias contra a Turquia na Argélia e no Marrocos, e depois se juntou a seu irmão na Índia.

A capitania entre os rios Macaé e Itapemirim foi dada a Pero de Góis, o único não ligado à nobreza portuguesa. Era a menor, com litoral menos propício a portos naturais, além do donatário ser o com menor capacidade de financiamento. Ali ele fundou uma vila mais para o interior, onde hoje é a cidade de Campos dos Goytacazes, onde ele tentou estabelecer uma lavoura de cana de açúcar. A vila acabou destruída pelos índios goitacá, um dos poucos povos que não eram tupi a ocupar aquele litoral (tinham ascendência macro-jê). Segundo relatos contemporâneos pela ótica cultural europeia: eram índios altos, robustos e de pele mais clara que os demais, exímios corredores e, sobretudo, nadadores, capazes de caçar tubarões através de lutas corporais. Usavam flechas longas e peçonhentas em seus ataques, sendo considerados o mais bárbaro, cruel e indomável dentre os povos do novo mundo, pois não conseguiam viver em paz, estando sempre em guerra, tanto entre si quanto contra outros povos. Ainda tinham o hábito de trucidarem os adversários abatidos e ingerir sua carne ainda crua como mantimento (não por ritual de vingança ou empoderamento).

Um destino final muito parecido teve a capitania logo ao norte desta, a do Espírito Santo, aonde o herói de guerra Vasco Fernandes Coutinho chegou com 60 degredados condenados para formar um povoado e tentar estabelecer uma lavoura onde veio a ser a cidade de Vila Velha. Acabaram atacados e derrotados por duas populações macro-jê, os índios aimoré e goitacá, que resistiram às tentativas de escravização e destruíram as vilas e lavouras. Vasco Fernandes havia se desfeito de todo o seu patrimônio em Portugal visando enriquecer ainda mais nas "terras do brasil", mas fracassou, terminando pobre e entregue ao vício de bebidas e tabaco adquirido em sua capitania. Foi por esta época que o costume indígena com o fumo foi introduzido nas cortes europeias, e quem o apresentou por lá foi Luís de Góis, irmão do donatário Pero de Góis.

Mais ao sul dos conflitos nas capitanias de São Tomé e do Espírito Santo, os europeus se envolveram no conflito entre dois grandes grupos tupi do qual, pelos seus interesses comerciais, vieram a tomar parte. Os índios tamoio, da região do Rio de Janeiro, aliaram-se aos traficantes de pau-brasil franceses, e os índios tupiniquim, da região de São Paulo, aliaram-se aos colonos portugueses. Produziu-se então uma série de conflitos que levaram, por décadas, à destruição e à reconstrução de várias das vilas construídas naquele litoral.

Enquanto isto, a norte do continente, também se buscava alcançar ao rico império do ouro. As tentativas subindo pelo rio da Prata e percorrendo as trilhas indígenas do Peabiru não foram as únicas tentadas para acessar à lendária "Terra do Ouro e da Prata". Buscou-se acessá-la também subindo através daquele que os espanhóis chamavam de rio Marañón (que anos depois viria a ser rebatizado como rio Amazonas, o maior do mundo).

O primeiro a se aventurar por suas águas, em fevereiro de 1.500 (ainda antes de Cabral aportar no litoral brasileiro) foi o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón. A partir de então, todos os que por ali passaram escutaram relatos de que das altas e distantes montanhas nevadas havia um povo muito rico e poderoso. Justamente por causa destes relatos, as capitanias mais a norte do litoral brasileiro foram divididas entre funcionários da Fazenda Real, alguns dos homens mais ricos de Portugal: o tesoureiro-mor do reino Fernão d'Álvares de Andrade, e o feitor da Casa da Índia em Lisboa, João de Barros. Eles sonhavam alcançar tais terras, e escolheram uma posição geograficamente estratégica no mapa a ser ocupada para que a partir dali pudessem tentar cumprir tal objetivo. Eles nunca puserem seus pés no Brasil, mas organizaram uma grande expedição com 10 embarcações - cinco naus e cinco caravelas - comandada por Aires da Cunha, visando alcançar a "Serra da Prata" através das águas do rio Amazonas.

Este litoral, no entanto, a costa brasileira leste-oeste, representava as maiores dificuldades náuticas para aqueles tempos de pura navegação a vela. A frota nunca alcançou a foz desejada. Entre as que naufragaram e as que se perderam e aportaram na América Central, morreram cerca de 800 dos mais de 1.500 tripulantes que dela fizeram parte. Alguns dos sobreviventes construíram uma vila onde hoje está a cidade de São Luís, mas sofreram constantes ataques de outra população macro-jê, os índios tremembé, e tal vila não prosperou.

Aquela foz logo seria alcançada pelos espanhóis, só que em sentido contrário. Em 27 de dezembro de 1.541, Francisco de Orellana partiu junto a 57 homens, dentre os quais aquele que foi o cronista da aventura, o frei dominicano Gaspar de Carvajal. Zarparam das imediações de onde hoje está a cidade de Quito, numa tempestuosa rota pelos rios Coca, Napo, Ucayali, Solimões e Marañón. Neste trajeto, na confluência de desague do rio Trombetas, travaram um combate com um bando de mulheres guerreiras que Carvajal descreveu como "muito alvas e altas, com cabelos longos, entrançados e enrolados no alto da cabeça, muito robustas e andando nuas em pelo com arcos e flechas nas mãos, fazendo cada uma tanta guerra quanto dez índios homens". Tais guerreiras mataram a nove espanhóis da expedição, e por tal combate, inspirando-se nas cavaleiras amazonas das lendas de mulheres guerreiras dos mitos gregos, foi rebatizado aquele rio para sempre, deixando de ser o rio Maranón e passando a ser o “rio das Amazonas”. Jamais se conseguiu definir que grupo de mulheres foi aquele o qual Carvajal descreveu.

Em 26 de agosto de 1.542, a insólita expedição adentrou as águas do Oceano Atlântico, concluindo uma viagem de navegação por 7.250 quilômetros de água doce. Da foz rumaram para o Caribe, de onde conseguiram seguir para a Espanha. Em 1.544, Orellana seria nomeado o governador daquela região pelo rei espanhol Carlos V, voltando então para lá, sem que jamais tenha conseguido refazer o trajeto em sentido contrário, contra as correntes. Sua nova expedição acabou toda ela sucumbindo, com toda a tripulação da frota sendo morta pela malária.

Como mostra a narrativa, a ocupação dos novos territórios ocupados pelos europeus foi lenta e tortuosa. Especialmente na parte lusitana, onde não foram encontrados minerais de alto valor para financiar o ímpeto expedicionário. Diante de tamanha dificuldade, a principal referência portuguesa para a ocupação da parte do território que lhe cabia ficou quase inteiramente restrita às três capitanias que ficavam mais próximas das ilhas de Cabo Verde, na costa africana, e por isso de mais fácil conexão logística com Portugal; as capitanias da Baía de Todos os Santos, de Ilhéus e de Porto Seguro.

A de Ilhéus foi entregue ao escrivão da Fazenda Real, Jorge de Figueiredo Correia, que nela instalou oito engenhos de açúcar em parceria com o banqueiro italiano Lucas Giraldes (ambos jamais puseram seus pés no Brasil, enviando empreendedores para suas missões). Ali houve harmonia com os índios tupiniquim e tupinambá. Entretanto, a partir da instalação dos engenhos de açúcar na região, foi iniciado um conflito com os índios aimoré, numa guerra que devastou a vila e arruinou os engenhos. A de Porto Seguro foi entregue ao navegador Pero do Campo Tourinho, que para ela se mudou com sua família e cerca de 600 colonos, que conviviam em harmonia pelo escambo com os índios tupiniquim, mas que acabaram vítimas da guerra de Ilhéus contra os aimoré, que também os atacaram e destruíram as vilas ali criadas. E a da Baía de Todos os Santos, localizada onde hoje está a cidade de Salvador, foi dada a Francisco Pereira Coutinho - conhecido como "Rusticão" - que era o filho do alcaide-mor (espécie de prefeito) da cidade portuguesa de Santarém e dono de uma extensa ficha militar na Índia. Ele ali chegou junto a cerca de 200 colonos às terras onde já vivia o náufrago Diogo Álvares - o Caramuru - a quem o donatário, por estratégia política, deu posse de parte de suas terras. Ainda assim, o destino final das vilas ali criadas foi similar a partir da instalação de engenhos e da implementação do trabalho forçado, quando os nativos - neste caso, índios tupinambá - rebelaram-se e declaram guerra, destruindo a vila e os engenhos. Francisco Pereira acabou capturado, morto, cozinhado e devorado num ritual de vingança da etnia tupi.

A única capitania que realmente prosperou nesta primeira fase de tentativa portuguesa de colonização (mas não sem luta) foi a de Pernambuco. O donatário que lá fundou as vilas de Olinda e Igaraçu foi Duarte Coelho, filho bastardo de Gonçalo Coelho. Herói de guerra em conflitos contra hindus e árabes na Índia, na Malásia, na Tailândia e na Cochinchina, ele chegou à costa do pau-brasil junto à esposa e a famílias de agricultores, todos senhores rurais do norte de Portugal. Eram cerca de 200 colonos, gente pobre e que sempre viveu das lavouras. Ali formaram cinco engenhos de açúcar com mudas de cana extraídas da ilha da Madeira. Ao buscar a escravização de indígenas para o cultivo e a colheita da cana-de-açúcar, tais vilas e engenhos também viveram em constantes ataques dos povos caeté e tabajara, mas ainda assim conseguiram prosperar e obter crescimento.

Tantas tentativas fracassadas levaram o rei de Portugal, então Dom João III, a instalar um governo geral do território a partir de 1.549, quando adquiriu a capitania da Baía de Todos os Santos e ali instalou a primeira capital do Brasil, em Salvador, com orçamento público sustentado pelo erário português. Isto implicava no início da cobrança de impostos aos colonos. Tudo sob o comando de Tomé de Souza, um militar, oficial com elogiada folha de serviços no Marrocos e na Índia, membro dos Cavaleiros da Ordem de Cristo, e primo-irmão de Martim Afonso de Souza e do vedor da Fazenda portuguesa, Antônio de Ataíde. Junto ao comando político deste braço militar, seguiam com ele para formar a estrutura de governo no Brasil uma tríade formada pelo controlador das finanças - o provedor-mor Antônio Cardoso de Barros (um donatário que nunca antes havia posto seus pés no Brasil) - pelo braço da justiça a ser controlado pelo ouvidor-geral Pero Borges (ele mesmo um condenado em Portugal por corrupção e desvio de verbas de obras públicas) e por um defensor dos valores cristãos, Manuel de Nóbrega, representando a Companhia de Jesus (os padres jesuítas), uma então jovem ordem religiosa criada por Ignácio de Loyola, e que quase à mesma época havia enviado o espanhol Francisco Xavier à Ásia com a mesma missão.

Tal decisão do rei português tinha o propósito de marcar estrategicamente as terras portuguesas, visto que outros reinos da Europa secretamente planejavam expansões similares às realizadas por Portugal e Espanha. Isto se manifestaria logo a seguir, em 1.555, quando a França invadiu e ocupou o Rio de Janeiro, com planos de a partir dali obter o controle sobre o Cabo da Boa Esperança e a rota para a Índia. Naquele momento, tanto Portugal como a Espanha buscavam ter um maior controle e domínio sobre os vastos territórios que tinham alcançado, tentando a implementação de um vasto aparelho burocrático para dar mais eficiência ao funcionamento e à manutenção de um sistema militar, judiciário e de arrecadação. Às "terras de além-mar" passaram então a ser enviados desembargadores, juízes, ouvidores, escrivães, meirinhos, cobradores de impostos, vedores, almoxarifes e outros burocratas em geral, então chamados "letrados". Até então a contribuição do Brasil às receitas do Reino de Portugal era mínima, sendo tão só a oitava entre as regiões que contribuíam para a receita da monarquia. Era 61 vezes menor do que a receita de Portugal, 26 vezes menor do que a da Índia, um quarto da obtida com a escravidão no Castelo da Mina, um terço do Arquipélago dos Açores e um terço da Ilha da Madeira, inferior também às obtidas em Angola e na Guiné, e superior apenas à de Cabo Verde.

Foi somente em 1.549 que foi iniciada a obra da primeira cidade portuguesa nas Américas: Salvador, na baía de Todos os Santos. A matéria-prima para a construção foi obtida através de trocas - escambo - com os indígenas locais, que cediam insumos e trabalho buscando receber principalmente produtos que lhes dessem vantagem competitiva - tecnológica e/ou militar - frente às tribos adversárias e concorrentes. Assim, a contabilidade portuguesa em tais tempos indicava a cessão de anzóis, machados, machadinhas, foices, enxadas, facas, tesouras, cunhas, furadores e podões (a notar: todas ferramentas de metal), além de um único bem de luxo pelos nativos muito desejado: espelhos. Não havia transações financeiras com circulação de moeda. Era a forma como o trabalho das populações originárias da região era remunerado.

Desta forma, como um retrato em resumo, a ocupação do litoral brasileiro pelos portugueses nos entornos de 1.550 d.C. contava com a povoação de Duarte Coelho ao norte - na capitania de Pernambuco, a única a prosperar pelas mãos privadas dos donatários que as receberam -, na região central havia o novo governo-geral, em Salvador, e ao sul havia um conjunto de vilas - São Vicente, Santos, Santo André e Bertioga - próximas ao limite imposto pelo Tratado de Tordesilhas, em Cananeia, em local onde náufragos e degredados oriundos das primeiras expedições exploratórias tinham construído uma ampla rede de relacionamentos com os indígenas daquela região. Por ali, mas no interior, em janeiro de 1.554 seria fundado o Colégio Jesuíta de São Paulo de Piratininga, no coração das aldeias tupiniquim do líder Tibiriçá, sogro do náufrago João Ramalho, o embrião de formação da cidade de São Paulo.

Assim, dois dos primeiros centros urbanos brasileiros foram edificados em torno de dois náufragos venerados pelos nativos: o próprio Ramalho e Diogo "Caramuru" Álvares. Um se tornou a primeira capital e o outro que séculos depois veio a se tornar a maior cidade da América do Sul. Foi em meio a este contexto político que em 1.555 a França veio a invadir e ocupar a Baía de Guanabara, fazendo uma aliança estratégica com os índios tamoio. Isto se deu já durante a gestão do segundo governador-geral do Brasil, Duarte da Costa. O mesmo ano de 1.555 no qual os caeté atacaram Olinda e os tupinambá atacaram a Salvador, episódio que levou à Guerra de Itapuã, quando a supremacia da pólvora e dos armamentos de metal ficaria evidente, não tendo morrido nenhum português, ainda que muitos tenham saído feridos. Do outro lado, cerca de 700 tupinambás foram mortos. No ano seguinte, após naufragar durante seu retorno a Portugal, morreria e terminaria consumido em ritual antropofágico dos caeté o primeiro bispo católico do Brasil, Pero Fernandes Sardinha.

A série de insurreições e ameaças ao território colonial português só veio a ser interrompida quando, já durante a gestão do terceiro governador-geral, Mem de Sá, houve a expulsão dos franceses da costa brasileira, após um conflito armado em 1.560 no qual os portugueses, com apoio armado dos índios temiminó, reconquistaram a região da baía da Guanabara. Em decorrência, em 1.565 ali foi fundada a cidade do Rio de Janeiro. Assim, de forma definitiva estava consolidada a ocupação por Portugal da Costa do Brasil.

O principal objetivo português na América do Sul, entretanto, demorou para ser alcançado. A Espanha havia descoberto prodigiosas quantidades de metais preciosos - sobretudo ouro e prata - no México em 1.519, no Peru em 1.539, e na Bolívia em 1.545. Portugal não estava tendo a mesma sorte no Brasil (só viria a descobrir ouro, na região de Minas Gerais, em 1.695). Por isto, durante aproximadamente dois séculos a presença de Portugal no Brasil se manteria pequena e sob crescimento lento.

Era uma presença lusitana massivamente masculina e extrativa de matérias-primas de baixa atratividade econômica. As marcas desta ocupação estão na biologia daqueles que se tornaram seus descendentes nestas terras: o mtDNA - ou DNA mitocondrial - uma minúscula fita de material genético que fica no interior das mitocôndrias e que são as usinas de energia das células de organismos vivos complexos como o ser humano, só é transferido geneticamente pelo lado materno, não participando, portanto, do embaralhamento genético que acontece toda vez que óvulos e espermatozoides se mesclam e formam um embrião. O mtDNA é a principal fonte de informação para os geneticistas no estudo das linhagens maternas. Há uma tendência clara de diferenciação geográfica e, em menor grau, étnica, entre os chamados haplogrupos de mtDNA. E os haplogrupos ameríndios - isto é, das populações nativas do continente antes da chegada dos europeus - são bem característicos do continente, e tem uma ligação clara de semelhança com o de determinadas populações que ocupam a Sibéria, no leste asiático (o que é um dos argumentos mais fortes em favor da origem majoritariamente asiática dos nativos americanos).

Antropólogos e geneticistas contam com um equivalente igualmente útil para estudar as linhagens paternas. Trata-se do cromossomo Y, a marca genômica da masculinidade corporal. Biologicamente, todos os homens herdam um cromossomo X da mãe e um cromossomo Y do pai, e todas as mulheres têm uma dupla de cromossomos X, sem ter cromossomo Y.

Em todas as populações das Américas, o percentual de pessoas que tem um mtDNA de origem ligada às populações nativas é relativamente alto, enquanto a presença de cromossomos Y de origem ligada às populações nativas é percentualmente baixíssima. Esta assimetria é típica e característica de populações conquistadas por outras na história em todas as partes do planeta, tanto os israelitas do Antigo Testamento, gregos e romanos, os macedônios de Alexandre, os mongóis de Genghis Kahn, como espanhóis e portugueses na ocupação das Américas, todos estes sempre seguiram um mesmo figurino, também claramente visível nas histórias da África e da Oceania: numa operação de conquista, os homens dos grupos vencidos são mortos e aniquilados, e as mulheres são ou violentadas sexualmente ou condicionadas de forma submissa ao sexo com os homens conquistadores. É a reprodução da natureza animal dentro do espírito humano, já que é um padrão de conquista também encontrado na ampla maioria das espécies animais que compartilham o planeta com os seres humanos.

Esta história intensa também é manifestada na ocupação pela Espanha destas novas terras às quais seus navegadores chegaram. E como logo encontraram ouro e prata, riquezas amplamente cobiçadas na Europa, o processo de ocupação em tais terras foi ainda mais intenso e militarmente violento. Em 16 de novembro de 1.532, em Cajamarca, no Peru, o conquistador espanhol Francisco Pizarro, liderando um grupo de apenas 160 soldados esfarrapados, capturou o imperador inca Atahualpa, monarca absoluto, considerado pelos seus súditos como o "deus Sol", e que estava cercado naquele dia por um fiel exército de 80 mil guerreiros, todos dispostos a morrer por ele. Entretanto eram os espanhóis quem tinham armas mais poderosas. Foi esta captura o que viabilizou a conquista do Império Inca, o maior e mais adiantado estado das Américas naquele início de Século XVI.

Segundo os breves relatos de espanhóis presentes no campo de batalha em Cajamarca naquele dia: "Era tão grande a quantidade de ouro e prata em sua indumentária, que era maravilhoso observar o reflexo do sol sobre ela. Atahualpa estava ricamente vestido, com uma coroa e um colar de grandes esmeraldas. Seus esquadrões começaram a entrar na praça e a ocupar cada espaço vazio. Entoavam cânticos. Esperávamos o encontro escondidos no pátio, cheios de medo, muitos urinaram sem perceber, em estado de absoluto terror. O governador Pizarro enviou ao frei Vicente de Valverde para falar com Atahualpa e pedir para que, em nome de Deus e do rei da Espanha, ele se submetesse à lei de Jesus Cristo. Avançando com uma cruz em uma das mãos e a Bíblia na outra, por entre as tropas indígenas, ele falou a Atahualpa que ensinava aquilo que Deus dizia naquele livro. Atahualpa lhe tomou o livro, e com o rosto extremamente vermelho, atirou-o a uma distância de cinco ou seis passos. O frei então começou a gritar para que aqueles cães inimigos que rejeitavam as coisas de Deus fossem atacados, que Deus absolveria a todos que marchassem contra eles. Pizarro então deu o sinal e começaram os tiros, com a cavalaria e a infantaria neste momento saindo de seus esconderijos. Tinham sido colocadas matracas nos cavalos, animais que os índios nunca tinham visto antes em suas vidas. Com os estampidos das armas, os sons das cornetas, os relinchos dos cavalos, e o barulho das matracas, os índios ficaram apavorados. Tanto que subiam uns nos outros, em verdadeiro pânico. O ataque matou de uma vez a 7 mil índios durante um dia inteiro de carnificina, e muitos outros mais tiveram braços cortados pelas espadas, e outros ferimentos graves. Atahualpa acabou capturado, e Pizarro lhe discursou que eles tinham ido conquistar aquela terra para que todos tomassem conhecimento de Deus e da sagrada fé católica, para que deixassem aquela vida brutal e diabólica que levavam".

As tropas de Pizarro tinham espadas e armaduras de aço, e outas armas, e tinham cavalos para montar. As tropas de Atahualpa tinham pedras, bronze, machados e tacapes de madeira, e apenas acolchoados como armadura, e não tinham animais para montar. Este desequilíbrio foi decisivo na maioria das batalhas. Ainda assim, os espanhóis não se saíram vencedores em todas elas.