Os efeitos derivados de nosso universo e os fatores que trazemos relacionados à nossa natureza animal e à construção de nossa humanidade como civilização, são aqueles que temos em comum entre todos nós e que nos unem como seres humanos.
Complementarmente a estes fatores, nossa formação individual é forjada a base de fatores específicos relacionados à nossa identidade cultural, associados à geografia da terra aonde nascemos e às crenças às quais estamos sujeitos nos grupos em que vivemos imersos a partir de quando chegamos à vida. E é no passado que encontramos os laços que indicam como e porque tais relações são como são.
As pessoas em geral não pensam sobre a magnitude da história humana, e menos ainda nas particularidades de como esta evolução se deu para trazer até os dias de hoje as coisas assim como elas são. A partir das formas como os seres humanos evoluíram, desde sua natureza animal até a formação civilizatória da humanidade, a história seguiu diferentes rumos para os diferentes povos, devido às diferenças de ambiente em que cada povo viveu, e às escolhas em função delas que cada um fez, tendo para cada rumo sido geradas identidades culturais completamente distintas.
Na evolução de nossa natureza animal para a nossa condição como seres humanos, os primeiros utensílios de pedra usados por nossos ancestrais são datados de 2,5 milhões de anos atrás, feitos de lascas e pedaços de pedras. Porém, foi há 50 mil anos que tudo mudou de forma mais intensa, com significativos avanços na tecnologia dos utensílios de pedra utilizados e o surgimento das primeiras joias, cujas amostras mais antigas aparecem primeiro no leste da África e posteriormente no Oriente Médio e no sudoeste da Europa, para a partir de 40 mil anos atrás surgirem também na parte sudeste da Europa.
Estes antepassados humanos já tinham características biológicas e um comportamento muito similares aos humanos modernos, combinando recursos para fazer agulhas, furadores, fixadores, arpões, lanças, e arcos e flecha, e a partir destes utensílios ampliar ainda mais a sua capacidade de caça de animais muito maiores do que eles.
A partir da origem do Homo sapiens na África até os movimentos migratórios que dispersaram a espécie pelo planeta, surgiu uma complexidade crescente de padrões culturais. Nossos ancestrais se dispersaram pela Ásia e pela Europa, e posteriormente iniciaram a ocupação da Austrália e da Nova Guiné - que na época eram uma massa de terra única - num movimento que aparentemente remonta ao período entre 40 e 30 mil anos atrás. Apesar do nível dos oceanos estar mais baixo naquela época, foi um feito que certamente exigiu a existência de embarcações rudimentares feitas a partir da madeira das árvores.
Há evidências arqueológicas de que por volta de 35 mil anos atrás houve a colonização de ilhas da Oceania, como em Nova Bretanha, Nova Irlanda, Bismarck e Buka, nas Ilhas Salomão, através de travessias que chegaram a ser de 360 quilômetros pelo mar. Após estes cruzamentos oceânicos entre ilhas, outras provas do uso de embarcações só aparecem aproximadamente a 13 mil anos atrás, na região do Mar Mediterrâneo, na Europa, o que mostra a grandeza daquela baita aventura humana experimentada na Oceania.
Nas ilhas do Mar Mediterrâneo, a colonização se deu a partir da ocupação de Creta, Chipre, Córsega e Sardenha, entre 8.500 e 4.000 mil a.C.. Nas Américas, a ocupação das ilhas do Caribe parece ter somente acontecido por volta de 4.000 a.C.. Na Polinésia e na Micronésia, ilhas mais distantes da Oceania, teria ocorrido entre 1.200 a.C. e 1.000 d.C.. E a ocupação de Madagascar, na costa leste da África, teria ocorrido entre 300 d.C. e 800 d.C. (embora ainda haja muita controvérsia em torno disto, com suposições de que a ocupação da grande ilha na costa africana tenha sido iniciada bem antes). Mas independentemente das datas exatas - consideremos tais períodos como aproximações - temos aqui uma boa referência da longa distância no tempo que estes movimentos migratórios humanos tiveram entre si.
Como parte deste movimento de dispersão dos sapiens, surge a presença de antepassados humanos no Alasca há 12 mil anos atrás, seguida por indícios de ocupação há 11 mil anos em áreas que hoje fazem parte de Canadá, Estados Unidos e México. Ademais, há indícios incontestáveis de ocupações na Amazônia e na Patagônia (que está a uma distância de 12,8 mil quilômetros ao sul da fronteira Canadá-Estados Unidos) que remontam a 10 mil anos atrás. Mas também há muita controvérsia em torno dos vestígios de ocupação da América do Sul, que poderia ser ainda bem mais antiga do que isto. Marcas de corte de ferramentas em ossadas de fósseis na Argentina poderiam estender esta presença até mais de 20 mil anos atrás. Para a mensagem aqui, de novo: pouco importam as datas exatas, mas sim a ordem de grandeza aproximada. O mais importante é o entendimento de que tais migrações acontecerem ao longo de dezenas de milhares de anos e em ondas subsequentes, sobrepondo-se umas às outras, mesclando-se, miscigenando-se, e formando uma incrível complexidade em termos de diversidade.
Em meio a este laboratório histórico de evidências, tão importante quanto as diferenças - ou até mais importante - são as similaridades de padrão nesta dispersão sapiens. Os registros fósseis indicam o desaparecimento da grande fauna de mamíferos na Austrália há 30 mil anos, e nas Américas entre 17 e 12 mil anos atrás, em ambos os casos não muito depois da chegada humana nestas regiões, o que representa sinais de um padrão social e comportamental humano para encontrar seus meios de subsistência. Os habitantes da Austrália fizeram pinturas rupestres nas cavernas aparentemente na mesma época que o povo cro-magnon as fez onde hoje é a França, e a domesticação de espécies vegetais, com o surgimento de assentamentos e núcleos agrícolas, também aconteceu de forma independente em diferentes continentes. Todas estas são claras evidências de que apesar das divergências em termos de identidade cultural, havia uma natureza comum de amadurecimento civilizatório que florescia entre culturas dispersas e sem qualquer interação ou convivência.
Inquestionavelmente havia a geração de uma identidade comum a toda a espécie que unificou os aspectos de sua natureza e de sua humanidade civilizatória. Mas foram as diferenças que existiram neste processo que forjaram as diferentes identidades culturais, e as condições geográficas apareceram então como um fator determinante das condições desta forja civilizatória.
Até o fim da última Era Glacial, por volta de 11.000 a.C., todos os povos de todos os continentes eram caçadores-coletores de alimentos. Os primeiros impérios e sistemas de escrita conhecidos surgiram junto a sistemas de controle de água associados a organizações políticas centralizadoras, nas áreas de vales de rios, como o Tigres e o Eufrates (no Crescente Fértil), o Nilo (no Egito), o Indo (onde hoje é a India), e no Amarelo e no Yang-Tsé (na China). E estes grandes aglomerados de ajuntamento humano serviram de catalisadores para acelerar as inovações do comportamento sapiens.
Há poucos lugares com provas detalhadas e convincentes de que a produção de comida surgiu de forma independente antes da chegada de produtos e animais de outros lugares vizinhos. Em tempos diferentes, isto parece ter sido o que aconteceu no sudoeste da Ásia (também conhecido como Crescente Fértil), na China, na Mesoamérica (centro-sul do México e América Central), na Cordilheira dos Andes e na Bacia Amazônica (na América do Sul), no leste dos Estados Unidos (na América do Norte), na região de Sael, na Etiópia (na África), e na Nova Guiné (na Oceania). Há indícios de lavouras de inhame e banana nas montanhas da Nova Guiné antes de 7 mil a.c., e lavouras primeiro de abóbora, algodão e pimenta, e algum tempo depois de milho e feijão, no México, que são de antes de 6 mil a.C..
Entretanto, inquestionavelmente, as datas mais antigas de produção de alimentos são no Crescente Fértil, onde a domesticação de plantas ocorreu por volta de 8.500 a.C. e a de animais por volta de 8.000 a.C., onde há, de longe, o maior número de datações obtidas por radiocarbono relacionadas ao início da produção de alimentos. Este marco é chamado de Revolução Agrícola, com plantações de trigo e cevada na região onde estão Israel e Palestina, com rebanhos de ovelhas onde estão Turquia e Iraque, de cabras nas montanhas onde está o Irã, e de bovinos na região da Anatólia. Tal revolução proporcionou muito mais alimentos por unidade de território. Com mais alimento disponível, as populações se multiplicaram mais rápido, vindo a crescer exponencialmente. Este primeiro embrião civilizatório se localizava justamente numa passagem geográfica estratégica de dispersão da humanidade a partir da África para seu espalhamento pela Ásia e pela Europa.
É importante que seja entendida como se deu tal dinâmica: tudo isto não proporcionou mais qualidade de vida, mas proporcionou mais quantidade de pessoas permanecendo vivas, e isto foi fundamental para o desenrolar dos fatos a partir de então. Foi um feito tão marcante na história da civilização, que define os rumos humanos até os dias atuais, pois 90% das calorias e nutrientes que alimentam a humanidade hoje, derivam de plantas e animais que foram domesticados entre 9.500 e 3.500 a.C..
Apesar das maiores concentrações populacionais nos vales dos grandes rios antes de impérios surgirem, a produção de alimentos e a vida em vilarejos no Crescente Fértil tiveram origem nas montanhas e não nos vales, para onde só vieram a migrar posteriormente. O processo foi gradual, e não se tratou de uma evolução linear. A função das primeiras hortas era garantir uma reserva para o caso de falta de alimentos silvestres. Não era um propósito substitutivo, mas complementar. Deve-se considerar que a produção agrícola e a caça-coleta inicialmente eram estratégias alternativas, que não competiam entre si naquele momento da história. E que sob esta forma perduraram por bastante tempo.
Em meio a este convívio complementar entre a caça-coleta e a produção de comida, amadureciam e emergiam complexidades e diferenciações no convívio destes crescentes grupos humanos, em meio às quais emergiram culturalmente os processos simbólicos. Tais rituais festivos foram expressões de autoridade ou veículos de criatividade social? Os ancestrais humanos eram reacionários ou progressistas? Eram simples e igualitários? Complexos e estratificados? Tinham natureza inocente ou corrupta? Intrinsecamente cooperativos ou competitivos? Eram generosos ou egoístas? Eram bons ou maus? Quase certamente, eram um pouco de tudo isto! Por que tal dedução? Porque o que realmente nos faz humanos, e sempre foi assim, é a nossa capacidade - como seres morais e sociais - de encontrar um meio-termo para todas estas alternativas.
Os seres humanos tiveram dezenas de milhares de anos para experimentar diversos modos de vida e estabilizar escolhas comuns coletivas, e assim evoluímos (lembrando sempre o conceito de evolução: não necessariamente rumando para a melhor direção possível, mas para a que propiciava a melhor adaptação viável).
Estes conhecimentos acumulados sobre nossos antepassados nos permitem intuir que as sociedades humanas antes do surgimento do cultivo agrícola não se limitavam a pequenos bandos igualitários. O mundo dos caçadores-coletores antes da chegada da agricultura era repleto de experiências sociais arrojadas. Ao mesmo tempo, muitas das primeiras comunidades agrícolas que surgiram eram relativamente isentas de níveis de hierarquia. É possível observar que, como tudo na história humana, não houve um padrão linear de mudança, mas diferentes formas e padrões que conviviam entre si.
Há evidências de que muitos caçadores-coletores não eram tão nômades quanto inicialmente foi imaginado. A principal constatação disto se deu a partir de quando houve a descoberta de templos de pedra nas montanhas de Gemus, acima da planície de Harran, no sudeste do que hoje é a Turquia, onde foram encontrados vestígios antiquíssimos num lugar conhecido localmente como Gobekli Tepe. São ruínas de um conjunto de vinte cercados megalíticos erguidos por volta de 9.000 a.C. e modificados muitas vezes ao longo de muitos séculos, criados numa época em que a planície ao redor era uma mistura de bosques e estepes. Havia grandes pilares em formato de "T", alguns com mais de 5 metros de altura, e cada qual entalhado com imagens de um mundo de carnívoros perigosos e répteis venenosos.
A criação destas edificações supõe uma atividade coordenada com rigor em uma escala de fato grandiosa. Embora naquela época já houvesse grupos humanos começando a praticar a agricultura não muito distante dali, não há indícios de que o povo que criou Gobekli Tepe era composto por agricultores. Aparentemente, as sociedades de caçadores-coletores tinham desenvolvido movimentos coletivos capazes de prover obras públicas de grande porte. Ou seja, é bem possível que já houvesse uma hierarquia social complexa já antes da adoção da agricultura.
Os sítios com sepultamentos extraordinários e arquitetura monumental na era humana pré-agrícola foram criados por sociedades que se dispersavam em bandos forrageadores numa época do ano e que se concentravam em povoados em outra época, oscilando seu comportamento de acordo às variações de fartura que existiam em função das sazonalidades das estações, assim como em função do comportamento sazonal das manadas que caçavam, ou se juntavam em leitos de rios aguardando as fases cíclicas de pesca de acordo às épocas de desova dos peixes. Em determinadas momentos se aproveitava a abundância de frutas silvestres para festejar, executar rituais e construir engenhosos projetos artísticos conjuntos, indicando que provavelmente havia ciclos anuais de congregação e de dispersão, que eram sazonais.
Com o fim da Era Glacial, muito provavelmente houve uma expansão mais vigorosa das populações de forrageadores, especialmente em áreas costeiras, que buscavam peixes e aves marinhas, baleias e golfinhos, focas e lontras, caranguejos, camarões, ostras e moluscos de todos os tipos. Ao mesmo tempo em que rios e lagos de água doce, alimentados por geleiras de altitudes, estavam fervilhantes de peixes, e atraíam aves migratórias. Tudo isto alimentou padrões sustentados de agrupamentos humanos cada vez maiores e bem distintos dos existentes na Era Glacial, quando longas migrações sazonais de mamutes e outros animais de caça de grande porte organizavam a vida social dos humanos.
Os indícios arqueológicos apontam que a região do Crescente Fértil se desenvolveu em duas direções claramente distintas, um "crescente de terras altas" e um "crescente de terras baixas". Uma área pelas encostas das Cordilheiras de Zagros e Taurus, seguindo ao norte do que hoje é a fronteira entre a Síria e a Turquia, num cinturão expandido de bosques de pistache e pradarias ricas em animais de caça, cortado por vales fluviais. A outra área ao sul se caracterizava por áreas de solo fértil intimamente ligadas aos sistemas fluviais.
Entre 10.000 a.C. e 8.000 a.C., gradativamente estas duas sociedades passaram por intensas transformações bem distintas. Nas duas regiões havia aldeias, povoados, acampamentos sazonais e centros de atividades rituais e cerimoniais marcados por edificações públicas de grande porte, e também graus variados de evidências de cultivo vegetal e criação animal, assim como de atividades de caça e coleta.
Nas terras altas, houve uma forte guinada hierarquizante entre os caçadores-forrageadores assentados, expressada no centro megalítico de Gobekli Tepe e sítios arqueológicos próximos. Nas terras baixas, dos vales dos rios Eufrates e Jordão, por outro lado, não existem sinais de monumentos megalíticos. Essas duas sociedades tinham uma intensa troca de materiais duráveis entre si a partir de longas distâncias, como obsidiana e minerais das montanhas aparecendo nas terras baixas, e conchas de moluscos das praias nas terras altas. Cada povoado da região parece ter desenvolvido uma especialidade própria para atender a esta rede de trocas comerciais. A própria agricultura parece ter começado justamente desta maneira, como um dos nichos de atividade ou de especialização.
Nos leitos fluviais foi desenvolvido o "cultivo de vazante", nas áreas de cheias sazonais. Um sistema menos laborioso de plantio, no qual a preparação do solo ficava a cargo das cheias, que se encarregava de amanhar a terra e renovar o solo, havendo após o recuo das águas a formação de um leito fértil de terra de aluvião, onde se fazia uma semeadura a lanço. Uma prática que exigia apenas a formação de pequenas barreiras de pedra para orientar a distribuição da água. Já nas terras altas a semeadura era feita de forma similar nas áreas de maiores índices pluviométricos. A engenhosidade e a inovação destas civilizações consistiam em se domar as forças naturais dos ciclos das águas.
Assim, pode-se afirmar que no Crescente Fértil não houve uma guinada dos forrageadores paleolíticos para os agricultores neolíticos. A transição de uma subsistência baseada em recursos silvestres para uma vida baseada na produção de alimentos levou cerca de 3 mil anos, e ocorreu em idas e vindas, longe de ter sido uma linha reta de evolução, tendo havido alternâncias de convivência entre diferentes modos de produção.
Os primeiros agricultores ocupavam lacunas territoriais abandonadas pelos forrageadores, em áreas de maior escassez de recursos naturais, geograficamente mais remotas e de mais difícil acesso, pouco interessantes para atrair atenção continuada de bandos de caçadores-coletores. O cultivo da terra começou em seus primórdios como uma cultura de privação, algo só praticado quando nada mais se havia a fazer.
Paulatinamente, e vagarosamente, a exceção foi se tornando a norma padrão. A importância dos cereais estava de fato em serem duráveis, transportáveis, facilmente divididos e medidos a granel. Crescendo acima do solo, as plantações de cereais também eram fáceis de serem identificadas. Assim, o cultivo de cereais não levou ao surgimento dos Estados, mas sem dúvida era adequado às suas necessidades fiscais que viriam a ser manifestadas posteriormente.
Um espelho do que ocorreu no Crescente Fértil se deu em outros lugares. Por volta de 7 mil anos atrás, os regimes das cheias dos rios começaram a mudar, permitindo que se adotassem rotinas mais regulares. Foi isso o que deu início às planícies aluviais amplas e férteis ao longo dos rios Amarelo, Indo e Tigre, e outros associados ao crescimento das primeiras grandes civilizações urbanas na Ásia. Na província chinesa de Shandong, assentamentos de trezentos ou mais hectares como Liangchengzhen e Yaowangcheng já existiam antes de 2.500 a.C., mil anos antes das primeiras dinastias reais da China surgirem nas planícies centrais. No outro lado do Oceano Pacífico, na mesma época, centros cerimoniais de grande magnitude foram construídos no vale do rio Supe, no Peru, em Caral, onde foram encontradas praças e plataformas monumentais quatro milênios mais antigas do que o Império Inca.
Mas tudo isto ocorreu muito depois, pois foi no Crescente Fértil, no Oriente Médio, que se formou o primeiro berço de tudo em termos de adensamentos populacionais e organizações civilizatórias, o primeiro lugar onde há evidências inquestionáveis e múltiplas de grandes transformações humanas sendo manifestadas.
Mas por que ali? O fato da agricultura ter começado na região não parece ter sido uma coincidência. O clima mediterrâneo da região é extremamente favorável. Há outras quatro áreas do planeta com clima tão favorável quanto, nas regiões onde atualmente estão a Califórnia, o Chile, o sudoeste da Austrália e a África do Sul. Entretanto nenhuma destas áreas é geograficamente tão extensa, sendo o Crescente Fértil a maior área de clima mediterrâneo do mundo, estendendo-se do Oriente Médio ao sul da Europa e ao noroeste da África. Em consequência disto, a área apresentava uma grande diversidade de plantas e espécies animais, além de ter uma grande variação de clima entre as estações e os anos, o que foi favorável à existência de um alto percentual de plantas com ciclos anuais. A região também tinha uma alta variedade de altitudes e topografias concentradas num espaço relativamente pequeno, aumentando ainda mais a sua variedade de plantas silvestres disponíveis.
Estas características também permitiram que a região concentrasse quatro espécies de grandes mamíferos domesticáveis - cabras, ovelhas, porcos e vacas - os quais até os dias atuais representam 4 das 5 espécies de animais mais domesticados no planeta Terra!
A agricultura no Crescente Fértil começou com 8 "culturas fundadoras": os cereais cevada e dois tipos de trigo, os legumes lentilha, ervilha, grão de bico, e ervilha amarga, e a fibra linho. Destas oito culturas, só duas (o linho e a cevada) existiam como espécie selvagem fora do Crescente Fértil. A combinação destas plantas e destes animais forneciam o atendimento a todas as necessidades básicas da humanidade: carboidratos, proteínas, gorduras, roupas, tração e transporte. A semente da civilização humana estava plantada na terra!
O florescimento da agricultura permitiu que as populações aumentassem de maneira tão rápida e radical, que nenhuma sociedade agrícola complexa poderia vir a se sustentar de novo só de caça e de coleta. Foi um ponto sem volta, não havia retorno!
E a Revolução Agrícola tornou o futuro muito mais importante do que havia sido até então. Os agricultores precisavam trabalhar em função do futuro, prevendo e antecipando acontecimentos, com base nos ciclos sazonais de produção, com longos meses de cultivo seguidos por períodos curtos de colheitas, o que os levou a se esforçar para entender as nuances e variações do clima. Houve assim uma explosão de organização, para plantar e cultivar, estocar, e para se proteger contra os ataques de povos nômades em tempos de escassez. O estoque abastado estava sujeito a ataques, e isto levou a um aumento em conflitos armados entre grupos que disputavam tais acessos a condições mais prósperas. Chegaremos à abordagem mais detalhada deste processo mais adiante.
Em sequência à revolução de domesticação verde, deu-se a domesticação de animais. A maioria das espécies de plantas e animais na natureza não podem ser domesticada. Entre aqueles que puderam, os mais agressivos eram logo abatidos primeiro, para que não dessem trabalho, e os mais dóceis eram mantidos por perto, sendo criados junto ao grupo. Esta seleção fazia com que os mais dóceis procriassem e os mais agressivos não, o que foi moldando características sociais mais mansas nas espécies, e assim depois de alguns séculos e de algumas gerações transformando-os em animais domésticos e não selvagens.
A particularidade da capacidade de domesticação de grandes animais de tração propiciara enormes diferenças para a estruturação civilizatória. Dos mamíferos com mais de 40 quilos, só 14 foram domesticados no planeta antes do Século XX. E nove deles somente em áreas limitadas: o dromedário, o camelo, a lhama e a alpaca (estes dois descendentes diferentes da mesma espécie), o burro, a rena, o búfalo, o iaque, o banteng, e o gauro (aqui cabe uma ressalva: elefantes foram amansados, mas não domesticados, pois animais domesticados são aqueles que são criados em cativeiro, sob controle humano de sua procriação). Apenas cinco espécies domesticadas se espalharam por todo o planeta: a vaca, a ovelha, a cabra, o porco e o cavalo.
A maioria das espécies animais de grande porte não são domesticáveis por seres humanos por causa de fatores como hábitos alimentares, taxa de crescimento, hábitos de acasalamento não adaptáveis ao cativeiro, nível de agressividade, tendência ao pânico, e características de organização social de seus rebanhos. Só uma pequena porcentagem dos mamíferos teve competitividade em todos estes aspectos isolados.
Os animais deste seleto grupo - dos "verdadeiramente domesticados" - tiveram, como já citado, a sua evolução afetada pela seleção humana, podendo-se observar várias diferenças entre eles em relação a seus ancestrais selvagens. E cabe aqui uma observação fundamental para a história humana: os 5 animais selvagens que tomaram o mundo têm todos seus ancestrais na Eurásia, já que ovelhas e cabras são parentes de ancestrais selvagens do oeste da Ásia, cavalos da região sul de onde hoje é a Rússia, e vacas e porcos tinham ancestrais espalhados por toda a Eurásia e o norte da África. Dos 9 animais domesticados que não se espalharam pelo planeta antes do Século XX, 1 estava na América do Sul (a lhama e a alpaca, que são descendentes dos guanacos), e nenhum era original da América do Norte, da África Subsaariana ou da Austrália. Nas Américas, os ancestrais candidatos a domesticação - como cavalos e camelos - existiram, mas acabaram extintos em algum momento entre 12.000 e 11.000 a.C.. O único animal domesticado na região subequatorial da África foi uma ave da família do peru denominada galinha d'angola.
Na Mesoamérica havia apenas dois animais domesticados, o peru e o cachorro, cujas carnes eram muito menos ricas em nutrientes do que as de cabras, ovelhas, porcos e vacas, e só havia um grão disponível, o milho, cuja domesticação é muito mais complicada do que as do trigo e da cevada. Assim, acabaram afetados pela menor variedade de alimentos a serem cultivados, assim como por uma menor disponibilidade de animais domesticáveis com força de tração para fazer o cultivo do solo. Cinco mil anos depois da lhama ter sido domesticada na Cordilheira dos Andes, olmecas, maias, astecas, e outras sociedades nativas da Mesoamérica ainda não tinham animais de tração ou variedade de mamíferos domésticos comestíveis, só tinham o peru e o cachorro. Todas estas são casualidades cruciais das condições geográficas que interferiram diretamente na história humana!
A maior concentração e variedade de espécies de animais na Eurásia tem uma razão: é onde está a faixa continental que representa o maior volume de terras do mundo, e o de maior diversidade ecológica em termos de variação climática. A distância Leste-Oeste da Eurásia é a maior extensão de terras do planeta! A extensão Norte-Sul das Américas é muito maior (14.500 quilômetros) do que a sua extensão Leste-Oeste. O mesmo acontece, em menor grau, na África, sendo que este é o único continente que se estende da zona temperada norte do planeta à do sul. Já o eixo da Eurásia é Leste-Oeste, o que gerou implicações determinantes, sobretudo em capacidade de adaptação ao clima e de se locomover por longas distâncias. Esta diferença foi crucial para o ritmo de expansão da agricultura e da pecuária, tendo consequências diretas sobre o ritmo de expansão das inovações tecnológicas de criação humana.
Num eixo Leste-Oeste há muitas latitudes comuns, com mesmas durações de luz do sol ao longo do dia, e com variações sazonais muito similares, gerando regimes de clima e volumes de chuva parecidos. Estes fatores facilitaram a disseminação de alimentos derivados de plantas domesticadas por toda a Eurásia e o norte da África. Assim, a maioria das culturas agrícolas originadas no Crescente Fértil teve facilidade de adaptação desde a França até o Japão, mas não tiveram esta mesma adaptação nas latitudes mais frias e nas regiões tropicais.
À época em que Jesus Cristo viveu, por exemplo, os cereais originários do Crescente Fértil já estavam sendo cultivados numa vasta extensão de 13 mil quilômetros, desde a costa do Oceano Atlântico na Irlanda, até a costa do Oceano Pacífico no Japão.
As características comuns das mesmas latitudes também facilitaram a disseminação dos animais domesticados, que não tinham grandes barreiras em termos de variação climática. São efeitos similares que facilitaram tanto a domesticação de animais quanto o processo de domesticação de espécies vegetais.
Estudos genéticos provaram que a maioria das culturas do Crescente Fértil é proveniente de um único processo de domesticação, cujas culturas resultantes se difundiram tão rápido que evitaram outras domesticações incipientes de espécies correlatas. Como exemplo: depois que as culturas agrícolas atravessaram as planícies da Hungria a caminho da Europa central, por volta de 5.400 a.C., espalharam-se tão depressa que os locais dos primeiros agricultores da vasta área que vai da Polônia até a Holanda são quase inteiramente contemporâneos quando se faz a datação de suas cerâmicas típicas com adornos lineares.
A maioria das culturas alimentares do Crescente Fértil também chegou depressa ao Egito e se expandiu para o sul até as frescas regiões montanhosas da Etiópia, mas elas não foram além disto.
Ao sul do Deserto do Saara, houve domesticação de plantas silvestres nativas da Zona do Sael, adaptadas às temperaturas quentes, mas não houve diversificação nem intercâmbio com outras regiões mais ao norte da África. Todas as culturas agrícolas nativas da África - a região do Sael, a Etiópia e a África ocidental - têm origem ao norte da linha do equador. Nem um só produto africano teve origem ao sul. Isto é a principal pista do motivo pelo qual os falantes das línguas nigero-congolesas, partindo de regiões ao norte da linha do equador, conseguiram expulsar o povo pigmeu da África equatorial e os coissã da região subequatorial, já que a ampla maioria das plantas silvestres destas regiões era imprópria para a domesticação. Séculos depois, nem os agricultores herdeiros de milhares de anos de experiência agrícola foram capazes de converter as plantas nativas do sul da África em cultivos.
Nas Américas, a distância que separa onde estão hoje o México e o Equador é de meros 1.900 quilômetros, quase a mesma que separa os Bálcãs da Mesopotâmia. Entretanto, a intercalação de diferentes climas extremos - entre planícies quentes e vastas cadeias montanhosas frias - impediu a expansão das culturas agrícolas e pecuárias entre regiões bastante próximas. A faixa de terra muito estreita na América Central também foi tão importante quanto o gradiente latitudinal para reter o intercâmbio de produtos agrícolas e de animais. As três regiões deste continente que abrigavam sociedades urbanas - Andes, Mesoamérica e sudeste dos Estados Unidos - nunca estiveram ligadas entre si por meio de um comércio intenso e volumoso como as regiões da Eurásia, ficando isoladas entre si por barreiras geográficas.
Na Nova Guiné, a segunda maior ilha do mundo, atrás apenas da Groenlândia, e ao norte da Austrália, há evidências do desenvolvimento da agricultura na região desde 7.000 a.C., com as culturas de cana de açúcar, banana, castanha e inhame, além de caules comestíveis de ervas, raízes e verduras. Mas a sua fauna não incluía espécies de grandes mamíferos domesticáveis, tendo o porco, a galinha e o cachorro chegado posteriormente, introduzidos por povos migrados a partir da Indonésia. A dieta de proteínas das populações da região era suprida com a ingestão de ratos, aranhas e sapos no interior da ilha, enquanto no litoral havia peixes.
Já a Austrália é o continente mais seco do planeta, de menor território, mais plano, mais estéril, climaticamente mais imprevisível e biologicamente mais pobre. Até a chegada dos europeus, havia abrigado as sociedades humanas mais peculiares e a população menos numerosa dentre todos os continentes, sendo o único no qual os povos nativos não tinham desenvolvido quaisquer das chamadas "marcas de civilização", vivendo desprovidos de agricultura, gado bovino, metal, arcos e flechas, grandes construções, aldeias povoadas, escritas, tribos centralizadas, ou estados políticos. Todos os aborígenes australianos eram nômades, ou caçadores-coletores seminômades, todos dependentes de instrumentos de pedra. Ao mesmo tempo, perto dali, na Nova Guiné, o povo papua era formado por lavradores e criadores de porcos, que viviam em aldeias e eram politicamente organizados em tribos. Um fator a mais a contribuir para isto é que a Austrália tem o solo mais antigo e pobre dentre os continentes da Terra, por causa da pouca atividade vulcânica, e pela falta de montanhas altas e geleiras, características que proporcionaram poucos rios e um clima seco. Uma geografia extremamente pouco favorável a adensamentos populacionais significativos.
Os esqueletos de aborígenes e papuas se diferem dos encontrados no sudeste asiático. O tronco familiar e comum no leste da Ásia foi sendo substituído por outros povos migrados de outras partes do continente asiático. Os aborígenes australianos e os papua também tinham diferenças genéticas bem claras: grupos sanguíneos presentes na Nova Guiné são inexistentes na Austrália, e o cabelo crespo dos papua contrasta com os cabelos lisos ou ondulados dos aborígenes. As famílias linguísticas papua e aborígene não têm relação entre si, assim como não tem com as famílias linguísticas asiáticas, com exceção de alguma difusão de vocabulário, nas duas direções, pelo Estreito de Torres.
As trocas de genes foram limitadas e bastante tênues. Os polinésios povoaram as ilhas mais distantes do Oceano Pacífico, eram os maiores navegadores do mundo na era neolítica, sendo as línguas austronésias faladas como línguas nativas em metade da área do globo terrestre, da Ilha de Madagascar na costa da África até a Ilha de Páscoa, no Oceano Pacífico (na metade do caminho entre a Oceania e a América do Sul).
A Austrália e a Nova Guiné foram ocupadas há 40 mil anos por humanos que chegaram pelas ilhas da Indonésia e das Filipinas, o que certamente exigiu uma travessia oceânica, feita supostamente com canoas rústicas de madeira e bambu. Depois deste primeiro aportamento, os registros arqueológicos não fornecem nenhuma prova convincente de outras chegadas de seres humanos na Grande Austrália por dezenas de milhares de anos, quando só então vem a surgir outros indícios seguros, com restos de cachorros e porcos levados à região por novas populações oriundas da Ásia, onde estes animais já estavam domesticados havia muito mais tempo.
É uma história similar à das primeiras culturas agrícolas desenvolvidas a leste de onde hoje está os Estados Unidos, onde a agricultura se iniciou entre 2.500 a.C. e 1.500 a.C., na região dos afluentes do rio Mississipi, com as culturas da abóbora, do girassol, da verdura quenopódio (prima do espinafre), e do sumpweed (um vegetal bastante nutritivo, mas de odor não muito agradável, e cujo manuseio pode provocar irritação na pele humana). Tanto ali quando na Nova Guiné, houve um boom populacional quando os povos que viveram nestas áreas receberam culturas de alimentos com maior valor nutritivo: a batata doce, introduzida na Nova Guiné a partir de populações migradas da Indonésia, e o milho e o feijão, introduzidos nos Estados Unidos a partir de populações migradas do México.
A soma de todos estes fatores demonstra a forte inter-relação entre as condições geográficas e a capacidade de expansão da civilização nos primórdios de expansão da humanidade. Como a evolução desta narrativa logo mostrará: os povos favorecidos pela localização geográfica que herdaram ou desenvolveram a produção de alimentos, tornaram-se capazes de subjugar os demais.
Se você prestou atenção nas datas, todos estes desenvolvimentos de culturas agrícolas ao redor do mundo se formaram muito tempo depois daquelas primeiras que surgiram no Oriente Médio e posteriormente se difundiram pela Ásia e pela Europa. O fator determinante - como já deve estar claro - foi o eixo Leste-Oeste da Eurásia, que permitiu a difusão de civilizações sem mudança de latitude e das variáveis ambientais associadas, condições não encontradas no eixo Norte-Sul das Américas e da África, que além do mais eram continentes mais fragmentados geograficamente por áreas impróprias para a produção de alimentos e a formação de populações humanas densas. Em consequência, não houve difusão de animais domésticos, da escrita, de entidades políticas e de outras inovações, havendo uma difusão muito mais limitada e lenta da agricultura e das tecnologias.
Foi a interferência destes fatores geográficos sobre a dispersão dos Homo sapiens pelo Planeta Terra o que deu forma à construção das diferentes identidades culturais da humanidade. Um dos efeitos percebidos destas sobreposições de relações entre populações humanas é a marca deixada sobre a diversificação dos idiomas falados pelos diferentes povos. Em comunidades que são geograficamente separadas e isoladas, depois de alguns séculos de mudanças independentes, uma mesma unidade linguística se subdivide em dialetos completamente diferentes que, com o passar de um tempo ainda maior, deixam de ser compreensíveis entre si, ainda que sigam formando uma mesma família linguística, herdada de uma origem comum.
Os quatro aspectos ecológicos que têm maior correlação com a diversidade linguística são: latitude, variações climáticas, produtividade biológica, e diversidade ecológica local. Áreas tropicais têm maior diversidade de línguas. Quanto maior variação climática existir, menor é a diversidade de línguas: florestas com clima menos variado têm mais línguas diferentes, enquanto no deserto o clima varia mais, entre um calor escaldante durante o dia e um frio intenso durante a noite, sendo a diversidade linguística menor. Ambientes mais produtivos têm maior variação de línguas, pois atraem maiores aglomerações de pessoas. E a diversidade linguística é maior em áreas de grande diversidade ecológica, como áreas montanhosas acidentadas, ou quaisquer outras que apresentam grandes barreiras à mobilidade humana. Por último: baixas disponibilidades alimentares implicam em baixas densidades populacionais humanas, o que por sua vez é um fator causador de diversidade linguística.
A humanidade chegou ao Século XXI com 7 mil línguas distintas faladas no planeta. Toda a Europa e oeste da Rússia tem menos de 100 línguas nativas, o continente da África e o subcontinente da Índia têm mais de 1.000 línguas cada, tendo só Nigéria e Camarões, respectivamente, 527 e 286 línguas. A pequena ilha de Vanuatu, no Oceano Pacífico, tem 10 línguas diferentes em menos de 13 quilômetros quadrados. Mas a mais alta variedade de famílias linguísticas diferentes é encontrada na ilha da Nova Guiné, que tem, impressionantemente, creca de 1 mil línguas diferentes sendo faladas numa área de somente 786 mil quilômetros quadrados. No início do Século XXI, no mundo a ampla maioria das 7 mil línguas tinha poucos falantes, enquanto há 9 línguas "gigantes" que tinham, cada uma, mais de cem milhões de falantes. São elas, em ordem decrescente de falantes nativos: mandarim (chinês), espanhol, inglês, árabe, hindi, bengali, português, russo e japonês. Não estão entre as mais faladas, apesar de uma forte presença, o francês, o alemão e o italiano.
Assim como no processo de dispersão humana, a dispersão linguística tem fortes fatores políticos por detrás de suas propagações, e houve extinções pelo caminho, havendo vários exemplos: a expansão do Império Romano pelo Mediterrâneo extinguiu o etrusco e quase todas as línguas celtas, a expansão do Império Inca na Cordilheira dos Andes disseminou o quéchua e o aimará, que se sobrepuseram a outras línguas, assim como o colonialismo europeu acabou com várias línguas nativas pelas Américas. Como outro exemplo: a Austrália aborígene tinha 250 grupos linguísticos, todos sobrevivendo como caçadores-coletores, com média de mil falantes por língua. Todos os relatos confiáveis descrevem os antepassados aborígenes como falantes de no mínimo duas línguas. É muito provável que este padrão multilinguístico também acontecesse na antiguidade em outros continentes.
A história dos idiomas conta a história da humanidade: o isolamento longo entre si é comprovado pela não correlação entre as línguas faladas por aborígenes, papuas e povos asiáticos, apesar da proximidade geográfica entre eles, ao mesmo tempo em que as dificuldades geográficas do terreno e um estado de guerra intermitente fizeram com que a Nova Guiné tivesse a maior fragmentação linguística, cultural e política do planeta, com a maior concentração de diferentes idiomas do mundo, divididos em várias famílias linguísticas, com línguas isolados tão diferentes entre si quanto o inglês e o chinês o são. Fato que comprova toda a complexidade de como se deu a dispersão sapiens pelo planeta.
Na África, as 1.500 línguas faladas podem ser agrupadas em apenas 6 famílias: afro-asiáticas, nigero-congolesa, banta, nilo-saariana, coissã, e austronésia. Ao mesmo tempo em que a subfamília linguística semítica, à qual pertence o aramaico, o hebraico e o árabe, tem origem africana, formando uma das muitas ramificações da família afro-asiática, estando 12 das 19 línguas semíticas sobreviventes restritas à região da Etiópia.
Em meio a tamanha diversidade de culturas, aonde e como os alicerces da civilização moderna foram erguidos? Foram onde as condições geográficas favoreceram a proliferação de culturas agrícolas e de animais domesticáveis, viabilizando os adensamentos populacionais que intensificaram intercâmbios de conhecimento e estimularam as inovações. Foi junto aos maiores adensamentos populacionais que surgiram as mudanças que construíram as bases de organização da civilização.
Por volta de 5.500 a.C. começaram a surgir as grandes tribos centralizadas em poder, reunindo populações bem maiores em torno de si. Estas tribos tinham chefes, que arqueologicamente são identificados porque tinham enterros rituais diferenciados. O marco de surgimento destas chefaturas, não por coincidência, foi a região do Crescente Fértil. O crescimento destes adensamentos populacionais tinha feito com que as pessoas tivessem que aprender a conviver com pessoas que não eram consanguíneas ou aparentadas.
A característica econômica mais marcante destas tribos centralizadas foi o surgimento da cobrança de impostos para sustentar o poder político e o zelo pelas regras de convívio coletivo. E uma das questões mais estudadas da história da humanidade é a busca do entendimento de por que populações aceitavam pagar tributos para suas elites, tendo sido esta ao mesmo tempo, sempre, uma das principais razões para os conflitos sociais.
Entretanto, é preciso entender a algo primeiro: como ocorreu a segregação de evolução das civilizações humanas e as diferenças em termos de tecnologia? Para entender a resposta, é preciso compreender que existe uma íntima relação entre a capacidade de inovação e as segregações políticas surgidas no passado. A origem, em última instância, relaciona-se ao argumento já apresentado referente à história mais longa da Eurásia com sociedades populosas e economicamente especializadas, que levam a uma estruturação politicamente centralizada. Cinco áreas tecnológicas podem ser destacadas: os metais usados para fabricar ferramentas, a tecnologia militar mais potente, as fontes de energia para operar máquinas, a utilização mecânica da roda, e a capacidade de navegação marítima contra o vento, com velocidade, poder de manobra, e robustez das embarcações muito superior, com bússolas magnéticas, lemes de popa e canhões. Mas até se chegar a tal desenvolvimento, houve um processo evolutivo paulatino e gradual rumo ao atingimento de tais níveis de conhecimento.
Antes de tudo, houve uma invenção que facilitou a toda esta evolução: os estados da Eurásia dispunham de escrita, sendo burocracias alfabetizadas que facilitavam a administração política e o intercâmbio econômico, orientando as explorações e conquistas, e disponibilizando uma série de informações e experiências humanas. A escrita também existia nas Américas, mas não era um veículo para transmitir informações detalhadas. Foi a escrita o que tornou a transmissão de informações mais fácil, mais detalhada, mais precisa e mais convincente, permitindo um maior estoque de conhecimento, o embrião catalisador de todos os demais avanços obtidos.
A forma de escrita que se tornou mais comum na humanidade é o alfabeto, que utiliza um símbolo único (letra) para simbolizar cada som básico do idioma (fonema). Também existe a escrita por logogramas, com símbolos gráficos que representam uma palavra inteira, como nos sistemas chinês e japonês, e no passado nos sistemas hieróglifos egípcios, nos glifos maias e na escritura cuneiforme dos sumérios.
As evidências da arqueologia também apontam para a mesma região. Quando foram iniciadas escavações arqueológicas em busca das cidades mencionadas no Antigo Testamento - como Nínive e Nemrod - foram encontradas ruínas ainda mais antigas de cidades e reinos que pertenciam a uma cultura até então desconhecida e que não constava nas escrituras bíblicas judaicas. Tratava-se da civilização dos sumérios, que falava uma língua sem vínculos com a família linguística semita (da qual derivam o hebraico e o árabe).
Há duas invenções indiscutivelmente independentes da escrita na história humana, a feita pelos sumérios na região da Mesopotâmia, no Crescente Fértil, por volta de 3.500 a 3.000 a.C., e na Mesoamérica, que ocorreu por volta de 600 a.C.. Há alguma controvérsia histórica ainda se as escritas egípcia (que teria surgido por volta de 3.000 a.C.) e chinesa (por volta de 1.300 a.C.), também teriam surgido de forma independente, ou se por inovações migradas de outras regiões. Todas as demais foram emprestadas, adaptadas ou no mínimo inspiradas por sistemas de escrita já existentes. Na Mesoamérica, a mais antiga escrita preservada é do povo zapoteca, ao sul do que hoje é o México, que surgiu por volta de 600 a.C.. Entretanto, a escrita mesoamericana melhor decifrada foi a dos maias, cuja data escrita mais antiga encontrada se refere a 292 d.C..
Irônica e paradoxalmente, a escrita não foi inventada como um meio de comunicação espelhado na linguagem. A adoção de símbolos associados a conceitos para expressar a comunicação mental do ser humano veio na sequência. Inicialmente a simbologia da escrita foi inventada com o propósito de controle contábil de estoques de produção e de registro de relações comerciais. A escrita teria sido inventada com um propósito econômico-financeiro, e não como um meio de expressão.
A maior de todas as inovações da história humana não nasceu com as pretensões de propósito que a transformaram no maior de todos os diferenciais da humanidade, na libertação definitiva que nos separaria para sempre da similaridade frente a quaisquer outras formas de vida que viviam neste planeta. No senso comum do ser humano que vivia por volta de aproximadamente 3.500 a.C., quando a escrita foi inventada, talvez não houvesse qualquer senso lógico de se expressar em símbolos a palavra e o pensamento. Nós já falávamos, com isto nos comunicávamos, o que já seria mais do que suficiente. Ninguém pensava naquele momento na escrita como um meio de armazenamento de informação e conhecimento.
Como já dito, foram os sumérios, no Oriente Médio, aqueles que primeiro inventaram um sistema para armazenar e processar informações. Combinando símbolos, foram capazes de preservar muito mais dados do que o cérebro humano era capaz de se lembrar. A mensagem mais antiga já encontrada por arqueólogos estava registrada numa tábua de argila, e dizia: "29.086 medidas de cevada recebidas em 37 meses. Assinado: Kushim". Não se sabe, e nunca se saberá, se Kushim era o nome da pessoa responsável pelo controle, ou se era a designação de um cargo de quem era responsável por este controle. Fato é que tal inscrição, inquestionavelmente, referia-se ao registro de uma transação comercial, e estava diretamente relacionada ao salto de inovação que existiu a partir da Revolução Agrícola. São evidências incontestáveis de que junto ao surgimento das primeiras cidades e estados, as aglomerações de convívio coletivo estimularam inovações que levaram ao gradativo surgimento da escrita, da matemática e da religião.
Com os aglomerados de pessoas cada vez maiores, o Crescente Fértil passou por uma explosão de inovações. Por volta de 4.200 a.C. tinham sido criadas as primeiras fornalhas de cobre, nas regiões onde hoje estão Israel e Jordânia. A partir de 4.000 a.C. surgem grandes civilizações nos leitos dos rios Tigres e Eufrates, na Mesopotâmia - entre as quais estavam a Suméria, Uruk, Babilônia, Assíria, e Ur (que seria a cidade onde teria vivido Abraão, patriarca dos hebreus) – além de também no leito do rio Nilo, no Egito. Por volta de 3.500 a.C., na região da Mesopotâmia é feita a fundição de bronze (metal mais duro e mais maleável do que o cobre, e mais fácil de ser moldado, composto em 90% por cobre e em 10% por estanho), e há a invenção da roda. Por volta desta mesma época, os babilônios foram os primeiros a aprender a prever o acontecimento de eclipses solares. Em torno a tudo havia um fator determinante: a capacidade de se organizar gerou a ampliação da capacidade de se inovar e se criar. E tais evoluções levaram ao surgimento da escrita, que catalisaria e ampliaria ainda mais a todo o processo de inovações.
Todo o processo foi igualmente lento e complexo, com convergências entre vários fatores que vieram a se complementar. Posteriormente à escrita, os alfabetos teriam surgido aparentemente só uma vez na história humana, entre os que falavam a língua semítica na região que vai nos dias de hoje da Síria até o Monte Sinai, durante o segundo milênio a.C.. No Século VIII a.C., os gregos foram os primeiros a incluir todas as vogais em seu alfabeto, apropriando-se de letras que existiam no alfabeto dos fenícios. Após surgir na Suméria, a 6.500 quilômetros a oeste dos primeiros centros urbanos chineses, a escrita apareceu por volta de 2.200 a.C. no Vale do Indo, a cerca de 4.000 quilômetros a oeste, sem que se conheça nenhum sistema antigo que tenha existido entre o Vale do Indo e a China, o que é um indício de que o surgimento na região chinesa poderia ter sido também independente. Já os hieróglifos egípcios teriam surgido por volta de 3.000 a.C. a uma distância de apenas 1.300 quilômetros da Suméria, podendo ter sido produto de uma invenção independente, apesar da proximidade de surgimento entre ambos. Em todos estes casos, um mesmo padrão: pouca gente aprendia a usar estes sistemas antigos de escrita, sendo este conhecimento restrito aos escribas profissionais a serviço ou do rei ou do templo religioso de cada cultura. É mais um indício da forte relação que existiu entre os processos de grandes aglomerações humanas, formação de Estados, e ampliação da capacidade de inovação.
A capacidade de armazenar as tradições mudou todas as relações humanas a partir de então. A Bíblia hebraica, a Ilíada grega, a Tipitaka budista, e a Mahabharata hindu, todas começaram como obras orais, transmitidas por muitas gerações, que a partir do momento que puderam ser registradas, foram padronizadas, assim como todas as formas de ensinamento existentes então, mudando para sempre as relações humanas. O conhecimento humano passava a partir de então a ser um estoque, e não mais um fluxo avulso no tempo.
A inovação nas sociedades neolíticas esteve sempre baseada num conjunto de conhecimentos coletivos acumulados por séculos e séculos. Muitas de suas descobertas tiveram um efeito cumulativo de reconfiguração da vida cotidiana de maneira tão profunda quanto o tear automático ou a lâmpada elétrica. Ninguém sabe quem pela primeira vez percebeu que era possível fazer a massa de pão crescer com o acréscimo de fungos chamados de levedura, até porque não deve ter sido uma invenção que possa ser associada a uma única pessoa. Tudo que criamos como espécie, com certeza, foi parte de descobertas baseadas em séculos de experiências e conhecimentos acumulados.
Mais conhecimento acumulado significa uma capacidade ainda maior de inovação. Todos os inventores famosos reconhecidos tiveram precursores e sucessores capazes, e fizeram seus aperfeiçoamentos numa época em que a civilização humana estava em condições de usar as suas invenções. Sempre foi assim, independentemente do tempo histórico de seus inventos, sendo o único fator variável o quanto havia de conhecimento estocado pelo coletivo da humanidade a partir dos quais puderam inventar. A tecnologia evolui de modo cumulativo, não em atos heroicos isolados, sendo dependente da capacidade de realização de intercâmbio de ideias. É isto o que sempre pautou a nossa capacidade de evoluir e avançar.
Mas sempre houve um fator mais importante: o poder de conexões inventivas! A roda foi inventada de forma independente na Mesoamérica, e a lhama foi domesticada na região central da Cordilheira dos Andes por volta de 3.000 a.C.. Cinco mil anos depois e o único animal de carga original das Américas e com potencial de tração, e as únicas rodas inventadas no continente, ainda não tinham se encontrado, contidos pela geografia fragmentada do continente, com um istmo com apenas 64 quilômetros de largura no Panamá impedindo que estas inovações se encontrassem.
É sob o contexto já citado de adensamentos humanos crescentes e de inovações se acumulando, que surgem os conceitos de ordenamento social coletivo. Ao longo do Século XX, os cientistas sociais definiram o Estado em termos estritamente funcionais, argumentando que a medida que as sociedades se tornaram mais complexas, surgiu uma necessidade de criar estruturas de comando de cima para baixo para coordenar todas as atividades. Afirmavam que basicamente uma vez que os Estados são complexos, qualquer forma de ordenação social mais complexa deve ter sido um Estado. As evidências arqueológicas posteriores, no entanto, comprovaram que nem sempre foi assim. O processo de formação de grandes sociedades ao longo da história da humanidade foi variado e não seguiu sempre uma mesma lógica única.
Qual era a necessidade de que fosse construída uma ordem social coletiva? Cabe como reflexão que há três formas de liberdade fundamentais primárias: a liberdade de ir e vir, a liberdade de desobedecer a ordens, e a liberdade de reordenar as relações sociais. E há três formas elementares de dominação como fundamentos possíveis de poder social: o controle da violência, o controle das informações, e o poder de carisma individual, todos três, em geral, sempre coexistindo em certa medida.
A hierarquia imposta pela força é a mais elementar, pois reside na essência da natureza animal, e é aquela que compartilhamos com todas as demais espécies que vivem neste planeta. As hierarquias fundadas em conhecimento sempre foram muito comuns e estão intimamente ligadas às bases de formação da civilização, seja por informações técnicas referentes a tecnologias específicas, seja por mistificações que tentavam entender e explicar tudo a sua volta com base num ordenamento superior impostos por nossas crenças e por entidades associadas a elas, tendo sido o que viria a originar as religiões (as nossas crenças e os nossos conhecimentos serão os próximos pontos que serão aprofundados). Por fim estão aqueles fundamentos de poder sustentados por habilidades individuais particulares.
A formação de estados a partir de tribos centralizadas foi observada diversas vezes. Os primeiros estados surgiram por volta de 3.700 a.C., mais uma vez não por coincidência tendo sido primeiro na região da Mesopotâmia, no Crescente Fértil, e pouco depois também no Egito. Numa época não posterior a 3.500 a.C. no Egito, cerca de 5 séculos antes da Primeira Dinastia, existiam sepulturas de pequenos monarcas em vários locais por todo o vale do Rio Nilo, e também mais ao sul, na Núbia. Não conhecemos seus nomes, uma vez que a escrita ainda não havia se desenvolvido bem, e ao que parece nenhum deles controlou territórios muito extensos.
Já na região da Mesopotâmia, em seu período Dinástico Inicial houve a constituição de dezenas de cidades-Estados de dimensões variadas, cada qual governada por seu rei-guerreiro. As cidades que normalmente governavam existiam havia séculos, sendo núcleos mercantis com arraigadas tradições de autogoverno. Os reis não alegavam que fossem propriamente divinos, sendo apenas prepostos dos deuses e seus heroicos defensores. Não há evidências de que estes primeiros reis reivindicaram soberania, a qual, em última análise, era um atributo restrito aos deuses.
Quase todos os grandes estados antigos deixaram marcas arqueológicas visíveis, como ruínas de grandes templos com desenhos padronizados e cerâmicas. A população das tribos centralizadas agrupava de milhares a dezenas de milhares, e a dos estados chegavam às centenas de milhares. Sociedades com um sistema eficaz para a solução de conflitos, e com tomadas de decisão definidas e harmoniosa redistribuição de recursos econômicos, podiam desenvolver tecnologia mais sofisticada, concentrar seu poder, tomar territórios maiores e mais produtivos, e dominar as sociedades menores.
Durante os últimos treze mil anos, a tendência predominante na sociedade humana foi a substituição de unidades menores e menos complexas por unidades maiores e mais complexas, com inúmeras mudanças em uma direção ou em outra, com 1.000 fusões para 999 reversões. O surgimento de estados levou ao aumento na quantidade de guerras e, por conseguinte, da escravização de outras pessoas de tribos ou estados inimigos. A maior especialização econômica dos estados com mais produção em massa e mais obras públicas, gerava maior necessidade de trabalho escravo, assim como o maior número de guerras proporcionava mais cativos disponíveis. As guerras, ou as ameaças de guerra, exerceram um papel fundamental na maioria, se não em todas, as fusões de sociedades que levaram a humanidade a formar organizações maiores.
Em 3.300 a.C., Uruk, capital da Suméria, era uma aglomeração urbana com cerca de duzentos hectares, bem maior do que as cidades vizinhas na planície aluvial do sul da Mesopotâmia. Tinha uma população estimada entre 20 mil e 50 mil habitantes, e os caracteres cuneiformes foram inventados em Uruk para serem empregados sobretudo na contabilidade dos templos. A cidade original contava com uma acrópole ocupada por um distrito público elevado chamado de Eanna, a "Casa do Céu", dedicada à deusa Inanna, em cujo topo se erguiam nove edificações monumentais.
A existência de uma escola de escribas neste local para gerenciar relações complexas entre pessoas, animais e coisas, mostra que ali não era apenas a "morada dos deuses" utilizada para rituais coletivos, mas que contemplava também bens e atividades a serem administrados, com um corpo de aperfeiçoamento de técnicas pedagógicas a serem perpetuadas.
Todas as evidências indicam uma forte correlação entre a capacidade de sustentar populações maiores a partir da maior capacidade de produção de alimentos, a um aumento da capacidade de invenções viabilizada por mais cabeças pensando juntas para pensar ideias novas e, a partir disto, a uma ampliação da capacidade de acumular conhecimentos. Eram as bases de expansão da civilização humana sendo sedimentadas!
Em todas as partes do mundo onde existem indícios disponíveis, os arqueólogos encontraram comprovação de aumento da densidade populacional associado ao surgimento da produção de alimentos. Mas foi o aumento da densidade que forçou as pessoas a recorrer à produção, ou foi a produção o que permitiu o aumento da densidade populacional? A cadeia de causas atua em ambas as direções. É um processo auto catalítico, pois os efeitos se combinam e catalisam um ciclo positivo de retorno, que vai se acelerando com o tempo.
A disponibilidade de mais calorias para consumo implicou na viabilização da formação de maiores aglomerações de pessoas. Um hectare de plantação pode alimentar muito mais criadores e agricultores do que o método de caça-coleta. E nas sociedades humanas que domesticaram animais, ainda havia carne, leite, fertilizantes e força motriz para arar a terra, ampliando as proteínas disponíveis.
O modo de vida sedentário dos agricultores permitia estoque de comida (dos excedentes de produção), viabilizando o surgimento de especialistas em atividades não relacionadas ao cultivo. Este estoque foi gradativamente passando a ser usado para sustentar primeiro vigias para protege-los, que depois vieram a ser soldados de uma força militar nascente. É um embrião do que alimentaria, a partir do amadurecimento das nossas crenças (assunto a ser tratado em breve), a guerras de conquista justificadas por ideologias implantadas por líderes religiosos.
A domesticação de animais e o cultivo de plantas geraram excedentes de alimentos disponíveis e melhores meios de transporte, que foram pré-requisitos importantes para o desenvolvimento de sociedades sedentárias, politicamente centralizadas, socialmente estratificadas, economicamente complexas e tecnologicamente inovadoras, que viabilizaram os impérios, a alfabetização e a produção de armas de aço.
Estes mesmos padrões são observados posteriormente em outras regiões onde foram viáveis grandes adensamentos humanos. Em cerca de 2.600 a.C. surgiu às margens do rio Indo na atual província de Sindh, onde hoje é o Paquistão, a cidade de Mohenjo-Daro, que existiu durante setecentos anos, tendo sido a primeira cultura urbana a florescer no sul da Ásia. Os elementos são os mesmos, mas as identidades culturais forjadas no processo tem cada uma as suas características próprias. Como exemplo: por volta de 1.200 a.C. surgiu na região onde hoje estão Índia e Paquistão o "Sistema de Varnas". No Rig Veda, uma antologia de hinos sacrificiais, o sistema, tal qual descrito em sânscritos posteriores, é descrito em quatro categorias hereditárias (varnas): os sacerdotes (brâmanes), os guerreiros ou nobres (xátrias), os lavradores e mercadores (vaixás), e os trabalhadores braçais (sudras). Em seguida vinham aqueles tão inferiores (párias) que eram excluídos por completo do sistema social. Uma identidade cultural completamente distinta à que emergiu no Crescente Fértil e no Oriente Médio. Nossas identidades culturais partem de um mesmo embrião, mas tomam uma infinidade de caminhos diferentes, num reflexo de todas as complexidades por detrás das diversidades das relações humanas.
As sociedades humanas evoluíram na história conforme a tecnologia avançou, através de inovações que proporcionaram saltos de conhecimento. As diferenças de talento destacadas por estes avanços de conhecimento ganharam cada vez mais importância, formando a base para uma divisão social cada vez mais complexa em torno do conhecimento e do acesso à educação.
A marcha da história de evolução da civilização humana estava preparada, e veio a ser um processo nada linear, repleto de avanços e retrocessos, longe de ser uma caminhada sempre em direção a mais conhecimento. As evidências disto aparecem já no próprio Crescente Fértil: a vitória da Assíria sobre a Babilônia muito provavelmente foi o primeiro grande caso de vitória da "barbaridade" e da "brutalidade" sobre o "conhecimento científico". É um caso que sinaliza aquilo que diversas vezes aconteceu na história humana, entre muitas provas que evidenciam que a evolução se dá em ciclos não lineares. Mais adiante serão vistos outros casos que demonstram isto. A evolução é um processo de idas e vindas entre avanços e retrocessos, e não há qualquer garantia de quais destes vetores irá predominar, e nem por quanto tempo cada qual destes ciclos durará, até porque sempre há diversos deles se manifestando ao mesmo tempo.
O fato é que aquela revolução iniciada no Crescente Fértil deu a largada para uma marcha da humanidade perante a qual não havia volta! Por volta de 3.100 a.C. houve a formação do primeiro reino do Egito Antigo, no vale do baixo Rio Nilo, em época na qual decorações encontradas num vaso em uma ruína egípcia provam que já existia a navegação em barcos a vela. Por volta de 3.000 a.C. surge a primeira forma de dinheiro que se tem notícia na história, inventada na Suméria através de grãos de cevada utilizados como fatores de troca. Posteriormente na Mesopotâmia surgiu como dinheiro os siclos de prata, unidades de peso medidas em quantidade de gramas deste metal. Por volta da mesma época surgem na Grécia as plantações de vinhedos e oliveiras, as quais levaram a um aumento de 40% no acesso a calorias na alimentação. Estes fatores, entre outros, acumulavam-se e se retroalimentavam para viabilizar uma capacidade ainda maior de expansão destas civilizações.
Por volta da mesma época, mas muito longe dali, na região da Cordilheira dos Andes, na América do Sul, onde hoje é o Peru, estava sendo iniciado o cultivo do milho e da batata, e a domesticação da llama e da alpaca como animais de transporte de carga, feitos do povo nazca, que deixou uma simbologia de hieroglifos gigantes, que só podiam ser vistos do alto. A humanidade amadurecia e emergia como civilizações em diferentes lados do planeta. Mas nenhuma outra região do mundo naquela época foi capaz de igualar o poder de inovação que emergiu dos primeiros povos que transitavam entre o Oriente Médio e o nordeste da África. Por volta de 2.700 a.C. foram criados no Egito os pergaminhos à base de papiro, mais ou menos na mesma época em que foi construída a primeira grande pirâmide. A Grande Pirâmide de Gisé seria erguida por volta de 2.500 a.C., época na qual o Egito tinha uma população estimada em 1 milhão de pessoas. Um império que foi capaz de construir uma grande rede de cooperação em massa, as quais na história humana nunca foram voluntárias, e que muito raramente são igualitárias. A maior parte destas redes costuma ser concebida através de opressão e exploração. Mas tais impérios viabilizam crescimentos expressivos, e assim foi no Egito, que por volta de 1.000 a.C. já tinha uma população estimada de 4 milhões de pessoas. Mas cerca dali, e ao redor de 2.250 a.C. é Sargão, o Grande, quem ergue o primeiro grande império militar, o Acadiano, que mobilizava um exército de 5.400 soldados, inigualável para aqueles tempos, endossando que a humanidade se embrenhava por caminhos sem volta.
Por volta de 2.000 a.C., as velas das embarcações deixaram de ser de couro e passaram a ser de linho, o que aumentou a velocidade das embarcações. Combinado a isto, as boas condições de navegação do Mar Mediterrâneo foram um facilitador para a prosperidade fluir pelo seu litoral. Paulatinamente surgiram as "galeras", embarcações que combinavam velas e remos, levando as embarcações a atingirem velocidades ainda maiores, o que veio a intensificar as relações com as costas do Mediterrâneo, na Europa. Tudo isto mais ou menos ao mesmo tempo em que pela primeira vez houve a domesticação do cavalo na Rússia, animal antes apenas caçado para consumo de sua carne.
As inovações proliferavam em diferentes partes, assim como as bases do ordenamento político e social. Por volta de 1.750 a.C., o Código de Hamurabi serviu como um manual de cooperação para centenas de milhares de babilônios. Ele começava afirmando que os deuses tinham escolhido o rei para fazer a justiça prevalecer, abominar o mau e a perversão, e impedir que os fortes oprimissem os fracos, em busca de um caminho de verdade e retidão. As crenças humanas tomavam novos rumos em seu processo de amadurecimento, e sob formas cada vez mais diversificadas. Em algum momento entre 1.500 e 1.000 a.C. o profeta Zaratustra, o Zoroastro, criou a religião que dominou este período para dar sustentação ideológica ao Império Persa. Uma religião dualista, resultado do equilíbrio entre uma entidade do bem e outra do mal. Eram as bases para grandes transformações nas crenças humanas que estavam por acontecer. Por volta de 1.350 a.C. surge a primeira crença monoteísta que se tem registro, quando o faraó egípcio Aquenáton declarou que uma das deidades menores do panteão de crenças egípcias, o deus Aton, era o poder supremo que governava todo o universo sobre os outros. Sua revolução religiosa não teve êxito, tendo após a sua morte o Egito voltado a ser politeísta, mas a linha de transformação de nossas crenças indicava os rumos que logo viriam a ser dominantes. É sobre o desdobramento deste contexto que devemos entender as relações entre nossa identidade cultural e as nossas crenças.
A capacidade de inovar dos seres humanos foi acumulando a partir de então feitos cada vez mais significativos: por volta de 1.500 a.C. houve o domínio da técnica de criação de vidro e o manuseio de fornos a mil e quinhentos graus centígrados, os quais permitiram a fundição do ferro. O crescimento da civilização acompanhava este ritmo expansivo: se em 2 mil a.C. a população mundial total é estimada que estivesse em 90 milhões, no ano 0 ela já teria saltado para algo próximo a 300 milhões. Números insignificantemente pequenos diante do tamanho de pessoas aglomeradas nas grandes metrópoles do Século XXI, mas cuja aceleração é extremamente significativa para nos mostrar os caminhos que nos conduziram a sermos, como civilização, quem somos hoje.
Após a ascensão dos estados do Crescente Fértil no quarto milênio a.C., com o centro do poder se alternando entre os impérios da Babilônia, dos Hititas, da Assíria e da Pérsia, vieram as conquistas de todas as sociedades avançadas da Grécia por Alexandre, o Grande, no fim do Século IV a.C., marco para que o poder tivesse feito a sua primeira mudança para o oeste (rumo ao ocidente). Posteriormente, as bases do poder viriam a seguir ainda mais para o oeste, quando Roma conquistou a Grécia no Século II a.C., com Grécia e Roma tendo dado uma nova dimensão à escalada de ordenamento civilizatório da humanidade.
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