CASTRO NEVES, José Roberto de. Como os advogados salvaram o mundo. Editora Nova Fronteira, 2018. (302 páginas)
- A convivência humana é complexa. Os seres humanos têm seus próprios interesses pessoais e inevitavelmente e comumente entram em conflito e disputas. Para viver em sociedade, como civilização, a nossa espécie estabeleceu uma série de regras para o ordenamento coletivo, normas de conduta que impõem um determinado comportamento.
- Em um primeiro momento ao longo de sua evolução, as divergências entre os seres humanos eram resolvidas pela força física, como ocorre no resto do reino animal. A evolução humana nos levou a estabelecer normas de conduta e comportamento. Ainda assim as complexidades de convivência seguiram não só existindo, como foram ficando cada vez mais desafiadoras, uma vez que éramos cada vez mais gente convivendo junta. A solução pela força física passou gradativamente a ser substituída pelo uso de armas cada vez mais mortais. As normas e regras buscaram acompanhar tais mudanças.
- No começo da busca pelo estabelecimento de normas, a lei era parte da religião. Foi assim com os hindus, os gregos e os romanos. As primeiras regras jurídicas chegaram mescladas a ditames religiosos em um só corpo, como um código de conduta da sociedade. Como consequência, era da figura de sacerdotes que vinha a legislação das normas. Este fenômeno se manifestou nas mais variadas culturas humanas ao longo de todas as partes do globo terrestre, não foi exclusividade de nenhum movimento religioso em particular. Para os cretenses, a lei foi ditada por Zeus, para os atenienses por Apolo, para os romanos pela deusa Egéria, assim como séculos depois para os muçulmanos foi ditada por Maomé. Mesclada ao elemento religioso, a norma tinha natureza sagrada, e por isto era imutável, por serem manifestações divinas.
- A fundação da primeira universidade do Ocidente se deu em 1.088 d.C., a Universidade de Bologna, que teve como propósito o estudo do Direito, notadamente resgatando as bases já quase esquecidas do Direito Romano. As primeiras universidades europeias tinham quase todas a características de terem sido construídas afastadas dos centros de poder. Além do caso de Bolonha, assim foi com Cambridge e Oxford, afastadas de Londres, assim como Salamanca, na Espanha, e Coimbra, em Portugal. A exceção a esta regra foi a Universidade de Paris.
- Liberdade não significa fazer o que se quer, mas o direito de fazer tudo aquilo que a lei permite. Se as pessoas pudessem fazer o que fosse proibido pela lei, não haveria mais liberdade.
- A primeira guerra a envolver todos os Estados da Europa aconteceu entre 1.618 e 1.648, a Guerra dos Trinta Anos, que pode ser resumida como um conflito religioso entre nações católicas e protestantes, tendo sido, portanto, um conflito bélico dentro da Cristandade. Tais embates devastaram mais de 900 cidades na região onde hoje é a Alemanha, a qual teve a sua população total na época reduzida de 21 para 13 milhões de pessoas. Só depois que todos os Estados envolvidos, de ambos os lados, estavam exauridos por causa do conflito, construiu-se um acordo de paz - o Tratado de Vestfália - o qual foi o primeiro grande marco na história do Ocidente de construção de um diálogo pragmático e racionalizado entre nações, reconhecendo a soberania e a independência como valores universalmente reconhecidos, buscando conciliar as diferenças, e a partir disto construindo as bases do direito internacional, através da definição de regras para privilegiar o respeito, o diálogo e o entendimento, que inauguraram as referências de relações diplomáticas na busca de conciliação de interesses de forma não bélica entre as nações. A partir de então, a linguagem e as formalidades jurídicas foram assumidas como um arquétipo a ser trilhado em favor da construção do diálogo organizado, fazendo nascer uma nova ordem entre as nações.
- Com a Revolução Gloriosa, na Inglaterra, a Coroa perde o direito de demitir magistrados e de dissolver o Parlamento. Não se poderia mais falar em direito divino dos reis da Inglaterra. Estabeleceram-se regras fiscais de controle das despesas do país, o rei não poderia mais gastar o patrimônio do Estado como lhe parecesse melhor, devendo submeter seus planos ao Parlamento. Em 1689 foi assinada a carta que ficou conhecida como Bill of Rights (Declaração de Direitos), primeiro pilar estrutural da democracia inglesa. Este momento histórico marcou em definitivo a separação dos três poderes. Nascia o constitucionalismo, com o reconhecimento de um rol de liberdades fundamentais e direitos para todos os cidadãos, fazendo nascer conceitos relevantes como governo representativo e responsabilidades políticas, todos com a construção de um arcabouço jurídico para que prevalecessem, a arrecadação de impostos deixava de ser para o bem do soberano e passava a ser para o provento da coletividade.
- Ao contrário de outras colônias do continente, nas colônias inglesas e francesas da América do Norte não havia nem ouro nem prata, tampouco solos de abundante fertilidade, isto fez com que as metrópoles não se importassem sobremaneira com os destinos das colônias ali nascentes, pois as riquezas ali geradas eram relativamente pequenas.
- O Estado não pode garantir a felicidade de ninguém, pois ela não é uma dádiva, mas uma conquista decorrente de um esforço contínuo. O que o Estado pode e deve fazer é promover as bases para que cada indivíduo possa atingi-la.
- O perfeito resumo do que se espera de uma democracia foi expresso na Constituição dos Estados Unidos da América após sua independência da Inglaterra: o governo é do povo, pelo povo e para o povo. "Governo é do povo" expressa a ideia de que o governo é de todos, sem exclusões. "Governo pelo povo" refletem que os cidadãos são os governantes, uma vez que escolhem os seus representantes. "Governo para o povo" visa garantir o conceito de que o objetivo final é o benefício coletivo geral.
- As revoluções dão-se violentamente. Não são um movimento gradual, mas um rompante. Mais ainda, são abalos na ordem vigente, cujo destino é surpreendente, sem que se consiga prever a seu desfecho.
- A Revolução Francesa foi um marco de referência para a ideologia política de todo o Ocidente. Quando os deputados se reuniram no Congresso para tentar encontrar um reordenamento para o caos de terror e mortes imposto às ruas de Paris, aqueles dias definiram as referências de pensamento que perduraria nos séculos seguintes. Rapidamente, dois grupos se antagonizaram, um sentado à direita e outro à esquerda do Congresso. Do lado direito da convenção estavam os chamados "girondinos", que ganharam este nome porque muitos de seus líderes eram provenientes da região da Gironda, ao sudoeste da França, que tem como principal cidade a Bordeaux. Do lado esquerdo estava o grupo inicialmente chamado de "montanha", mas que logo passariam a ser conhecidos como "jacobinos", pelo fato de seu principal centro de discussões e reflexões ficar num mosteiro dominicano localizado na rua Saint-Jacques. No meio deles, o maior dos três grupos, com posições chamadas de "centro" por um grupo de deputados chamado de "planície". Os girondinos era um grupo composto por burgueses, empreendedores que tinham ascendido na escala social, e que entendiam que já era suficiente ter dado fim aos privilégios da monarquia, defendendo que se evitassem excessos para garantir estabilidade social. Já os jacobinos queriam manter o radicalismo até que fossem atendidas todas as demandas dos "sans-culottes", grupo que representava a parte mais humilde e de baixa renda da população francesa. Pelos interesses da nação se justificariam quaisquer atos, qualquer pessoa que se colocasse contra o que eles consideravam ser os interesses maiores da nação deveria ser levada à guilhotina, que lhe decretava a sentença de morte. O principal líder jacobino era Maximilien de Robespierre, que conseguiu levar a praticamente todos os líderes girondinos à execução em praça pública através da guilhotina, e que depois passou a dar o mesmo destino ao líderes jacobinos considerados demasiadamente moderados, até que ele próprio, Robespierre, fosse também condenado pelo Tribunal Revolucionário a ter o mesmo fim.
- O Tribunal Revolucionário ordenou a execução de mais de 17 mil sentenças de morte! Entre aqueles que vieram a ser mortos pela guilhotina esteve um dos maiores químicos de todos os tempos, responsável por descobertas que revolucionaram a ciência: Antoine-Laurent de Lavoisier, executado em 1.794 aos 51 anos de vida. Na sua sentença de morte, o juiz deixou escrito: "a revolução não precisa de cientistas".
- Foi a Revolução Francesa aquela que pela primeira vez na história humana ofereceu um sistema legal uniforme, em consonância ao lema revolucionário de igualdade e liberdade, com uma lei voltada para todo e qualquer cidadão de forma igualitária. O terceiro conceito base daquela revolução, o de fraternidade, foi introduzido bem depois, em 1.848, com a instauração da Segunda República, e teria uma proposição mais religiosa do que política de conciliação e harmonia. A Primeira República não teve nada de fraterna. Mas serão estes três pilares, combinados, aqueles que servirão de base para a construção da democracia moderna, resgatando alguns pensamentos da Grécia Antiga, e adaptando-os a um mundo que estava iniciando um processo de pleno crescimento demográfico. Uma nova ordem, com novos valores. Deu-se fim a privilégios de nepotismo e clientelismo, através da construção de um instrumento jurídico no qual prevaleceu a meritocracia no acesso a cargos públicos. A soberania não provinha mais de um monarca, mas do povo.
- O primeiro grito de independência da América espanhola se escutou no Peru em 1.809, mas foi logo sufocado. Depois, em 1.810, foi um padre católico, Miguel Hidalgo y Costilla, quem liderou uma violenta revolta no México, a qual também acabou controlada. Seguiu-se então, enfim, os processos de independência da Espanha, todos eles liderados por militares. A Argentina se libertou em 1.816, tendo seu primeiro diretor supremo sido Juan Martin de Pueyrredón. Em 1.818 foi a vez do Chile, sob a liderança de Bernardo O'Higgins. Depois, Venezuela e Colômbia se tornaram livres em 1.819, e o Peru em 1.821. Na Venezuela, a libertação foi levada adiante por Simón Jose Antonio de la Santíssima Trindad de Bolívar y Palacios, ou simplesmente Simón Bolívar, militar de origem aristocrática que também teve papel ativo nos processos de libertação de Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá e Peru. Todas estas libertações foram seguidas por processos ditatoriais, que não deram qualquer margem a ideais democráticos. Houve exceções, como o próprio Francisco de San Martín y Matorras, grande nome nas guerras de libertação na Argentina, no Chile, e também no Peru. O general San Martín acreditava fielmente que militares não deviam governar.
- A Inglaterra foi o primeiro lugar no qual se uniram três elementos que se transformaram nos pilares sócio-políticos do Ocidente: poder político forte na harmonização em prol de todos, respeito irrestrito à lei, e responsabilidade dos governantes sobre os governados. Um quarto passo foi agregado primeiro na formação dos Estados Unidos, e posteriormente e de forma mais sólida na revolução na França, a importância dada a cada indivíduo e às suas aspirações legítimas e à sua dignidade individual. Formaram-se então os quatro componentes da ordem política do Ocidente.
- Bem afirmou uma vez a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt: "embora a violência seja capaz de destruir o poder, jamais poderá substituí-lo". Ao longo da história, a humanidade construiu, gradativamente, uma coletividade racional e justa. Mutável, em constante transformação, mas sob determinados pilares de ideais e valores sustentados pelo conhecimento humano acumulado. Sem uma ideologia lógica, qualquer revolução deixa de ser verdadeira e permanente, restringindo-se a atos de força isolados que se esvairão com o vento. As mudanças que se mantem e se frutificam, resistindo ao teste do tempo, não são construídas pela força física, mas pela harmonização racionalizada do coletivo humano. O poder das ideias é sempre testado, se vence tais enfrentamentos, garante espaço entre a crença vigente da civilização, ao menos até quando voltem a ser testados novamente.
- O indiano Mohandas Karamchand "Mahatma" Gandhi defendeu a doutrina da satyagraha, uma palavra composta do idioma hindi que significa "firmeza no caminho e na verdade", algo como insistir sempre na verdade, pois ela prosperará. Satya significa "verdade", e agraha significa "insistência educada". Embasou, portanto, uma filosofia política de que a verdade e a não-violência caminham sempre juntas. Foi uma persistência em defesa da dignidade humana em favor da verdade, uma forma de garantir direitos pelo sofrimento, no reverso da resistência bélica através das armas, construiu um conceito de resistência pacífica. Por suas palavras: "o governo existe para servir ao povo, e não o povo para servir ao governo".
- A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela Organização das Nações Unidas em dezembro de 1948, aprovada por 48 países. Oito países se abstiveram em aprová-la, a África do Sul, cuja política interna vigente de segregação racial (apartheid) não se alinhava com tais regras, a Arábia Saudita por discordar da carta defender a liberdade religiosa e a igualdade entre os sexos, e o grupo formado por União Soviética, Polônia, Ucrânia, Bielorrússia, Iugoslávia e Tchecoslováquia, que não aceitava a determinação de uma liberdade de ir e vir entre fronteiras mencionada nos termos da declaração. A ascensão dos direitos humanos foi uma obra lenta para derrubar abusos e arbitrariedades, foi produto do processo de formação e amadurecimento da civilização em favor do respeito à coletividade. É fruto de um autoconhecimento coletivo que evoluiu com a história, consciência humana de sua relação com tudo.
- Qualquer discussão sensata sobre qualquer assunto depende de consenso acerca dos critérios, da forma de apresentação de argumentos, e dos limites até onde pode chegar uma discussão.
- Não somos todos iguais, temos diferenças individuais marcadas e marcantes entre nós, mas ninguém é melhor do que ninguém. Como o poeta inglês William Shakespeare colocou em sua obra: "se fossem misturados os nossos diversos sangues, seria impossível distingui-los pela cor, pelo peso ou pelo ardor. De que depende, pois, essa diferença que os separa? É pela qualidade que devemos classificas a tudo, não pelo título".
- Sem bases morais não há determinação entre o certo e o errado, pois não há paradigma algum. A ausência de valores ameaça qualquer estabelecimento de um mundo civilizado, pois sem valores morais o autor de qualquer crime não dimensiona a gravidade do mais bárbaro dos atos, seja um assassinato, um estupro ou o que seja. A vida humana fica brutalizada e animalesca, como a de feras numa savana que caçam, matam, devoram suas presas a céu aberto e se recostam sob a sombra de uma árvore à espera de recuperar-se até poder realizar uma próxima caçada. A mesma ausência de sentido que sente um psicopata que escolhe uma vítima aleatória para matar, executa, e depois vai comprar um sorvete ou uma pizza absolutamente sem qualquer capacidade de sentir algum remorso. A civilidade construída pelas sociedades humanas é aquilo que separa a nossa humanidade de nossa natureza animal. É o que faz com que ainda que tenhamos ambas as vertentes dentro de nós, consigamos dar-lhes convivência em nosso interior sem que nos autodestruamos. Não por acaso, tanto déspotas quanto psicopatas, o primeiro que buscam é destruir as bases morais civilizatórias vigentes para que assim possam satisfazer a seus desejos íntimos de tirania.
- A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1.789, marco da Revolução Francesa, coloca logo em seu artigo 1º que "os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos, as diferenças sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum", complementando primeiro em seu artigo 4º, que determina que "a liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique a outros, assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem tem como única baliza a que assegura aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos", depois no fim do artigo 6º, ao afirmar que "todos os cidadãos são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos segundo a sua capacidade, e sem outra distinção além de suas virtudes e seus talentos (pessoais)". Estavam assim lançadas as bases de novos parâmetros sociais para a humanidade.
- A Declaração Universal dos Direitos Humanos assinada em dezembro de 1.948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas determinou em seu artigo 25º que "todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e a serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença de invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle; assim como a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistências especiais".
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