sábado, 15 de junho de 2024

AS NAVEGAÇÕES E A OCUPAÇÃO DAS AMÉRICAS


LOPES, Reinaldo José. 1499: o Brasil antes de Cabral. Editora Harper Collins, 2017. (232 páginas)
BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento: um olhar sobre a expedição de Cabral. Editora Estação Brasil, 2016. (120 páginas)
BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições ao Brasil. Editora Estação Brasil, 2016. (164 páginas)
BUENO, Eduardo. Capitães do Brasil: a saga dos primeiros colonizadores. Editora Estação Brasil, 2016. (251 páginas)
BUENO, Eduardo. A coroa, a cruz e a espada: lei, ordem e corrupção no Brasil. Editora Estação Brasil, 2016. (269 páginas)



- Milênios após a humanidade deixar a África e se espalhar pelo planeta, uma grande aventura, que mudaria tudo dali em diante, levaria a raça humana a se reencontrar: a era das grandes navegações transoceânicas. Seu ponto de partida foi no extremo sudoeste da Europa, na ponta da Península Ibérica, numa região ocupada pelo Império Romano entre os rios Douro e Tejo, que ali montou uma colônia batizada como Portus Calle. A região veio a ser conquistada pelos mouros e ficado séculos sob domínio árabe, tendo sido, em 1.097 d.C., conquistada pelas Cruzadas Católicas, que ali fundaram o condado de Portucale. Em 1.139 uma guerra liderada por Afonso Henriques tornou a região independe do reino de Leão e Castela, fundando o reino de Portugal. Em 1.383, Castela voltou a tentar reanexar a região, mas com apoio de arqueiros ingleses, Dom João I venceu a batalha de Aljubarrota. Casou-se então com a inglesa Filipa de Lancaster, com quem teve 5 filhos, quatro homens e uma mulher. O terceiro destes filhos, Dom Henrique, em 1.415 se destacou na conquista das Cruzadas da cidade árabe de Ceuta, na ponta africana do Estreito de Gibraltar. Foi lá, em sessões de tortura aos prisioneiros árabes, que ele tomou conhecimento da origem das rotas comerciais que levavam ouro até lá, levados por caravanas que cruzavam o Deserto do Saara, partindo da região de Mali. O ouro era negociado em "comércio mudo" entre povos que não falavam a mesma língua na foz de um grande rio que desaguava no Oceano Atlântico mais ao sul das Ilhas Canárias (o que posteriormente se soube que era o rio Senegal). Sabendo que não teria como cruzar o deserto, planejou alcançar a foz de tal rio. Ao regressar da batalha, em 1.419, o infante Dom Henrique foi declarado pelo rei, seu pai, como o administrador da Ordem dos Cavaleiros de Cristo, e se isolou num cabo ermo no Algarve às margens do oceano, onde fundou a Escola de Sagres, onde recebia sábios (filósofos), cartógrafos, astrônomos e astrólogos, e onde viria a ser acumulado todo o conhecimento que levou à Era das Navegações.

- A primeira missão exploratória da Escola de Sagres não visou terras árabes (objetivo das Cruzadas) mas terras católicas, então pertences ao reino espanhol de Castela: em 1.425 tentou-se a tomada das Ilhas Canárias, consideradas um ponto estratégico para acessar as opulentes terras do rei Mussa Mali. Tais intentos fracassaram por mais de 10 anos, sem que as Canárias jamais tivessem sido conquistadas pelos portugueses, mas em meio a este período de tentativas, as expedições descobriram e ocuparam os até então inabitados Ilha da Madeira e arquipélago de Açores, mais a noroeste das Canárias.

- Impedido de tomar as Ilhas Canárias, Dom Henrique se viu forçado a enviar suas embarcações à temida e desértica costa africana. Para isso teve que forçar seus navegadores a rumarem aos limites do mundo conhecido, até onde se acreditava serem barreiras intransponíveis. A mais difícil delas para ser superada foi o cabo Bojador, ou Cabo do Medo, mais que tudo uma barreira mental a ser vencida. O obstáculo natural, no Saara Ocidental, era composto por correntes que depois deste ponto se invertiam, com ventos alísios soprando de nordeste o ano inteiro, onde cascatas de areia rubras se desprendiam do penhasco rochoso, onde o mar às vezes "fervia", envolto por brumas de tempestades de areia sopradas pelo deserto sobre perigosos recifes de arestas aguçadas, onde o mar era tão baixo que a 5 quilômetros da costa a profundidade média era de apenas dois metros. Lendas afirmavam que a partir dali era a "tórrida zona", onde o fervor do sol deixava a todos tão negros que queimavam. Era uma visão do inferno bíblico na Terra. Foram necessárias 15 expedições entre 1.424 e 1.434, para que tal barreira fosse suplantada. Em maio de 1.434, foi Gil Eanes o navegador que com uma embarcação mais modesta, uma barcha, manobrou para o ocidente, arriscando-se em alto-mar, e após um dia inteiro de navegação sem ver a costa, dobrou para sudeste e descobriu havê-lo superado, deparando-se com uma baía plácida de águas calmas. No ano seguinte, regressou com uma embarcação maior e repetiu o feito, avançando ainda duzentos quilômetros mais ao sul, onde desembarcaram e se depararam com pegadas humanas e de camelos. Em 1.436, Afonso Gonçalves Baldaia, comandando uma nova expedição, desceria um pouco mais até a Punta Durnford. Ainda faltavam 800 quilômetros e 8 anos de exploração para que Portugal alcançasse o rio Senegal. Mas nesta expedição de 1.436, dois jovens soldados, Heitor Homem e Diogo Lopes de Almeida, foram enviados pelo capitão a cavalo para explorar as terras desérticas e avistaram um grupo de 19 nômades, que tentaram, sem sucesso, capturar. Nesta viagem também caçaram focas, e com isto, pela primeira vez, obtiveram um carregamento comercial exótico que lhes rendeu algum lucro sobre produtos.

- A partir de 1.437, uma fracassada tentativa de conquistar Tânger, no Marrocos, que levou à captura e posteriormente à morte de um dos príncipes portugueses, causou uma instabilidade política que levou as aventuras marítimas pelo Oceano Atlântico a ficarem suspensas por anos. Durante este período, a Escola de Sagres aperfeiçoou seus estudos náuticos e desenvolveu um novo tipo de tecnologia de navegação que viria a revolucionar as viagens oceânicas e proporcionar um espantoso impulso à indústria naval de Portugal: a caravela de velas latinas, uma embarcação que atingia maiores velocidades e era mais facilmente manobrada.

- Em 1.441, comandando a uma caravela, Nuno Tristão foi mais ao sul e chegou a um promontório resplandecente de alvura, o qual batizou como Cabo Branco. No mesmo ano, outra expedição, comandada por Antão Gonçalves, capturou dois nativos azenegues (berberes islamizados) que lhes ensinaram "os caminhos da África". A pedido de Dom Henrique, em dezembro de 1.442, o papa Eugênio IV assinou uma bula de autorização a Portugal para "fazer a guerra contra os infiéis, tirar-lhes as terras e escravizá-los". Entre 1.443 e 1.444, diversas expedições definiram relações de comércio, até que em 1.444 novamente sob o comando de Nuno Tristão, enfim foi alcançada a foz do rio Senegal e a partir dali, em 1.447, a região da Guiné, assim por eles chamada: "a terra dos verdadeiros negros". De acordo aos entrepostos comerciais montados, Portugal foi batizando dali em diante ao litoral africano como: Costa do Ouro, Costa do Marfim, Costa da Pimenta, e Costa dos Escravos. Assim como do outro lado do oceano deu nome de Costa do Brasil, em alusão ao pau-de-tinta que era o principal produto que extraía de lá.

- Depois de 1.447, a resistência dos nativos e outras perturbações políticas internas, impuseram uma nova pausa às viagens, desta vez de 8 anos. Até que em 1.453 houve a queda de Constantinopla, quando os turcos, liderados por um califa chamado Maomé II, invadiram e conquistaram a antiga capital do Império Romano do Oriente, hoje chamada Istambul. Os árabes, então, concentraram o comércio com o Ocidente com os mercadores de Veneza, encarecendo o custo das mercadorias provenientes da Ásia. Os centros financeiros e comerciais de Gênova e Florença, voltaram-se então a financiar as navegações portuguesas, que foram retomadas em 1.455.

- As especiarias da Índia tinham um papel fundamental na economia da Europa, especialmente a pimenta e o cravo. Como não havia condições de alimentar os rebanhos durante o inverno, a quase totalidade do gado era abatida em novembro e a carne mantida por vários meses sem refrigeração adequada, banhada em sal para mitigar seu apodrecimento, e a pimenta, e em menor escala o cravo, eram imprescindíveis para deixar o sabor das conservas menos repulsivo.

- Em 1.455 as navegações de Portugal foram retomadas, desta vez com a contratação de três navegadores italianos: os genoveses Antonio Usodimare e Antonio de Noli, e o veneziano Alvise de Cadamosto, os três precursores dos também italianos Cristóvão Colombo, Giovanni Caboto e Américo Vespúcio.

- Em 13 de novembro de 1.460, aos 64 anos de idade, o infante Dom Henrique faleceu em Sagres. Apenas um terço da costa africana havia sido desvendada por seus navegantes. Tal fato causou mais um período de interrupção das explorações oceânicas, que só vieram a ser retomadas em 1.469, quando ao rico mercador de Lisboa Fernão Gomes foi concedido o direito de seguir explorando comercialmente a costa da África, quando enfim foi dobrada a Costa das Palmas, onde hoje está a Libéria, tendo-se então acreditado, erroneamente, que estavam enfim a caminho de contornar a África.

- O ponto seguinte alcançado pelos portugueses foi o Congo, onde foram estabelecidas intensas relações a partir do momento em que foi visitado pela primeira vez pelo navegador Diogo Cão, em 1.483. Na época, o Congo era um reino altamente centralizado, cuja capital, Mbanza, contava com uma população de 60 mil habitantes, o que a tornava do mesmo tamanho, mais ou menos, do que tinha à época a capital portuguesa, Lisboa, sendo maior do que Londres, que tinha cerca de 50 mil habitantes em 1.500. O rei do Congo, Nzinga a Nkuwu, converteu-se ao catolicismo e mudou seu nome para João I, e mais tarde seria mudado para São Salvador.

- Em 1.474, um médico e astrônomo de Florença, de nome Paolo Toscanelli, enviou uma carta à corte portuguesa afirmando a existência de uma rota para a Índia bem mais curta do que um eventual contorno à África: ele acreditava que a Ásia estava a 3.600 quilômetros a oeste das Ilhas Canárias, uma teoria logo descartada pelos astrônomos do então rei Dom João II. Em 1.477 chegou a Portugal um marinheiro genovês de nome Cristóvão Colombo, que passou anos envolvido com o tráfico de escravos na Fortaleza de São Jorge da Mina, castelo-feitoria português no Golfo da Guiné, em território onde hoje está Gana. Foi lá onde ele tomou conhecimento sobre histórias de misteriosos troncos entalhados levados pelas correntezas que costumavam chegar aos Açores. Juntando a teoria de Toscanelli, as histórias estes troncos e seu estudos cartográficos, elaborou um plano para chegar à Índia pela rota do ocidente, obtendo uma audiência em 1.484 para apresentá-lo a Dom João II. Os preparativos portugueses para uma nova expedição tentando contornar a África já tinham se iniciado, e os planos de Colombo foram postos de lado. Em agosto de 1.487 partiu a expedição comandada por Bartolomeu Dias, que em outubro alcançou o ponto mais distante até então alcançado, por Diogo Cão, ponto onde o litoral africano voltava a ficar desértico. Nos últimos dias do ano a expedição foi atingida por uma forte tempestade que durou duas semanas e afastou as caravelas da costa e para o sul. Quando a tormenta passou, Dias navegou para leste buscando o litoral, mas não o encontrou. Dirigiu-se então para norte, e após navegar por 800 quilômetros avistou altas montanhas. Como a costa seguia para nordeste, havia contornado a África sem vê-la. Em fevereiro de 1.488, na altura de Great Fish River, sua tripulação se amotinou pelo cansaço e pelas deterioradas condições em que viajavam, e ele foi forçado a regressar. Em dezembro de 1.488, 16 meses após partir, regressou a Portugal com a notícia de que havia alcançado dar a volta à África. Ali foram enterradas as chances de Portugal financiar uma expedição de Colombo para uma viagem para tentar alcançar a Índia pelo oeste, e então ele rumou para buscar financiamento para seus planos junto a Fernando de Aragão e Isabel de Castela, na Espanha.

- Aos que embarcavam nas aventuras de navegação oceânica, a coroa portuguesa adiantava um ano inteiro de salários aos que fossem casados e seis meses aos que fossem solteiros, para a sobrevivência de suas famílias, e lhes era concedido um percentual do que fosse conquistado nas aventuras. Era uma empreitada economicamente altamente atrativa, que permitia a todos aqueles que sobreviviam a elas ascender socialmente. Porém, dois em cada três homens que embarcavam nestas aventuras, não regressavam com vida.

- As aventuras de Portugal pelo Oceano Atlântico voltaram a ficar suspensas entre 1.488 e 1.497, consideradas muito dispendiosas para os cofres da corte. Foi o rei Dom Manoel I, quem decidiu retomá-las, impelido pela feito de Cristóvão Colombo, que em 1.492, servindo à família real de Aragão e Castela (Dom Fernando e Dona Isabel), encontrou terras a oeste do Atlântico, que até o dia de sua morte acreditou se tratar da Índia, que estariam, conforme afirmara Toscanelli, a 33 dias de navegação a oeste das Ilhas Canárias. Este erro de interpretação levou a que muito tempo depois viessem a dizer sobre Colombo que ao zarpar não sabia para onde estava indo, ao desembarcar não soube aonde chegara, e ao regressar para casa, não pôde dizer com certeza aonde havia estado.

- Em 7 de junho de 1.494 representantes diplomáticos de Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas, cidade no norte da Espanha. Os portugueses asseguraram com ele a posse de todas as terras no Oceano Atlântico que estivessem a 370 léguas a oeste de Cabo Verde, a partir desta linha imaginária, as posses seriam espanholas. O principal objetivo de Portugal era, até onde se sabe, assegurar a soberania oceânica sobre a área necessária para a realização da "volta do mar", manobra necessária para se cruzar o Cabo da Boa Esperança e contornar a África.

- Em 1.498 Vasco da Gama contornou a África. Em março chegou a Sofala, onde hoje é o território de Moçambique, uma terra também rica em ouro, onde estava naquela época o último porto ao qual chegavam os navegadores árabes e hindus, a partir de onde as viagens ao sul pelo oceano também lhes era um tabu. Dali Vasco da Gama só precisou seguir as rotas de navegação que árabes e hindus já dominavam para, em maio de 1.498, aportar na Índia. Apresentou-se ao Samorim ("senhor do mar") de Calicute, o soberano hindu, como representante de um rei muito rico e poderoso. Entretanto aportou por lá em duas embarcações pequenas e mal aparelhadas, e castigadas pelas muitas semanas no mar. O Samorim desdenhou de presentes tão simplórios e os ignorou. Ofendido, o capitão português retornou às embarcações e fez soar seus canhões contra a cidade indiana ao levantar as âncoras e partir. Em 10 de julho de 1499, foi Nicolau Coelho o primeiro a aportar em Lisboa com a notícia de que era viável a viagem, e que a expedição tinha chegado à Índia. Ao ouvir o relato de Vasco da Gama, o rei português Dom Manoel I imediatamente decidiu enviar, o mais rapidamente possível, uma frota poderosa em armas e cavaleiros portugueses, e repleta de presentes que pudessem provar o tamanho de seu poder.

- Em 8 de março de 1500, oito meses após o regresso da expedição de Vasco da Gama a Portugal, partiu do porto da praia do Restelo, junto ao rio Tejo, a armada de Pedro Álvares Cabral - o capitão então com 32 anos - foi constituída por duas divisões. A primeira composta por cinco naus, duas caravelas, uma nau mercante e uma naveta de mantimentos, junto à nau capitânia e à sota-capitânia, partiria para Calicute, na Índia, com a missão de estabelecer relações comerciais com o Samorim e fundar uma feitoria. A segunda divisão, constituída por uma nau e uma caravela, era capitaneada pelo experiente navegador Bartolomeu Dias, e pararia no meio do caminho na cidade de Sofala, onde hoje é Moçambique, na costa leste da África, voltada para o Oceano Índico, para ali instalar uma feitoria naquela região onde havia uma rica mina de ouro. A missão da expedição era obter - pela diplomacia ou pelas armas - o monopólio do comércio de pimenta e canela que, até então, era mantido por mercadores árabes.

- Na nau capitânia viajavam 7 soldados da guarda pessoal do capitão, 80 marinheiros, 70 soldados, e 33 outros passageiros, sendo 7 serviçais, 2 degredados condenados, 8 frades franciscanos e 8 intérpretes, prisioneiros capturados em viagens anteriores. Na nau soto-capitânia viajavam 160 homens, comandados pelo espanhol Sancho de Tovar. As demais naus levavam cerca de 150 homens cada uma. Na nau de mantimentos viajaram cerca de 80 homens, e as caravelas abrigavam cerca de 50 homens cada uma. Todas as embarcações eram comandadas por Cavaleiros da Ordem de Cristo, uma ordem remanescente da Ordem dos Cavaleiros Templários, fundada em 1.120 durante as Cruzadas e extinta em 1.312 por ordem do papa Clemente V. Era a maior e mais poderosa frota já enviada para singrar o Atlântico, reunindo cerca de 1.500 homens a bordo, que representavam 2,5% do total da população de Lisboa. A frota era mais imponente do que a da segunda viagem de Colombo à América em 1.493, a qual, embora tivesse 17 navios, levava cerca de 1.200 tripulantes.

- Pedro Alvares, era um fidalgo ("filho de algo"), e seguia como um emissário diplomático para lidar com o Samorim. Duas semanas após a partida, uma das naus desapareceu ("comeu-a o mar"). Em 22 de abril a expedição ancorou em frente ao Monte Paschoal, no litoral da Bahia, 44 dias após ter zarpado de Lisboa.

- No diário de bordo da viagem feita por Vasco da Gama - escrito por um marinheiro de nome Álvaro Velho - há a descrição da manobra que ficou batizada como "a volta do mar", uma estratégia derivada das conversações de Vasco com o navegante Bartolomeu Dias, a qual permitiu-o vencer aquele que os marinheiros chamavam de Cabo das Tormentas, e que o rei português Dom João II batizou como Cabo da Boa Esperança. A manobra consistia em se afastar da costa africana ao passar pelas ilhas de Cabo Verde, rumando a sudoeste, para dentro do Oceano Atlântico, para contornar as enervantes calmarias do Golfo da Guiné, com suas correntes contrárias e seu calor insalubre. E está anotado em 22 de agosto de 1.497, quando a armada se encontrava a cerca de três mil quilômetros do litoral da África: "achamos muitas aves feitas como gerações, e quando veio a noite elas tiravam contra o sul-sudeste muito rijas, como aves que iam para a terra". Os portugueses já tinham bons sinais de que havia terras para os lados do que viria a ser descoberto como o litoral do Brasil. Tal manuscrito viajou guardado num baú dentro da cabine de comando de Pedro Álvares Cabral em 1.500.

- Além das descrições de possíveis terras para o lado ocidental, chama a atenção que a esquadra de Cabral passou direto por Cabo Verde, sem parar nestas ilhas para renovar seu estoque de água, como faziam todas as expedições portuguesas que desciam pela costa africana, dando sinal de que tinham planos de fazer esta imprescindível renovação de estoque em alguma outra parada.

- O primeiro encontro com os nativos foi na manhã seguinte à ancoragem, em 23 de abril. Foram enviados à terra o mais experiente dos navegadores da expedição, Nicolau Coelho, junto ao navegador judeu Gaspar da Gama (capturado por Vasco na expedição anterior e utilizado como intérprete português nas viagens à Índia), além de um grumete da Guiné e a um escravo de Angola, um grupo capaz de se comunicar em uma grande diversidade dos idiomas falados na África e na Índia. Nenhum deles conseguiu se comunicar com os primeiros homens encontrados na praia, que para a surpresa deles andavam todos nus. A expedição navegou então ao norte, onde aportou numa baía que veio a ser batizada como Cabrália, onde Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias foram encarregados de comandar um desembarque para obter água e alimentos frescos. Em cada ida à praia, eram feitos escambos com os nativos. O que mais chamou a atenção dos nativos e virou o alvo principal para escambo eram os machados de ferro; com seus machados de pedra levavam três horas para derrubar uma árvore cujos machados de metal eram capazes de derrubar em quinze minutos.

- O primeiro contato entre aquelas duas pontas havia milênios perdidas da humanidade, foi registrada em carta escrita por Pero Vaz de Caminha, ainda que ele não fosse o escrivão oficial daquela expedição. Aqui alguns recortes da bem longa descrição enviada por ele ao rei de Portugal: "A feição deles é serem pardos, maneira d'avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, nem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços de baixo furados e metido por eles um osso branco de comprimento duma mão travessa e de grossura dum fuso d'algodão e agudo na ponta como furador. Metem-no pela parte de dentro do beiço e em tal maneira o trazem ali encaixado, que lhes não dá paixão nem lhes estorva a fala, nem comer, nem beber. Os cabelos seus são corredios e andavam tosquiados de tosquia alta mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma maneira de cabeleira de penas d'ave amarela (...) Passou-se então além do rio Diego Dias, que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso, com sua gaita, e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos. E eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem, ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real (hoje: salto mortal), de que se eles espantavam e riam e folgavam muito (...) Parece-me gente de tal inocência que, se os homem entendesse e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles não têm nem entendem em nenhuma crença, segundo parece (...) Assim, Senhor, que a inocência desta gente é tal, que a d'Adão não seria mais quanta em vergonha (...) o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente".

- Como os nativos que encontraram nas novas terras não dominavam métodos de escrita e impressão, não ficou para a história praticamente nenhum dos sentimentos e impressões que estes tiveram nestes primeiros contatos com os europeus que chegavam em "montanhas que se moviam pelas águas". Os indígenas tupis passaram a chamar os portugueses de "caraíbas", que na sua tradição oral também era o nome dos profetas que lideraram suas grandes migrações continentais no passado. É um sinal de que os viram como entes quase místicos poderosos.

- No dia 2 de maio, após 10 dias no litoral do Brasil, a expedição portuguesa se preparou para partir. Em terra, para conhecer mais dos hábitos dos nativos, foram deixados dois degredados condenados em Portugal por assassinato, um dos quais chamado Afonso Ribeiro (ambos foram resgatados pela expedição de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio, que ali chegaria em 1.502). Alguns grumetes desertaram e fugiram para viver entre os nativos. A naveta de mantimentos, comandada por Gaspar de Lemos, foi enviada de volta a Portugal para anunciar o descobrimento de novas terras, e levava um nativo tupiniquim, duas araras, toras de pau-brasil, arco e flechas, cocares, bodoques e alguns minerais. Todas as demais embarcações seguiram para Calicute. Três dias depois, a expedição enfrentou uma forte tormenta ao cruzar o Cabo da Boa Esperança, quando "as ondas se levantavam tão altas que parecias que as punham nas nuvens e depois no abismo (..) o ruído que fazia o madeirame era medonho". Esta tempestade afundou uma caravela e três naus da expedição, matando a quase 400 navegantes, entre os quais esteve Bartolomeu Dias. E foi só em fins de julho que as cinco embarcações restantes da esquadra chegaram a Sofala. Ainda pararam depois em Melinde, onde conseguiram um navegador hindu para guiá-los até a Índia, onde só aportaram só em 13 de setembro, 6 meses e 4 dias após deixar Lisboa. Com esta chegada, aquela expedição se tornava a primeira na história da humanidade a aportar em 4 continentes distintos do Planeta Terra - Europa, África, América e Ásia -. Ao chegarem, presentearam ao soberano hindu com moedas de ouro e prata, e durante três meses articularam negociações comerciais, interrompidas por um ataque bélico árabe-hindu em 16 de dezembro que matou mais de 50 portugueses, entre eles Pero Vaz de Caminha. Após ser atacada, durante quatro dias, a esquadra descarregou seus canhões sobre Calicute, causando muitas mortes e muito dano à cidade. Zarpou em 20 de dezembro, tendo perdido a mais uma embarcação no retorno, até que em junho de 1.501 chegou à foz do rio Senegal (o "rio do ouro"), onde lá encontraria, por coincidência, a três embarcações mandadas pelo rei Dom Manoel, frota liderada por Gonçalo Coelho, na qual estava Américo Vespúcio - navegante florentino que antes havia estado em uma expedição espanhola à América Central - a frota tinha sido mandada para averiguar as novas terras descobertas pelo próprio Cabral. Somente em 23 de junho de 1.501 a primeira embarcação da esquadra cabralina chegaria a Lisboa. Aquela com Cabral a bordo só ancoraria por lá em 21 de julho, 1 ano e 4,5 meses após ter partido, tendo naufragado nove das treze embarcações que originalmente zarparam, e tendo morrido mais de mil tripulantes da frota, dois terços daqueles que tinham partido de Lisboa.

- Nos dias em que as frotas estiveram ancoradas juntas na foz do rio Senegal, na baía de Bezeguiche (hoje chamada Dakar), Vespúcio ouviu todas as descrições da tripulação de Cabral sobre o litoral do Brasil, o mesmo que ele veio a percorrer logo a seguir desde o que viria a ser séculos depois o estado do Rio Grande do Norte até a região de Cananeia, que viria a fazer parte do estado de São Paulo. Depois destas experiências, em 1.502, Américo Vespúcio regressou a Portugal e escreveu uma narrativa para Francesco de Medici intitulada "Mundus Novus", na qual defendia que as terras descobertas eram parte de um novo continente, não sendo nem o Japão nem a Índia, como presumiu Colombo. A carta virou um best seller na Europa, publicado em seis diferentes idiomas, e graças a seu sucesso, este novo continente ganhou o nome de América. A carta se tornou sucesso pelos exageros de destaque ao canibalismo e à falta de pudor dos nativos daquele mundo novo, mas permite que possamos imaginar o quão impactante e deslumbrante foi a experiência transformadora de entrar em contato com uma realidade tão diferente. Pelas próprias palavras de Vespúcio: "algumas vezes me extasiei com os odores das árvores e das flores, e com os sabores dessas frutas e raízes, tanto que pensava comigo estar perto do paraíso terrestre. E o que direi da quantidade de pássaros, das cores das suas plumagens e de seu cantos, quantos são e de quanta beleza".

- A história dos ancestrais dos nativos deste novo continente era bem antiga. O Homo Sapiens teria chegado ao continente das Américas entre 20 mil e 15 mil anos atrás. Quase todos os indícios apontam fortemente a um avanço que começou no extremo noroeste do continente, cruzando da atual Sibéria para o atual Alasca, com uma expansão subsequente, ao longo de milênios, rumo à América do Sul. Naquela época, o nível dos oceanos era bem mais baixo (cerca de 100 metros) e havia uma conexão por terra firme conectando Ásia e Américas.

- No começo dos Anos 1990, estudos de um esqueleto no Brasil - batizado de Luzia, encontrado na região de Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais, havia décadas esquecido num museu, e datado de aproximadamente 12 mil anos atrás - provou que a migração de ocupação das Américas era muito mais complexa do que se imaginava até então. O crânio de tal esqueleto, o mais antigo até então encontrado no continente, tinha detalhe de anatomia similares aos de africanos e aborígenes da Austrália, e distinto da anatomia dos crânios siberianos ou de qualquer uma das populações de nativos indígenas encontradas no continente na chegada dos europeus. E não foi o único, dezenas de esqueletos encontrados nos arredores desta região - datados entre 11.500 a.C. a 8.000 a.C. - tinham a mesma característica. Isto indica diferentes povos, de diferentes origens, e em migrações sequenciais ao longo de milênios, ocupando e se espalhando pelas Américas. Tais evidências são endossadas pela descoberta de antigo artefatos produzidos por seres humanos e datados de 13 mil atrás na região de Monte Verde, no sul do Chile, próximo a onde atualmente está a cidade de Puerto Montt, local onde não foram encontradas ossadas humanas tão antigas quanto, mas que provam uma ocupação humana remota e mais complexa e mais antiga do que a inicialmente pensada.

- O domínio de técnicas agrícolas e de criação de animais conferiu a diversos povos uma vantagem competitiva e demográfica que os levou a expansões de escala continental. É por isso que as línguas e culturas da família indo-europeia, derivadas de um tronco linguístico-cultural comum dominaram praticamente toda esta região entre a Índia ao oeste europeu, com raríssimas exceções em presença de troncos linguísticos que não o indo europeu, como é o caso das línguas dos bascos, dos húngaros e dos finlandeses. A história de ocupação de absolutamente todos os continentes do Planeta Terra ao longo da história traz complicadas misturas de migrações, conflitos e guerras, redes de cooperação e de trocas comerciais, diplomacias e alianças, que juntaram e sobrepuseram populações para montar o mapa de diversidade cultural da humanidade.

- O grego e o latim descendem de uma língua pré-histórica perdida, falada há vários milhares de anos. E tanto o hebraico quanto o árabe são línguas semitas, com tantas semelhanças que também descendem de um outro idioma antiquíssimo e desaparecido. E tanto os grupos que falam idiomas do grupo indo-europeu e do grupo semita devem ter se separado e divergido numa época ainda mais antiga, possivelmente da Era do Gelo, para que as línguas tenham tido tempo de se diferenciar tanto. A distância entre as línguas do grupo indo-europeu e do grupo semita na Europa e no Oriente Médio é mais ou menos equivalente à que existe entre os dois principais grupos linguísticos que existiam no Brasil à época da chegada dos portugueses, o tupi e o jê.

- Dado o isolamento e a passagem do tempo, as línguas sofrem alterações de pronúncia, vocabulário e gramática pela tendência a se assumir funções idiossincráticas regionais, sofrendo "mutações" aparentemente aleatórias, muito parecidas com o processo causado pelo isolamento das constantes trocas de letras químicas do DNA que acometem todos os seres vivos conforme os milênios e milhões de anos vão passando. Se este "estado da natureza" do Homo Sapiens tivesse persistido indefinidamente, o mapa linguístico do planeta teria ficado absurdamente diversificado, bem mais do que os cerca de seis mil idiomas que persistem no Século XXI. Mas ao longo da história, processos políticos de dominação política foram forças centrípetas, centralizadoras, que impediram as forças centrífugas, descentralizadoras, de diferenciação linguística. Bolsões com imensa diversidade de idiomas persistiram, sobretudo na Nova Guiné e na América do Sul. O continente sul-americano, aliás, que é responsável sozinho por 1/4 do total de famílias linguísticas do planeta (108 famílias sul-americanos dentro de um total de 420 no planeta inteiro). Estima-se que à época da chegada dos europeus à América do Sul o número era muito maior, chegando a cerca de 1.500 línguas. Importante ainda notar que, do total de grupos linguísticos sul-americanos, metade corresponde a línguas isoladas, sem nenhuma relação claramente discernível de parentesco com qualquer outro idioma.

- O passado das terras às quais chegaram os portugueses e que vieram a ser o Brasil tem um histórico de ocupação antigo. Na região da Bacia da Floresta Amazônica havia uma grande densidade populacional com fortes indícios de que parte considerável da floresta tem influência antropogênica, isto é, foram geradas pela influência da presença humana. A marca mais destacada é a "terra preta", um solo altamente nutritivo, formado por uma mistura de restos de carvão, fragmentos de cerâmica e excrementos humanos, em extratos de até dois metros de profundidade datados de alguns milhares de anos. Já no litoral, as marcas mais antigas são os sambaquis, montes de conchas que podiam chegar a 50 metros de altura em alguns casos, e datados de mais de oito mil anos. Estes povos caçavam além de peixes, tubarões, baleias e golfinhos, o que é um forte indício de que detinham uma grande habilidade e bons conhecimentos de navegação em mar aberto. Sua cultura acabou desaparecendo por volta do início da "era cristã", quando passam a existir indícios arqueológicos da presença de povos agricultores do ramo tupi-guarani.

- Entre as culturas originais da Amazônia, era muito comum o xamanismo, crença de que certas pessoas conseguiriam transitar misticamente entre as esferas dos espíritos dos mortos, dos animais e dos seres humanos. Era um elemento muito comum nestas mitologias nativas a crença de que, no início dos tempos, quando tudo haveria sido criado, praticamente não havia diferença entre seres humanos e os animais, que pensariam e se comportariam mais ou menos da mesma maneira. De certa forma, pode-se considerar que fosse uma autoconsciência da natureza animalesca compartilhada pela humanidade com todas as espécies animais do planeta.

- No território que veio a ser ocupado por Portugal e veio a formar o Brasil, a língua mais falada era a aruak, um grupo de cerca de sessenta diferentes idiomas aparentados, originário da região da Floresta Amazônica e disperso desde a região do Mar do Caribe, na América Central, até o Chaco, onde hoje é o Paraguai. A segunda maior família linguística é a tupi, que reúne um pouco mais de quarenta diferentes idiomas dispersos desde o norte do que é o Brasil até terras onde hoje está a Argentina. em terceiro o grupo de idiomas carib, que são cerca de trinta, concentrados ao norte da Amazônia e na América Central. E há o grupo de idiomas macro-jê, que somam entre vinte e trinta línguas diferentes, sendo o único destes quatro grandes grupos que não é originário de dentro da região da Floresta Amazônica.

- Os grupos aruak têm um comportamento hidrocêntrico, ou seja, tem no centro de sua cultura o fator de deslocamento pelas águas dos grandes rios, sendo exímios navegadores, que tiveram a capacidade de chegar às ilhas da América Central, tendo sido os primeiros habitantes de Cuba, Hispaniola, Jamaica e Porto Rico, tendo sido, portanto, os primeiros a terem tido contato com os navegantes europeus da esquadra de Cristóvão Colombo em 1492. Por onde os aruak estiveram, a tendência foi de formação de alianças relativamente pacíficas com grupos de diferenças étnicas e linguísticas, não havendo uma ideologia de conquista ou de virtudes intrínsecas da guerra. Seus líderes, chamados amulawnaw, eram exaltados pela generosidade e pela capacidade de se comunicar, sendo contra-ponto aos chamados ipuñoñori-malu, a "gente ruim", os sujeitos que não tinham habilidade para falar, sendo considerados agressivos e anti-sociais.

- A maioria das pesquisas científicas concorda em estimar uma idade para o tronco linguístico tupi de aproximadamente 5 mil anos. A sua língua é classificada em 10 ramos diferentes, a metade dos quais são encontrados somente na região do Brasil onde está demarcado o estado de Rondônia, próximo à fronteira com a Bolívia, onde acredita-se que é o origem deste povo; outros quatro dos dez ramos estão mais espalhados, mas todos restritos à área da Floresta Amazônica. Apenas um ramo deste grupo linguístico, o tupi-gurani, espalhou-se por todo o continente. Este ramo reúne idiomas muito parecidos, que compartilham cerca de 70% dos cognatos de seu vocabulário básico. Este grupo aparentemente se expandiu num movimento de pinça. AS evidências sugerem que algum momento um grupo migrou pelo rio Madeira, desceu o rio Amazonas até sua foz, e a partir de então se expandiu pelo litoral do que hoje é o Brasil. Outro grupo desceu pelo rio Paraguai em direção ao Pantanal, daí dispersando pelo Paraguai e em direção ao sul e ao sudeste brasileiro, vindo a ser os que foram classificados como guaranis. Após contornar boa parte da América do Sul por caminhos opostos, as duas vertentes deste povo se encontraram onde hoje é o litoral sul do estado de São Paulo, numa região conhecida como Cananeia, onde por volta de 1500 havia uma fronteira entre as terras dos tupiniquins (do ramo tupi) e dos carijós (do ramo guarani), que apesar dos idiomas similares, viviam em guerra uns contra os outros. Diferentemente aos aruak, a guerra sempre foi uma constante na cultura tupi-guarani. Há uma associação relativamente clara entre as etnias expansionistas e uma "cosmologia predatória" dos tupi. Grupos como os tupinambá, os chiriguano, os juruna e os munduruku eram conhecidos pela ferocidade em batalha e pelo hábito de capturar escravos na guerra, sendo em alguns casos, como os juruna, os munduruku e os mawé, muito comum o uso das cabeças decepadas dos inimigos como troféu de batalha. Suas armas de guerras mais temidas, as ybyrapema, ou "espada tupinambá", como era chamada pelos portugueses, serviam para esquartejar os inimigos de guerra, cuja carne era consumida (cozida) pelos vencedores (inclusive os bebês, com as mães besuntando seus mamilos como o sangue do inimigo), num ritual que acreditavam que servia para absorver a força de seus inimigos. Os povos tupi consideravam aquela a mais hornrada das mortes, reservada apenas a inimigos que consideravam dignos de recebê-la, jamais a mulheres ou crianças. O consumo antropofágico era o ápice de uma cerimônia que objetivava essencialmente a vingança. Aos olhos europeus, tais "costumes bárbaros" se revelavam o mais espantoso dentre todos os encontrados nas novas terras, a mesma percepção que os espanhóis tinham sobre os rituais de sacrifício e extração do coração das vítimas praticado pelos aztecas no México.

- Segundo os relatos dos primeiros colonizadores, os botocudos, a linhagem do grupo macro-jê, eram descritos como vivendo "como animais", sem aldeias permanentes, lavouras, ou uso do fogo, sendo comedores de carne crua, com um estilo de vida altamente móvel, como caçadores-coletores. E os povos tupis se referiam às populações macra-jê como "tapuias", cujo significado seria equivalente a "bárbaros", como se fossem vistos por eles como "menos desenvolvidos", já que a etimologia da palavra tapuia no idioma tupi não tem qualquer significado referente a uma etnia, sendo equivalente àqueles que não viviam organizados em aldeia.

- Quando os portugueses chegaram ao território que hoje é o Brasil, sua ocupação se restringiu no primeiro século ao litoral. No interior continental, a maior densidade populacional estava na região do Alto Xingu, a nordeste do que hoje é o estado federativo brasileiro de Mato Grosso, ao sul da Floresta Amazônica. Nesta região conviviam uma dezena de etnias diferentes, falando idiomas totalmente distintos de três dos grandes troncos linguísticos - gente de fala aruak, como os Yawalapiti e os Waurá, de fala carib, como os Kalapalo e os Kuikuro, e de fala tupi, como os Kamayurá e os Aweti - além dos Trumai, de um grupo de língua dita isolada, sem parentesco próximo a nenhum outro idioma conhecido, e todos vivendo em uma cultura compartilhada, relativamente homogênea, com cerimônias em comum, trocas ritualizadas e casamentos frequentes entre grupos diferentes. O primeiro relato de um europeu sobre esta região é de 1723, de Antônio Pires de Campos, que revelou ter encontrado gente em tanta quantidade que em um dia de marcha era possível cruzar de dez a doze aldeias, todas vivendo de suas lavouras de mandioca, milho, feijão e batatas, e que faziam seus próprios "vinhos", em aldeias interligadas por estradas muito diretas e largas, e conservadas tão limpas que nelas não se achava folha. Calcula-se que 50 mil pessoas viviam no Alto Xingu no Século XVI, o que era a mesma população que vivia na capital portuguesa, Lisboa.

- A viagem entre 1.501 e 1.502 da frota de Gonçalo Coelho, da qual fazia parte Américo Vespúcio, além de ter vindo a ser a responsável por dar o nome de América ao continente, também batizou pontos importantes da cota brasileira, dando os nomes de rio São Francisco, Rio de Janeiro, e Angra dos Reis. Também descobriu que nem todos os nativos eram dóceis como os encontrados pela frota de Cabral. Seu primeiro aporte foi na região onde hoje está o Rio Grande do Norte, onde os índios potiguar mataram e devoraram antropofagicamente, três marinheiros da frota. Mais ao sul voltaram a fazer contato quando encontraram índios tupiniquim. Esta expedição foi até o limite demarcado pelo Tratado de Tordesilhas, em Cananeia, onde deixou a um degredado para viver entre os nativos, um homem supostamente chamado Cosme Fernandes Pessoa, que viria a ficar conhecido como "Bacharel de Cananeia".

- As cartas de Américo Vespúcio faziam menção a 4 viagens suas ao "Novo Mundo", uma primeira em 1.497 (nunca comprovada), e outras três amplamente catalogadas, em todas como um dos capitães nas respectivas frotas: em 1.499 comandada por Alonso de Ojeda, a serviço da coroa de Castela e Aragão, quando esteve na América Central e onde hoje é a Venezuela, e duas em 1.501 e 1.503 com Gonçalo Coelho, já a serviço da coroa de Portugal, ao longo do litoral do Brasil. Nesta última, Vespúcio fundou o primeiro assentamento português na América da Sul, onde hoje é Cabo Frio, a 150 quilômetros a nordeste do Rio de Janeiro. Lá ele deixou 24 homens vivendo, e que acabaram mortos por indígenas nativos, um destino supostamente muito similar ao que teria, oito décadas depois, o primeiro assentamento inglês no território onde hoje são os Estados Unidos, quando em 1.585 em Roanoke, onde hoje é a Carolina do Norte, 89 homens, 17 mulheres e 11 crianças desapareceram na primeira tentativa de formação de uma colônia local. Na segunda expedição, um desentendimento entre Coelho e Vespúcio levou este último a ser expulso de Portugal, tendo então, o homem que deu nome ao novo continente, passado a ser o capitão-mor das esquadras da Espanha.

- As duas expedições de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio passaram meses no litoral do Brasil e informaram ao rei que ali não havia metais ou especiarias. A única descoberta com valor comercial era um pau-de-tinta, de nome pau-brasil, que servia para tingir tecidos. Para realizar esta única atividade econômica identificada, o rei português cedeu o monopólio de exploração pelos anos seguintes através de contrato firmado com um consórcio formado por Fernando de Noronha (cujo nome na verdade era Fernão de Loronha) e pelo abastado italiano Bartolomeu Marchioni. Mercado que tiveram que disputar com piratas franceses, financiados pelo banqueiro Jean Angot, e que chegaram pela primeira vez às novas terras descobertas pelos portugueses naquele mesmo ano de 1.504.

Em 1.514, duas caravelas comandadas pelos portugueses Estevão Fróis e João de Lisboa chegaram à foz do Rio da Prata, que num primeiro momento acreditaram ser o estreito final do novo continente, que se contornado levaria às "Ilhas das Especiarias", na Ásia. Fizeram contato com nativos locais, que imediatamente repararam que não falavam as mesmas línguas faladas no litoral brasileiro. Eram os charrua, que também chamaram atenção deles por não andarem desnudos como os demais nativos com quem tinham tido contato, mas com o corpo coberto, para enfrentar as temperaturas mais frias, com peles de guanaco. Com estes povos encontraram um martelo de prata (por isso o rio ganhou tal nome) que logo descobriram que viria de altas e distantes montanhas onde a neve nunca desaparecia, de um povo rico em ouro, tanto que o usavam em suas armaduras, onde também haveria prata, cobre e estanho, notícias que viriam a iniciar uma obsessiva corrida de expedições que duraria 20 anos para encontrar àquele reino fabulosamente rico, o Império Inca, na Cordilheira dos Andes, onde hoje é o Peru. Quando os serviços de espionagem identificaram onde estava a nova foz alcançada, imediatamente descobriram que estavam em terras demarcadas pelo Tratado de Tordesilhas como sendo possessões da Espanha, que enviou uma expedição comandada por Juan Díaz de Solís, que lá chegou em 1.516. Esta frota subiu o "mar doce" até onde desaguava o rio Uruguai, onde ao tentar desembarcar muitos acabaram mortos por um ataque de flechas dos guerreiros locais, incluindo o capitão Solís. Os sobreviventes tentaram regressar, mas acabaram naufragando nas imediações da ilha de Florianópolis, onde o grupo acabou vivendo por mais de quinze anos dentro de uma tribo carijó. Tais indígenas confirmaram a eles as histórias sobre um poderoso império de ouro e prata das distantes montanhas com neve eterna, e lhes indicaram que havia uma rota por terra partindo da região onde hoje é o estado brasileiro de Santa Catarina - os Caminhos do Peabiru - pela qual se alcançava o rio Paraná e de lá se chegava às terras do tão poderoso império.

- Desde 1.513 os espanhóis já sabiam que havia um outro oceano do lado oposto às novas terras, tendo o alcançado por terra pela América Central. Dispostos a contornar o continente e alcançar a estas outras águas, onde já tinham deduzido ficaria um caminho às "Ilhas das Especiarias", em 1.519 foi enviada uma expedição sob bandeira espanhola, ainda que comandada inteiramente por navegantes portugueses dissidentes. O capitão era Fernão de Magalhães (para os espanhóis: Hernando de Magallanes), e aquela frota seria a primeira na história a circundar inteiramente o Planeta Terra, provando empírica e cientificamente a sua circunferência. Assim como Colombo, Magalhães foi parar em Castela porque após ser recebido em audiência, o rei português lhe havia negado o financiamento à sua viagem exploratória para alcançar à Ásia pelo lado ocidental. A frota zarpou de Sevilha em 20 de setembro de 1519 com 5 naus. Parou primeiro nas Ilhas Canárias e de lá seguiu para o Rio de Janeiro, onde havia vivido por quatro anos um dos membros da tripulação - João Lopes de Carvalho, o Carvalhinho - ali degredado em 1.511 e regatado em 1.515 pelo navegador espanhol Francisco Torres, que o levou a Sevilha. Em janeiro de 1.520 a expedição fez a sua terceira parada, na foz do rio da Prata, onde após um mês de explorações, concluiu não se tratar do estreito que levaria a um outro oceano. Seguiu viagem e em 27 de novembro a expedição conseguiu se livrar do labirinto de ilhas e montanhas geladas e concluir o cruzamento daquele que ficou sendo chamado como "Estreito de Magalhães", adentrando ao Oceano Pacífico. Mas as dificuldades ainda estavam muito longe de terminarem, foi uma desgastante viagem que parecia não ter fim pelas águas do Pacífico, em que teve que lidar com algumas tentativas de motim de uma tripulação física e mentalmente exaurida (em fevereiro, Carvalhinho acabou morrendo envenenado numa destas conspirações). Em 13 de março de 1.521 a frota chegou às Filipinas. Lá foi feita uma aliança com o rajá Zula, o que os envolveu em um conflito militar com o rajá da ilha vizinha, no qual Fernão de Magalhães acabou morto, assim como diversos homens. A partir de então só a nau Victoria, comandada por Juan Sebastián Elcano, seguiu viagem e aportou enfim nas Ilhas Molucas (hoje parte da Indonésia) em novembro de 1.521, enfim alcançando a terra das especiarias. Dali em diante as rotas eram melhor conhecidas, e em 8 de setembro de 1.522, prestes a completar 3 anos desde que tinham dali zarpado, Elcano aportou novamente em Sevilha, concluindo assim, com apenas 18 sobreviventes da tripulação original de 265 homens, a primeira viagem de circum-navegação do planeta a ter sido feita na história.

- Em 1.524, dois náufragos da expedição de Solís, ambos portugueses - Aleixo Garcia e Francisco Pacheco - arregimentaram cerca de dois mil índios flecheiros carijó para uma jornada em busca da Serra da Prata pelo caminho do Peabiru. Partiram da foz do rio Itapocu e foram margeando os rios Iguaçu, Paraná e Paraguai até a confluência deste último com o rio Pilcomayo, no local onde viria a ser fundada, muito tempo depois, a cidade de Assunção. Percorreram durante quatro meses uma distância de aproximadamente mil quilômetros até encontrarem os chacos paraguaios, uma extensa região inundada que impedia que as trilhas tupi-guarani se encontrassem às trilhas inca. A partir de então subiram pelo via fluvial as águas do Pilcomayo até as proximidades de sua nascente, já nas proximidades da Cordilheira dos Andes, onde atacaram vilarejos em Chuquisaca, próximo a Sucre, na atual Bolívia, tendo saqueado artefatos como taças de prata, peitorais de ouro e diversos objetos feitos de estanho. Estavam, e não sabiam, a uns 150 quilômetros da "montanha de prata" em Potosi. Satisfeitos com os saques, regressaram. Quando estavam chegando de volta ao rio Paraguai, foram atacados por índios payaguá. Os poucos sobreviventes, entre os quais Francisco Pacheco, conseguiram regressar ao Porto dos Patos com apenas alguns poucos dos objetos saqueados. Foi o suficiente para que os relatos daquela aventura chegassem a Portugal e Espanha através dos navegantes das expedições que ali paravam, acelerando a corrida ao ouro e à prata. Uma nova tentativa por terra pelo Peabiru, esta partindo de Cananeia, foi liderada em 1.531 por Pero Lobo e Francisco de Chaves, junto a uma tropa de oitenta índios. Todos acabaram dizimados no meio do caminho, sem que nunca se tenha tido notícias de onde nem por quem o foram, eles desapareceram.

- A "Corrida à Serra da Prata" foi iniciada em 1.530 pela expedição portuguesa de Martim Afonso de Sousa. Uma empreitada na qual todos os navegantes, tanto portugueses quanto espanhóis, dependiam de estadias estratégicas no litoral do Brasil. Três nomes se destacavam como seus provedores. Na baía onde veio a ser fundada a cidade de Salvador vivia desde 1.509 o náufrago Diogo Álvares Correia, o Caramuru, casado com Paraguaçu, filha de Itaparica, chefe dos índios tupinambá. Mais ao sul, em São Vicente, vivia desde 1.508 o degredado João Ramalho, ali abandonado à própria sorte pelos portugueses, casou-se com Bartira, filha de Tibiriçá, chefe dos índios guaianá, quem era uma de suas várias esposas, tendo tido ele incontáveis filhos e netos. Ali ele liderava uma tropa de cerca de cinco mil índios tupiniquim, comandando uma rede de escravização (sobretudo de índios carijó). Ramalho foi nomeado oficialmente por Martim Afonso como capitão-mor da vila de Santo André, no planalto paulista. E, por fim, perto dali, mais ao sul, vivia o Bacharel de Cananeia, por lá abandonado se supõe que pela primeira expedição de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio, mas podendo ter desertado ou da esquadra de Cabral ou mesmo de alguma expedição secreta anterior. Ele vivia com seis esposas, tinha duzentos escravos carijó, diversos genros que eram náufragos ou desterrados europeus (tanto portugueses como espanhóis) e liderava uma tropa de cerca de mil índios embiá (do tronco guarani), com a qual comandava uma intensa rede de escravização intertribal por ele ali implementada. A corrida para alcançar a serra da prata pelo sul, no entanto, seria curta, pois já em 1.532 o espanhol Francisco Pizarro a alcançaria pelo norte, descendo a partir da América Central, notícia que só viria a chegar à Europa em 1.534. Logo em seguida houve a primeira tentativa de fundação de Buenos Aires, que séculos depois se tornaria a capital da Argentina, na foz do rio da Prata. A vila fundada em 1.535 pelo nobre Pedro de Mendoza, comandante da rica expedição financiada por banqueiros alemães, acabou destruída em ataque de uma coligação de índios querandi, charrua e chaná, a qual deixou cerca de dois mil e quinhentos espanhóis mortos.

- Foi justamente a partir de 1.534 que o rei de Portugal iniciou o fracionamento do território brasileiro em capitanias entregues a 12 donatários - sete deles militares com honraria de bravura por lutas na África e/ou na Índia, mais quatro que eram parte da tesouraria ou fiscais de controle administrativo da monarquia, e um navegante, Pero de Góis, um dos capitães da frota dos irmãos Martim Afonso e Pero Lopes de Sousa, ambos também donatários e heróis nacionais de batalhas passadas -. Destes doze donatários, quatro sequer colocariam seus pés nas terras recebidas, tendo só oito aventureiros o feito. Só duas delas conseguiriam se estabelecer, a de Pernambuco, onde vingou a lavoura de cana de açúcar, e a de São Vicente, graças mais à trupe de náufragos e degredados que ali viviam liderados por João Ramalho do que pelas deliberações do rei Dom João III. E tais donatarias nunca foram núcleos de colonos no sentido literal da palavra, sendo na verdade ocupadas por conquistadores dispostos a saquear as riquezas, principalmente minerais, da terra.

- Na divisão da "Costa do Brasil", os principais beneficiados foram os irmãos que comandaram a expedição de 1.530: Martim Afonso de Sousa e Pero Lopes de Sousa, juntos, receberam os territórios que iam de Macaé até Laguna, numa estratégica invasão das terras castelhanas delimitadas pelo Tratado de Tordesilhas, cujo objetivo era controlar as trilhas indígenas do caminho do Peabiru que levavam à Serra da Prata (território onde hoje são a Bolívia e o Peru). Pero Lopes ainda recebeu terras no nordeste, entre a baía da Traição (cerca de 75 quilômetros no norte de João Pessoa) e a ilha de Itamaracá, uma recompensa por dali ter expulsado e prendido traficantes franceses de pau-brasil. Ambos, no entanto, não se dedicaram a colonizar tais terras, Martim Afonso comandou a vitória sobre o Egito e se tornou vice-rei na Índia, e Pero Lopes comandou vitórias contra a Turquia na Argélia e no Marrocos, e depois se juntou a seu irmão na Índia.

- A capitania entre os rios Macaé e Itapemirim foi dada a Pero de Góis, o único não ligado à nobreza portuguesa. Era a menor, com litoral menos propício a portos naturais, além do donatário ser o com menor capacidade de financiamento. Ele fundou uma vila mais para o interior, onde hoje é a cidade de Campos dos Goytacazes, onde tentou estabelecer uma lavoura de cana de açúcar. A vila acabou destruída pelos índios goitacá, um dos poucos povos que não eram tupi a ocupar aquele litoral, pois tinham ascendência macro-jê (grupo também conhecido como índios botocudos). Segundo os relatos contemporâneos, pela ótica cultural europeia: eles eram índios altos, robustos e de pele mais clara que os demais, exímios corredores e, sobretudo, nadadores, capazes de caçar tubarões através de lutas corporais; usavam flechas longas e peçonhentas em seus ataques, sendo considerados o mais bárbaro, cruel e indomável dentre os povos do novo mundo, não conseguindo viver em paz, sempre em guerra tanto entre si quanto contra outros povos, além de terem o hábito de trucidarem os adversários abatidos e ingerir sua carne ainda crua como mantimento, e não por ritual de vingança ou empoderamento. Um destino final muito parecido ao da capitania logo ao norte desta, a do Espírito Santo, aonde o herói de guerra Vasco Fernandes Coutinho chegou com 60 degredados condenados para formar um povoado e tentar estabelecer uma lavoura onde veio a ser a cidade de Vila Velha, mas acabaram atacados e derrotados por duas populações macro-jê, os índios aimoré e goitacá, que resistiram às tentativas de escravização e destruíram as vilas e lavouras. Vasco Fernandes havia se desfeito de todo o seu patrimônio em Portugal visando enriquecer ainda mais nas "terras do brasil", mas fracassou, terminando pobre e entregue ao vício de bebidas e tabaco adquirido em sua capitania. Por esta época, o costume indígena com o fumo foi introduzido nas cortes europeias, e quem o apresentou por lá foi Luís de Góis, irmão do donatário Pero de Góis.

- Mais ao sul dos conflitos nas capitanias de São Tomé e do Espírito Santo, que terminaram em vitórias indígenas sobre os colonizadores portugueses, os europeus foram levados para dentro de um conflito entre dois grandes grupos tupi do qual, pelos seus interesses comerciais, vieram a tomar parte. Os índios tamoio, da região do Rio de Janeiro, aliaram-se aos traficantes de pau-brasil franceses, e os índios tupiniquim, da região de São Paulo, aliaram-se aos colonos portugueses, produziram uma série de conflitos que levaram, por décadas, à destruição e à reconstrução de várias das vilas construídas naquele litoral.

- Na corrida à "Terra do Ouro e da Prata", as tentativas subindo o rio da Prata e percorrendo as trilhas indígenas do Peabiru não foram as únicas, tentou-se também acessar a região subindo aquele que os espanhóis chamaram de rio Marañón, aquele que anos depois viria ser rebatizado como rio Amazonas, o maior do mundo. O primeiro a se aventurar por suas águas, em fevereiro de 1.500, foi o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón. Todos os que por ali passaram também escutavam relatos de que das altas e distantes montanhas nevadas havia um povo muito rico. Por tais relatos, as capitanias mais a norte do litoral brasileiro foram divididas entre funcionários da Fazenda Real, alguns dos homens mais ricos de Portugal: o tesoureiro-mor do reino Fernão d'Álvares de Andrade, e o feitor da Casa da Índia em Lisboa, João de Barros. Eles nunca puserem seus pés no Brasil, mas organizaram uma grande expedição com dez embarcações - cinco naus e cinco caravelas - comandada por Aires da Cunha, a qual visava alcançar a "Serra da Prata" subindo o rio Amazonas. Este litoral, no entanto, a costa brasileira leste-oeste, representava as maiores dificuldades náuticas para aqueles tempos de pura navegação a vela. A frota nunca alcançou a foz, entre as que naufragaram e as que se perderam e aportaram na América Central, morreram cerca de 800 dos cerca de 1.500 tripulantes que dela fizeram parte. Alguns dos sobreviventes construíram uma vila onde hoje está a cidade de São Luís, onde sofreram constantes ataques de outra população do grupo macro-jê, os índios tremembé, que impediram que tal vila prosperasse. A foz seria logo alcançada, mas em sentido contrário, pelos espanhóis. Em 27 de dezembro de 1.541, Francisco de Orellana partiu junto a 57 homens, dentre os quais aquele que foi o cronista da aventura, o frei dominicano Gaspar de Carvajal, das imediações de onde está a cidade de Quito numa tempestuosa rota que o levou pelos rios Coca, Napo, Ucayali, Solimões e Marañón. Neste trajeto, na confluência de desague do rio Trombetas, eles travaram um combate com um bando de mulheres guerreiras que Carvajal descreveu como "muito alvas e altas, com cabelos longos, entrançados e enrolados no alto da cabeça, muito robustas e andando nuas em pelo com arcos e flechas nas mãos, fazendo cada uma tanta guerra quanto dez índios homens", tendo matado a nove espanhóis da expedição. Tal combate, inspirando-se nas lendas de mulheres guerreiras dos mitos gregos rebatizaria aquele rio para sempre para que deixasse de ser o rio Maranón. Jamais se conseguiu definir que grupo era aquele o qual Carvajal descreveu. Em 26 de agosto de 1.542, aquela insólita expedição adentrou as águas do Oceano Atlântico pela foz do rio, que a partir de então ficou rebatizado como rio Amazonas, tendo concluído a viagem na qual navegou por 7.250 quilômetros de água doce. Dali chegaram ao Caribe, de onde conseguiram seguir para a Espanha. Em 1.544, Orellana seria nomeado o governador daquela região pelo rei espanhol Carlos V, voltaria então à região, mas não conseguiria refazer o trajeto em sentido contrário, acabando sucumbindo, junto a toda a frota que o acompanhava, mortos pela malária.

- As capitanias de Baía de Todos os Santos, Ilhéus e Porto Seguro eram as que ficavam mais próximas das ilhas de Cabo Verde, e por isso de mais fácil conexão logística com Portugal. A de Ilhéus foi entregue ao escrivão da Fazenda Real, Jorge de Figueiredo Correia, que nela instalou oito engenhos de açúcar em parceria com o banqueiro italiano Lucas Giraldes (ambos jamais puseram seus pés no Brasil, enviando empreendedores para suas missões). Havia harmonia com os índios tupiniquim e tupinambá, mas a partir da instalação dos engenhos se iniciou um conflito com os índios aimoré, que eram parte da população "tapuia", considerados os mais primitivos por só viverem na mata e não em aldeias, e por consumirem carne e raízes cruas, sem cozimento em fogo. A guerra contra os aimoré devastou a vila e arruinou os engenhos. A capitania de Porto Seguro foi entregue ao navegador Pero do Campo Tourinho, que para ela se mudou com sua família e cerca de 600 colonos, que conviviam em harmonia pelo escambo com os índios tupiniquim, mas que acabaram vítimas da guerra de Ilhéus contra os aimoré, que também os atacaram, destruindo as vilas ali criadas. A capitania da Baía de Todos os Santos, localizada onde hoje está a cidade de Salvador, foi dada a Francisco Pereira Coutinho, conhecido como Rusticão, filho do alcaide-mor da cidade portuguesa de Santarém e dono de extensa ficha militar na Índia, que chegou à região junto a cerca de 200 colonos. Nas terras às quais chegaram vivia o náufrago Diogo Álvares - o Caramuru - a quem o donatário, por estratégia política, deu posse de parte das terras. O destino final das vilas ali criadas foi similar, a partir da instalação de engenhos e da implementação do trabalho forçado, os nativos - neste caso, índios tupinambá - rebelaram-se e declaram guerra, destruindo a vila e os engenhos; Francisco Pereira acabou capturado, morto, cozinhado e devorado num ritual de vingança do povo tupi.

- A capitania que mais prosperou na primeira tentativa portuguesa de colonização do Brasil, mas não sem luta, foi a de Pernambuco. O donatário que fundou as vilas de Olinda e Igaraçu foi Duarte Coelho, filho bastardo de Gonçalo Coelho. Herói de guerra em conflitos contra hindus e árabes na Índia, na Malásia, na Tailândia e na Cochinchina, ele chegou à costa do pau-brasil junto à esposa e a famílias de agricultores, todos senhores rurais do norte de Portugal; cerca de 200 colonos, gente pobre e que sempre viveu das lavouras. Ali formaram cinco engenhos de açúcar com mudas de cana extraídas da ilha da Madeira. Ainda que, ao buscar a escravização de indígenas para o cultivo e a colheita da cana-de-açúcar, tais vilas e engenhos tenham vivido em constantes ataques de índios caeté e tabajara, que se rebelavam contra o trabalho forçado lhes imposto, tais engenhos prosperaram. Foi a única das capitanias do primeiro projeto de colonização português do Brasil que conseguiu crescer e prosperar.

- As tentativas fracassadas levaram o rei de Portugal, então Dom João III, a instalar um governo geral do território a partir de 1.549, quando adquiriu a capitania da Baía de Todos os Santos, e ali instalou a primeira capital do Brasil, em Salvador, com orçamento público sustentado pelo erário português, o que implicava no início da cobrança de impostos aos colonos, e sob o comando de Tomé de Souza, militar, oficial com elogiada folha de serviços no Marrocos e na Índia, membro dos Cavaleiros da Ordem de Cristo, e primo-irmão do vedor da Fazenda portuguesa, Antônio de Ataíde, e de Martim Afonso de Souza. Junto ao comando político deste braço militar, seguiam com ele para formar a estrutura de governo uma tríade formada pelo controlador das finanças, o provedor-mor Antônio Cardoso de Barros, um donatário que nunca antes havia posto seus pés no Brasil, pelo braço da justiça a ser controlado pelo ouvidor-geral Pero Borges, ele mesmo um condenado em Portugal por corrupção e desvio de verbas de obras públicas, e por um defensor dos valores cristãos, Manuel de Nóbrega, representando a Companhia de Jesus (os padres jesuítas), uma então jovem ordem religiosa criada por Ignácio de Loyola, e que quase à mesma época havia enviado o espanhol Francisco Xavier à Ásia com a mesma missão.

- A principal razão para tal decisão se manifestaria em 1.555, quando a França invadiu e ocupou o Rio de Janeiro, com planos de a partir dali obter o controle sobre o Cabo da Boa Esperança e a rota para a Índia. A iniciativa era uma consequência da expansão na Era das Grandes Navegações, numa busca tanto de Portugal como da Espanha de obter maior controle e domínio sobre os vastos territórios que tinham alcançado, com a implementação de um vasto aparelho burocrático que visava dar mais eficiência para funcionamento e manutenção de sistemas militar, judiciário e de arrecadação, com desembargadores, juízes, ouvidores, escrivães, meirinhos, cobradores de impostos, vedores, almoxarifes e outros burocratas em geral, então chamados "letrados". Naquele momento, a contribuição do Brasil às receitas do Reino de Portugal era mínima, tão só a oitava entre as regiões que contribuíam para a receita da monarquia; era 61 vezes menor do que a receita de Portugal, 26 vezes menor do que a da Índia, um quarto da obtida com a escravidão no Castelo da Mina, um terço do Arquipélago dos Açores e um terço da Ilha da Madeira, inferior também às obtidas em Angola e na Guiné, e superior apenas à de Cabo Verde.

- Foi em 1.549 que foi iniciada a obra da primeira cidade portuguesa nas Américas: Salvador, na baía de Todos os Santos. A matéria-prima para a construção era obtida através de trocas - escambo - com os indígenas locais, que cediam insumos e trabalho buscando receber principalmente produtos que lhes dessem vantagem competitiva - tecnológica e/ou militar - frente às tribos adversárias e concorrentes. Assim, a contabilidade portuguesa indicava a cessão de anzóis, machados, machadinhas, foices, enxadas, facas, tesouras, cunhas, furadores e podões (a notar: todas ferramentas de metal), além de um único bem de luxo pelos nativos muito desejado: espelhos.

- A ocupação do litoral brasileiro pelos portugueses nos entornos de 1.550 d.C. contava com a povoação de Duarte Coelho ao norte - na capitania de Pernambuco, a única a prosperar pelas mãos privadas dos donatários que as receberam -, tinha a capital do novo governo-geral, Salvador, e ao sul um conjunto de vilas - São Vicente, Santos, Santo André e Bertioga - próximas ao limite imposto pelo Tratado de Tordesilhas, em Cananeia. Em janeiro de 1.554, para o interior seria fundado o Colégio Jesuíta de São Paulo de Piratininga no coração das aldeias dos índios tupiniquim do líder Tibiriçá, sogro do náufrago João Ramalho. Dois dos primeiros centros urbanos brasileiros foram edificados em torno de dois náufragos venerados pelos nativos - o próprio Ramalho e Diogo "Caramuru" Álvares - uma a primeira capital e outra que séculos depois viria a se tornar a maior cidade da América do Sul. Foi em meio a este contexto político que, em 1.555, a França viria a invadir e ocupar a Baía de Guanabara, em aliança com os índios tamoio, já durante a gestão do segundo governador-geral do Brasil, Duarte da Costa. No mesmo ano de 1.555 no qual os caeté atacaram Olinda, e os tupinambá atacaram a Salvador, em episódio que levou à Guerra de Itapuã, quando a supremacia da pólvora e dos armamentos de metal ficaria evidente, não tendo morrido nenhum português, ainda que muitos tenham saído feridos, enquanto cerca de 700 tupinambás foram mortos. No ano seguinte, após naufragar durante seu retorno a Portugal, morreria e terminaria consumido em ritual antropofágico dos caeté o primeiro bispo católico do Brasil, Pero Fernandes Sardinha. A série de insurreições e ameaças ao território colonial português só veio a ser interrompida quando, já durante a gestão do terceiro governador-geral, Mem de Sá, há a expulsão da França da costa brasileira, após um conflito armado em 1.560 no qual os portugueses, com apoio armado dos índios temiminó, conquistaram o forte construído pelos franceses na baía da Guanabara. Em de corrência, em 1.565 foi ali fundada a cidade do Rio de Janeiro. Assim, de forma definitiva estava consolidada a ocupação por Portugal da Costa do Brasil.

- O principal objetivo português na América do Sul, entretanto, demorou para ser alcançado. A Espanha havia descoberto prodigiosas quantidades de metais preciosos - sobretudo ouro e prata - no México em 1.519, no Peru em 1.539, e na Bolívia em 1.545. Portugal não estava tendo a mesma sorte no Brasil. Só viria a descobrir ouro, na região de Minas Gerais, em 1.695. Por isto, durante aproximadamente dois séculos a presença de Portugal no Brasil se manteria pequena e sob crescimento lento, uma presença lusitana massivamente masculina, extrativa de matérias-primas de baixa atratividade econômica.

- As marcas desta ocupação está na biologia daqueles que se tornaram seus descendentes nestas terras. O mtDNA, ou DNA mitocondrial, é uma minúscula fita de material genético que fica no interior das mitocôndrias, que são as usinas de energia das células de organismos vivos complexos como o ser humano. O mtDNA só é transferido geneticamente pelo lado materno, não participando, portanto, do embaralhamento genético que acontece toda vez que óvulos e espermatozoides se mesclam e formam um embrião. O mtDNA é a principal fonte de informação para os geneticistas no estudo das linhagens maternas. Há uma tendência clara de diferenciação geográfica e, em menor grau, étnica, entre os chamados haplogrupos de mtDNA. E os haplogrupos ameríndios - isto é, das populações nativas do continente antes da chegada dos europeus - são bem característicos do continente, e tem uma ligação clara de semelhança com o de determinadas populações que ocupam a Sibéria, no leste asiático (o que é um dos argumentos mais fortes em favor da origem asiática dos nativos americanos).

- Antropólogos e geneticistas contam com um equivalente igualmente útil para estudar as linhagens paternas. Trata-se do cromossomo Y, a marca genômica da masculinidade corporal. Biologicamente, todos os homens herdam um cromossomo X da mãe e um cromossomo Y do pai, e todas as mulheres têm uma dupla de cromossomos X, sem ter cromossomo Y.

- Em todas as populações das Américas, o percentual de pessoas que tem um mtDNA de origem ligada às populações nativas é relativamente alto, enquanto a presença de cromossomos Y de origem ligada às populações nativas é percentualmente baixíssima. Esta assimetria é típica e característica de populações conquistadas por outras na história em todas as partes do planeta. Tanto os israelitas do Antigo Testamento, gregos e romanos, os macedônios de Alexandre, o Grande, os mongóis de Genghis Kahn, como espanhóis e portugueses na ocupação das Américas, todos estes sempre seguiram um mesmo figurino, também claramente visível nas histórias da África e da Oceania: numa operação de conquista, os homens dos grupos vencidos são mortos e aniquilados, e as mulheres são ou violentadas sexualmente ou condicionadas de forma submissa ao sexo com os homens conquistadores. É a reprodução da natureza animal dentro do espírito humano, já que é um padrão de conquista também encontrado na ampla maioria das espécies animais que compartilham o planeta com os seres humanos.



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