quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Instintos animais e civilidade: a formação da capacidade elaborada de convívio e de otimização das relações humanas

A história da origem dos seres humanos remonta a tempos muito longínquos, e precisa ser construída em partes para ser bem compreendida.

As evidências na crosta do Planeta Terra indicam que houve uma grande extinção de espécies ocorrida aproximadamente entre 64 e 65 milhões de anos atrás. Neste período foram dizimados os maiores seres vivos que habitavam este planeta antes deste cataclisma, os dinossauros. Sabemos disto pela imensa quantidade de ossadas de grande porte encontradas enterradas abaixo da superfície do planeta, que só foram descobertas relativamente em tempos recentes na história humana: foi apenas no fim do Século XVII que enormes ossos fossilizados encontrados numa pedreira de ardósia em Oxfordshire, na Inglaterra, geraram as primeiras curiosidades. Mas foram necessários mais de cem anos - só em 1824 - para que fossem juntadas todas as pistas e se concluísse - a partir de ossos de uma mandíbula inferior, vértebras, o osso de uma coxa que tinha 60 centímetros de comprimento e 25 de circunferência, e um dente gigante similar ao de uma iguana - que criaturas muito antigas e muito maiores do que os seres vivos então conhecidos tinham habitado o Planeta Terra antes da raça humana e dos animais a ela contemporâneos existirem. Desde então, novas evidências nunca mais deixaram de aparecer em larga escala. Nossa espécie havia passado a ampla maioria do período de sua existência sem saber que muito antes dela tinham existido dinossauros.

A extensa história da vida no planeta está gravada nas rochas sedimentares, o que nos deu a possibilidade de medir escalas de tempo. A ciência que estuda as camadas da crosta do planeta se chama geologia, tendo surgido como um desdobramento avançado do que inicialmente era o estudo da geografia.

Através do estudo do subsolo se determinou os períodos de tempo geológico do planeta, sendo entre 4,56 e 2,5 bilhões de anos atrás o período Arqueano, entre 2,5 bilhões e 541 milhões de anos o Proterozóico e entre 541 a 252 milhões de anos o período Paleozóico. Este último foi subdividido entre 541 e 485 milhões como Cambriano, entre 485 e 444 como Ordoviciano, entre 444 e 419 milhões como Siluriano, entre 419 e 359 como Devoniano, entre 359 e 298 como Carbonífero, e entre 298 e 252 milhões como Permiano.

As eras entre 252 e 65 milhões de anos formam o período Mesozóico, quando os dinossauros reinaram no planeta. Este período é subdivido em três diferentes fases: de 252 a 201 milhões de anos atrás como período Triássico, de 201 a 145 como Jurássico e de 145 a 65 milhões como Cretáceo, que se conclui com a grande extinção que deu fim aos dinossauros na Terra.

Como um marco na geografia, em meio a este período, está o fato de que a 225 milhões de anos atrás havia um único continente no planeta, hoje por nós denominado Pangeia. A partir de então os movimentos tectônicos induzidos pelo magma abaixo da crosta terrestre levaram esta massa de terra a se dividir muito vagarosamente durante os últimos milhões de anos, até virem a ser formados os continentes como os conhecemos hoje.

Chegamos então à grande extinção. De 65 milhões de anos atrás até os dias de hoje é o período Cenozóico, por sua vez também subdividido em dois: o período Terciário aconteceu entre 65 milhões e 1,8 milhão de anos atrás, e o Quaternário de 1,8 milhão de anos até os dias de hoje.

O Terciário é subdividido de 65 a 55,8 milhões de anos como Paleoceno (no qual surgem os primeiros primatas arcaicos), de 55,8 a 33 milhões como Eoceno, de 33 a 23 milhões como Oligoceno, de 23 a 5,3 milhões como Mioceno (quando surgem os primeiros hominídeos, parentes mais distantes dos seres humanos), e de 5,3 milhões a 1,8 milhão como Piloceno. O Quaternário também tem a sua divisão entre o Pleitoceno - quando se iniciou a diferenciação de nossos antepassados animais diretos no gênero "Homo" - fase de 1,8 até pouco mais de 0,01 milhão (10 mil) anos atrás, e o Heloceno, que é a fase na qual se dá o início da construção dos pilares do que vem a ser a civilização humana, quando há o grande diferencial de organização social da raça humana, com o início de cultivos do que conhecemos como agricultura, quando pela primeira vez uma espécie dentre todas as que habitaram este planeta ao longo do tempo passou a manusear a terra em seu proveito.

A caminhada até a civilização foi longa e lenta. Da grande extinção apocalíptica que ocorreu 65 milhões de anos atrás escaparam apenas algumas espécies de pequeno porte que viriam a passar milhões de anos se modificando e evoluindo até ganharem portes físicos maiores em processos contínuos hoje entendidos como "Seleção Natural", processo no qual as espécies menos adaptadas são naturalmente substituídas por outras espécies mais bem adaptadas às condições do meio em que vivem.

Em meio a este grupo de espécies de pequeno porte que sobreviveu à extinção que ocorreu há 65 milhões de anos, estavam os ancestrais mais longínquos de todos os mamíferos que vivem no planeta. Sem qualquer intenção de esgotar ao conhecimento deste tema aqui (até por toda a complexidade que o cerca) vamos falar de algumas das evidências que nos levaram a entender como este processo se desenrolou.

Para entender a nossa natureza - a natureza dos seres humanos - é preciso compreender como nós nos encaixamos nesta árvore de espécies que remontam a dezenas de centenas de milhões de anos, pois absolutamente todo e qualquer ancestral precisa ter sobrevivido à última grande extinção em massa no planeta para que qualquer ser vivo contemporâneo descendente destes sobreviventes esteja aqui.

Para conseguir visualizar isto, é preciso entender que a aparência de um ancestral que têm milhares de milhões de anos é completamente diferente daquela que qualquer ser vivo tem hoje. Os seres vivos só têm alguma semelhança ancestral com seus antepassados de alguns poucos milhões de anos.

Ilustrando melhor: tanto os ramos biológicos de gênero quanto os de espécie se ramificaram ao longo da história de uma forma muito similar a como a linguagem humana também se diferenciou. Em algum momento de um passado longínquo um grupo de pessoas falava um mesmo idioma, mas este grupo se separou, afastou-se um do outro e nunca mais teve contato por dezenas de centenas de anos, de forma que seus idiomas se modificaram a ponto de não mais serem compreensíveis um ao outro. Qualquer um que tente ler um texto em seu próprio idioma escrito há quinhentos anos no passado, consegue visualizar o quanto os idiomas se modificam ao longo do tempo, a ponto de ficarem quase incompreensíveis. Da mesma forma aconteceu com gêneros e espécies de animais, que se afastaram, diferenciaram-se ao longo de uma escala de tempo muito, mas muito maior do que a mencionada para a diferenciação de idiomas, a ponto de divergirem tanto que justificassem uma classificação diferente. Assim como ocorreu com os idiomas, numa escala de tempo muito maior aconteceu com gêneros e espécies nas ramificações da árvore evolutiva de todos os seres vivos.

Aprofundando este detalhamento, além do que a biologia classifica como gênero, é preciso também um entendimento do que significa a diferenciação entre espécies: cavalos e jumentos tem um ancestral comum e partilham muitos traços físicos, mas ao acasalarem, geram descendentes inférteis, logo são espécies diferentes. Um buldogue e um spaniel têm uma aparência muito diferente um do outro, mas podem se acasalar e gerar descendentes férteis, logo são a mesma espécie, sendo ambos cachorros. A biologia agrupa a todas as espécies em gêneros. Por exemplo: leões, tigres, leopardos e jaguares são todas espécies diferentes pertencentes a um mesmo gênero. Os gêneros por sua vez são divididos em famílias, como os felídeos (leões, guepardos e gatos) e os canídeos (lobos, raposas e chacais). Todos os membros de uma família evolutiva têm o mesmo patriarca ou a mesma matriarca em algum ponto muito distante no tempo em suas escalas de mutação.

Como sabemos de tudo isto? Sabemos, porque a humanidade já encontrou diversos esqueletos enterrados em camadas de terra muito profundas que nos permitem saber há quanto tempo tais seres viveram sobre a superfície terrestre. Mas vamos ir construindo por partes como se fecham as peças de todo este quebra-cabeças científico. O importante é ter atenção sobre as escalas de tempo citadas para entender o quão distantes os acontecimentos estão entre si.

Regressando no tempo para bem antes do surgimento de nosso gênero biológico, em algum momento entre 65 e 56 milhões de anos atrás houve o surgimento dos primeiros primatas na Terra. Os primeiros registros fósseis incontestáveis já encontrados por nós têm 56 milhões de anos. Entre 58 e 40 milhões de anos atrás surgiram os antropoides, os ancestrais comuns dos macacos e dos hominínios, ou seja, o ancestral comum mais antigo de absolutamente todos os primatas que vivem neste planeta. É o que sugerem as evidências moleculares, já que as evidências fósseis são escassas. Os hominínios compõem todos os ramos da árvore evolutiva dentro do qual se encaixa o gênero Homo, cujos ancestrais comuns aos macacos de pequeno porte que vivem na Terra teriam surgido, portanto, no mínimo, há mais de 40 milhões de anos. Os fósseis mais antigos que seguramente são deste grupo a terem sido encontrados são de 36 a 23 milhões de anos atrás, encontrados na região da África onde hoje está o Egito.

Segundo taxonomistas e paleontólogos, o traço mais característico dentre todos os que definem a ordem dos primatas é a presença de "bula petrosa" na parte inferior do osso do crânio, uma estrutura óssea que recobre e protege elementos do ouvido interno, uma característica presente em absolutamente todos os primatas, tanto em todos que hoje existem quanto nos fósseis encontrados daqueles já extintos.

Seguindo com a narrativa, dentro desta história evolutiva é importante ilustrar as escalas temporais referentes aos fósseis de antepassados dos primatas já encontrados. Há 25 milhões de anos atrás viveu o ancestral comum de todos os macacos de pequeno e dos com grande porte (neste caso sendo de grande porte: chimpanzés, orangotangos, gorilas e hominínios). É isto o que indicam as evidências moleculares. Há 14 milhões de anos houve a divergência dentro do grupo de hominóides, que engloba todo o grupo de 'Grandes Macacos', tendo havido a separação entre os grandes macacos da África (chimpanzés, gorilas e hominínios) e os grandes macacos da Ásia (orangotangos). Entre 8 e 5 milhões de anos atrás, viveu na Ásia o maior primata que já existiu, o Gigantopithecus, que chegava a ter 3 metros de altura e a ter 300 quilos de peso, mas estes acabaram extintos e não deixaram descendentes. Segundo as evidências moleculares, foi entre 7 e 5 milhões de anos atrás que viveu o último ancestral comum a seres humanos, chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos.

A partir de 7 milhões de anos atrás os nossos ancestrais indiscutivelmente já tinham começado a se locomover com o corpo ereto e as mãos livres, com uma caminhada já bastante semelhante à que viria a ter o Homo sapiens. Mas foi entre 4,2 e 2 milhões de anos que surgiu na África o primeiro homininio com características ósseas de bipedismo - o Australopithecus - com registros fósseis ao sul e ao leste do continente, sendo o fóssil mais antigo conhecido como "Lucy". Estes primeiros bípedes viveram em bosques e em florestas, e gradativamente migraram para a savana. As evidências mais antigas já encontradas da presença destes parentes próximos da humanidade datam de 3,6 milhões de anos atrás, referentes a pegadas fossilizadas em cinzas vulcânicas de dois adultos e uma criança encontradas na Tanzânia, na África.

Há uma longa série de evidências de que a origem da raça humana, isto é, do Homo sapiens, remonta à região da África Central, na região onde hoje estão localizados Quênia, Tanzânia e Etiópia, mas antes de falar de tais evidências, precisamos entender melhor as evidências específicas sobre a nossa espécie, para a partir disto entender que a evolução humana não foi linear e progressiva em direção aos humanos modernos, mas uma sequência de migrações, miscigenações e sobreposições que vieram a formar o que hoje é a espécie humana.

Os Australopithecus têm características na tíbia que não deixam dúvidas de que eram bípedes. Seus membros superiores eram longos, com pernas e mãos próprias para se agarrar em galhos, estando fortemente adaptados à vida nas árvores. Suas mandíbulas eram em formato de "U" e não de parábola (como a do gênero Homo), mas seus dentes molares eram maiores e todos os seus dentes tinham esmalte mais grosso, características dos hominínios. Outro ancestral mais antigo que tinha algumas características bípedes era o Ardipithecus, porém, suas características se combinavam a outras favoráveis à vida arborícola, em cima das árvores.

Entre 4 e 2 milhões de anos atrás, diversas espécies diferentes de hominínios conviveram temporalmente e espacialmente no sudeste da África, tendo os Australopithecus convivido com os primeiros integrantes do gênero Homo antes de terem sido extintos, por volta de 1 milhão de anos atrás. Foram tempos de intensa diferenciação entre estes grupos de antepassados primatas.

Já dentro das características destes antepassados distantes, começam a surgir os primeiros sinais de engenhosidade que dão a diferenciação da nossa espécie frente a todas as demais. As ferramentas de pedra lascadas mais antigas já encontradas datam de 2,6 milhões de anos, achadas nas regiões onde hoje estão Etiópia, Quênia e Tanzânia, tendo sido encontradas junto a fósseis de ossos de animais com marca de corte e percussão feitos por estas ferramentas. Esta tecnologia do lascar das pedras permaneceria exatamente a mesma pelas centenas de milhares de anos que se seguiram, e sinalizam a principal marca que nos diferencia como humanos dentro do mundo animal, surgindo através delas a assinatura dentro dos ramos divisórios da árvore biológica do mundo natural que nos diferenciaram.

Dentro da ramificação evolutiva dos primatas, os Hominini (hominínios) pertencem à subfamília Homininae (hominíneos), que inclui também os ancestrais de chimpanzés, bonobos e gorilas. A família é a Hominidae (hominídeos), que inclui também os ancestrais do orangotango. Como características dos Hominini estão a locomoção bípede e o aparato mastigatório com ausência de caninos grandes e afiados.

Uma diferenciação importante nos fósseis encontrados é que os bípedes têm anatomia da pélvis diferente, pois o seu centro de gravidade não é o mesmo dos quadrúpedes. Nos bípedes, a pélvis é em formato de bacia, com o osso ilíaco mais curto e mais largo, com o colo da cabeça do fêmur sendo mais longo. No crânio, o "forame magno" - abertura onde há a conexão com a coluna vertebral - é mais centralizado do que nos quadrúpedes.

Havia uma ampla diversidade dentro do grupo de nossos antepassados. A diversidade de fósseis de hominínios prova que a evolução da linhagem não foi linear e progressiva em direção ao homem moderno, tendo havido muitas e complexas variantes que se cruzaram, a ampla maioria das quais acabaram extintas já nesta época.

Chegamos então aos tempos dos primórdios de nossos ancestrais diretos. A biologia classifica a espécie animal humana como sendo do gênero chamado "Homo" e da espécie chamada "Sapiens". O gênero Homo teria surgido há 2,5 milhões de anos como uma evolução deste seu gênero ancestral, já citado, chamado Australopithecus.

Em média, o volume encefálico - tamanho do cérebro - dos Australopithecus tinha mais ou menos 440 cm³, do Homo habilis tinha entre 500 e 650 cm³, do Homo erectus tinha entre 800 e 1.000 cm³ e do Homo heildelbergensis tinha entre 1.100 e 1.325 cm³. Já o Homo sapiens tem mais ou menos 1.350 cm³, e o Homo neanderthalensis tinha mais ou menos 1.520 cm³, maior inclusive do que o do sapiens. No entanto, o Quociente de Encefalização (QE) - proporção entre a massa encefálica e a massa corporal - que é uma melhor estimativa do nível de inteligência, é em média de 5,3 nos humanos modernos, de 4,0 nos neandertais, de 3,5 no Homo heidelbergensis, de 3,3 no Homo erectus, entre 2,2 e 2,5 nos chimpanzés, e de 2,0 no Australopithecus afarensis.

Os fósseis mais antigos do gênero Homo já encontrados têm 2,4 milhões de anos. Esta espécie foi batizada como Homo habilis, cujos primeiros fósseis foram encontrados no sudoeste da África, onde hoje estão Etiópia, Tanzânia, Quênia, Zâmbia e África do Sul. A partir dos fósseis datados de aproximadamente 1,8 milhão de anos já se pode observar que o Homo habilis tinha cérebro maior que do Australopithecus, com dentes molares menores, e uma face menor e menos projetada para frente. E tinham como marca a intensa utilização de ferramentas de pedra lascada.

É aproximadamente nesta mesma época, a 1,8 milhão de anos atrás, que os fósseis mais antigos do gênero Homo já encontrados fora da África foram achados na Geórgia, próximos à área de divisão entre Oriente Médio, Europa e o resto da Ásia. Os fósseis na Geórgia tinham 1,77 milhão de anos. Também foram encontrados fósseis com 1,6 milhão de anos em Java, na Indonésia. Ancestrais de nossa família biológica estavam começando a migrar e se espalhar pelo planeta.

Também datam de mais ou menos 1,8 milhão de anos os fósseis mais antigos do Homo erectus já encontrados, localizados na região onde hoje é o Quênia; uma espécie que tinha um cérebro maior e dentes menores. Também foram encontrados fósseis desta espécie onde hoje é a Espanha, datados de 1,2 milhão de anos.

Em algum momento entre 1,6 e 1,4 milhão de anos atrás, as ferramentas passaram a ser retocadas dos dois lados, e não mais só de um lado, como vinham sendo feitas por mais de 1 milhão de anos (além de terem passado a ter um acabamento mais elaborado). Esta inovação é encontrada junto a fósseis do Homo erectus achados no norte da África, no Oriente Médio e na Europa, mostrando que a disseminação desta inovação foi relativamente bastante rápida (levou alguns milhares de anos, frente a mais de um milhão no qual a forma de lascar permaneceu a mesma). Estas inovações, no entanto, supostamente nunca migraram para o centro e o leste da África, onde nunca foram encontrados registros fósseis destas ferramentas.

As evidências em fósseis dos ossos de presas mostram que os hominínios eram mais carniceiros do que caçadores, já que a marca de cortes com pedras lascadas feitos nos fósseis dos animais comidos eram feitos em cima das marcas de dentes de animais predadores de grande porte, além de ser registrada uma maior especialização na remoção do tutano dos ossos, removidos com tecnologias própria de uso destas pedras lascadas, afinal era o que sobrava na carcaça depois que todos os animais maiores já tinham se alimentado dela.

As evidências de uso esporádico do fogo por hominínios aparecem nos sítios arqueológicos datados de 800 mil anos. Há 300 mil anos, no gênero Homo tanto sapiens quanto neandertais quanto erectus dominavam o fogo, que foi a primeira grande inovação humana. Com alimentos cozidos, o tempo de digestão se reduziu de 5 horas para apenas 1 hora, liberando energia para ser utilizada pelo corpo, e incentivando com esta energia extra o desenvolvimento de outras habilidades.

O cozimento do alimento proporcionou uma economia energética para a digestão e, portanto, um aumento na energia disponível para ser utilizada pelo resto do corpo. O fogo quebra moléculas grandes e destrói moléculas tóxicas, além de amolecer os alimentos, que são mais facilmente digeridos. Na vida social, a domesticação do uso do fogo consolidou a presença humana em campos abertos, afastando predadores e dando visão noturna, ampliando a área de exploração dos grupos humanos.

A evolução comportamental mais próxima a que viria a ter a nossa espécie aparece no Homo heildelbergensis, cujos fósseis foram encontrados na África com 600 mil anos e na Europa com 200 mil anos, sendo os primeiros primatas ancestrais cujos registros fósseis indicam o uso combinado de armas de ponta de pedra e de lanças de madeira, trocando o perfil de carniceiros pelo de caçadores. Aparentemente, há 500 mil anos atrás a população de Homo heildelbergensis que vivia na Europa e na Ásia se diversificou em duas espécies, os neandertais na Europa e os denisovanos na Ásia. Evidências moleculares indicam que foi por esta época que viveu o último ancestral comum entre o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens.

As evidências fósseis mostram que entre 500 e 200 mil anos atrás o cérebro dos ancestrais humanos quase dobrou de tamanho, muito provavelmente pelo desenvolvimento de habilidades de caça e o consequente aumento do consumo de carne. Em decorrência disto, houve o desenvolvimento da habilidade de fala e aumento da capacidade motora de uso das mãos. E de tudo isto deriva uma série de características que influem e marcam os instintos animais mais primitivos dos seres humanos.

A postura bípede foi um facilitador para se locomover na savana africana sem estar exposto a tanto calor pela proximidade do corpo ao chão, além de ter facilitado o alcance visual dos nossos ancestrais. O poder de exploração da savana foi um diferencial na diversificação de sua dieta. O bipedismo com caminhar ereto exigia quadris mais estreitos, que levaram a um grande risco de morte no parto, só sobrevivendo as fêmeas que pariam filhotes mais frágeis.

O nascimento humano é precoce se comparado ao de todos os outros animais da Terra: o bebê humano nasce mais frágil e leva mais tempo para amadurecer os seus sistemas vitais. Mães solitárias não conseguiam comida suficiente, só sobrevivendo os filhotes que eram cuidados por grupos que davam ajuda constante às mães e ao amadurecimento de seus filhotes. Estes mecanismos de seleção natural levaram a evolução humana a favorecer àqueles com maior capacidade de formação de laços sociais.

Mas além das diferenças comportamentais, havia também a diferenciação física. No Homo sapiens, o cérebro consome 25% da energia do corpo quando está em repouso, enquanto nos outros primatas consome em média 8%. Isto exige que o corpo direcione mais energia para os neurônios. Assim, um chimpanzé não pode vencer uma discussão com um ser humano, mas num embate físico, um chimpanzé dilacera um ser humano. O Homo sapiens só sobreviveu graças à sua capacidade de inovação, criando ferramentas para compensar a esta sua fragilidade física, para assim se impor sobre seus predadores fisicamente mais poderosos. A sua diferenciação se deu pela capacidade de uso diferenciado de seu intelecto.

Entretanto, o que realmente fez os Homo sapiens se diferenciaram na história foi a sua capacidade de cooperação. Em uma briga de um para um, um neandertal derrotava um sapiens, mas no conflito entre grupos, os neandertais não tiveram nenhuma chance. É da mesma forma como acontece para a principal característica humana, aquela que nos levou a nos diferenciar de todas as outras espécies, a nossa capacidade de produzir inovações: não importa quem têm ideias novas, importa quem consegue construir as relações sociais necessárias para tirar a iniciativa do campo das ideias e materializá-la no campo das ações.

Mas vamos retomar o passo a passo da narrativa dos fatos que indicam a origem da nossa espécie. As análises moleculares confirmaram as evidências fósseis: as linhagens mais antigas de cromossomo Y se originaram na África, com a árvore de linhagem enraizada no continente e remontando ao surgimento do Homo sapiens há cerca de 200 mil anos, tendo surgido como uma outra diversificação evolutiva dentro de uma parte daquele grupo chamado Homo heidelbergensis que não havia migrado para fora do continente. E não tardou para que este ser dos primórdios de nossa espécie logo também seguisse um caminho de migração a partir da África para outros continentes. Supõe-se assim que o Homo heidelbergensis se separou em três grupos, um que continuou na África, e outros dois que migraram, um para a Europa e outro para a Ásia. Dentro do grupo que se manteve no continente africano houve a evolução que veio a formar os sapiens primordiais.

Os fósseis mais antigos de Homo sapiens por região foram encontrados na Etiópia com 200 a 160 mil anos, em Israel com 130 a 90 mil anos, na China com 68 mil anos, na Indonésia com 45 a 39 mil anos, e na Romênia com 35 mil anos.

Há duas características definidoras da variação genética nos seres humanos: os genomas das populações atuais subestruturadas da África detêm um número excepcional de variantes únicas, e há uma redução dramática na diversidade genética nas populações que vivem fora de África. Soma-se a isto o fato de que, complementarmente, só há populações com características de genoma 100% Homo sapiens no território africano e de que surgem, quando são analisados fósseis de ancestrais humanos fora da África, evidências de miscigenação genética com outras populações de hominídeos do gênero Homo.

Mas a variação do DNA humano não é a única evidência da origem na África. Tanto o Plasmodium falciparum (um parasita da malária) como o Helicobacter pylori (uma bactéria que ocupa o trato digestivo humano) seguem um padrão muito semelhante ao DNA humano, com um padrão geográfico de variação genética de ambas apresentando o mesmo efeito, com ambas indicando uma clara variação genética maior no continente africano e uma redução de suas respectivas diversidades genéticas a medida que se distanciam da África Oriental.

E há ainda mais evidências. O estudo da variação entre as línguas faladas no planeta também corrobora em favor da mesma conclusão: ao se analisar a diversidade de fonemas em 504 línguas mundiais que são parte de todas as 15 famílias linguísticas conhecidas, identificou-se uma perda equivalente de diversidade fonêmica proporcional à medida que cresce a distância do idioma em relação à África, onde a maior diversidade de fonemas falados se encontra na região centro-sul do continente.

A partir de todas estas evidências, a estimativa é que há aproximadamente 70 mil anos atrás o Homo sapiens saiu da África e chegou para se estabelecer definitivamente no Oriente Médio, tendo há 60 mil anos chegado ao resto da Ásia, há 45 mil anos à Europa e à Austrália, há 16 mil anos tendo cruzado o Estreito de Bering, há 14 mil anos se estabelecido no centro da América do Norte, e há mais de 13 mil anos chegado à América do Sul. É uma história que ainda está em construção... há evidências na Argentina de fósseis animais com marcas de cortes nos ossos que só poderiam ter sido feitas por ferramentas criadas pelo gênero Homo, fósseis estes datados de 21 mil anos. Da mesma forma há indícios de carvão a nordeste do Brasil datados de 30 mil anos que alimentam discussões se seriam restos de fogueira ou de um incêndio natural. Além de que cabe a lembrança de que outros membros do nosso gênero Homo anteriores aos sapiens também utilizaram ferramentas e dominaram o fogo. Todos os indícios apontam para uma sequência de diversas complexas ondas migratórias espalhando-se pelo planeta durante milênios que se encontravam e se sobrepunham. É do Brasil também que emerge uma peça adicional do mistério de dispersão do nosso gênero pelos continentes: o fóssil humano mais antigo já encontrado nas Américas (batizado como "Luzia") - datado entre 12.500 e 13.000 anos e achado na gruta da Lapa Vermelha, em Lagoa Santa, nas proximidades da cidade de Belo Horizonte - tinha morfologia craniana similar a africanos e não a asiáticos, com traços de alguma similaridade às populações aborígenes australianas. Logo o entendimento destes movimentos migratórios está ainda em construção, com datas aproximadas que possivelmente tenderão a correções para períodos um pouco mais antigos.

Para terminar de entender os passos desta movimentação geográfica é fundamental saber que durou de 75 mil até 12 mil anos atrás a "Última Era Glacial". O nível das águas dos oceanos era mais baixo, e em 20 mil a.C. a geografia do planeta estava dividida em duas massas de terra, uma formada pelo que é Ásia-Europa-África-Américas (com a união de Ásia e América via Estreito de Bering) e outra formada por Austrália-Nova Guiné. Entre 12 mil e 9 mil anos a.C., ocorreu uma aceleração de degelo por fatores climáticos que causou um aumento do nível dos oceanos e levou à formação de rios mais volumosos nos continentes, que viriam a ser um fator determinante para a expansão da quantidade de seres humanos vivendo no planeta. Estima-se que por volta de 10 mil a.C. esta elevação dos oceanos criou enfim uma separação geográfica entre a Ásia e a América, com a formação do Estreito de Bering.

Os indícios arqueológicos também sugerem que teria havido um primeiro movimento migratório há 120 mil anos de Homo sapiens deixando a África, tendo por 30 mil anos ocupado a região do Oriente Médio onde hoje está Israel. Aparentemente esta população acabou expulsa em grande parte pelos neandertais que habitavam o local. Uma segunda onda deixou a África há 50 mil anos, e esta segunda onda é aquela cujas evidências moleculares indicam que se espalhou pelo planeta inteiro e dominou todas as demais do gênero Homo.

A genética molecular indica que houve múltiplas migrações saindo da África. A Europa teria recebido no mínimo três grandes ondas migratórias chegadas do Oriente Médio, uma com pouco menos de 40 mil anos, outra com 26 a 15 mil anos, e uma terceira há 9 mil anos. A Ásia também teve múltiplas migrações chegando a partir de 40 mil anos atrás, havendo, porém, alguns registros fósseis anteriores a este período.

Na Europa e na Ásia, o Homo sapiens conviveu com o Homo neanderthalensis, que como já dito era um primo muito próximo à sua espécie em seu ramo na árvore biológica. Diferenciavam-se porque o crânio dos neandertais era longo e baixo, com a "arcada supraciliar" ("osso das sobrancelhas") saliente e projetada para frente, com testas baixas e inclinadas para trás, e com uma cavidade nasal mais ampla e um queixo mais recuado. O corpo dos neandertais tinha uma caixa torácica mais expandida e a pelve maior. Eram de estatura um pouco mais baixa que a do Homo sapiens, tendo antebraços mais curtos e pernas (osso da tíbia) também mais curtos. Essa maior amplitude corporal - mais baixo, mais atarracado e mais musculoso - fazia que fossem mais resistentes ao frio. Os indícios apontam que eles foram os primeiros do gênero Homo a dominar a sobrevivência em regiões de temperatura glacial, o que também indica um forte domínio na capacidade de elaboração de vestimentas de couro, ainda que não dominassem a técnica de costura.

Entretanto, os neandertais tinham uma capacidade de inovação bem menor do que a do Homo sapiens, permanecendo dezenas de milhares de anos utilizando a mesma dúzia de ferramentas. Já o Homo sapiens apresentou em períodos menores de tempo um amplo processo de mudanças cumulativas no uso de ferramentas, com um enorme número de variações.

Em torno de 40 a 30 mil anos atrás, o Homo neanderthalensis estava extinto na Europa, com os últimos sítios arqueológicos com fósseis tendo sido encontrados onde hoje é a Espanha. Entre as causas desta extinção estão evidências arqueológicas de fósseis neandertais com perfuração de lanças que só o Homo sapiens produzia. É muito provável também que a competição por alimentos tenha tido papel preponderante, já que os Homo sapiens tinham uma dieta muita mais diversificada que a dos neandertais.

Estas espécies tiveram relações sexuais e procriaram. As evidências moleculares indicam que os cruzamentos que aconteceram foram sempre envolvendo um macho neandertal e uma fêmea sapiens, não havendo evidências de cruzamento entre machos sapiens e fêmeas neandertais. As evidências também provam que os filhotes machos derivados deste cruzamento tinham uma fertilidade reduzida.

Pela Ásia alguns remanescentes do gênero Homo sobreviveram ainda por alguns milênios. Um deles foi o Homo florensis, cujos fósseis com 17 mil anos foram encontrados na Ilha das Flores, na Indonésia. Eles eram hominínios de baixa capacidade craniana (mais ou menos 400 cm³) e baixa estatura (mais ou menos pouco mais de 1 metro), com pernas proporcionalmente mais curtas e pés maiores do que do Homo sapiens.

As capacidades criativas, de inovação e de produção de novas tecnologias foram o grande diferencial de propagação da nossa espécie. Em sítios arqueológicos de habitações de Homo sapiens no interior continental são encontradas conchas em áreas que estavam a quilômetros de distância do litoral e do mar, indicando que havia escambo (trocas comerciais) entre diferentes populações de Homo sapiens. Sítios com escavações de antigas habitações neandertais jamais sinalizaram a presença de conchas ou produtos indicativos de um escambo intensivo.

Em sítios arqueológicos na Nova Guiné foi encontrada a presença de obsidianas, vidro vulcânico usado para fabricar ferramentas mais fortes e afiadas, cujos depósitos naturais se encontravam em ilhas da Oceania a 400 quilômetros de distância, indicando não só o escambo comercial, como a existência de um fluxo marítimo através de canoas rudimentares para realizar este escambo.

Em seu processo de desenvolvimento, os ancestrais humanos passaram por tempos de intensas mudanças e muitas inovações. Durante 2,5 milhões de anos, os registros arqueológicos só encontram 3 culturas líticas de pedra lascada. Em 50 mil anos, só no Egito foram encontradas 6 culturas líticas diferentes, com as ferramentas deixando de ser de lascas e passando a ser de lâminas, e combinadas ao uso do fogo para endurecimento de argila, usadas combinadas a ossos e madeiras. Estas inovações levaram a uma ampla multiplicação das indústrias de produção. O acúmulo de hábitos mais complexos e abstratos deve ter sido causado pelo adensamento da população humana, com maior difusão e intercâmbio de novas ideias.

As evidências arqueológicas indicam que entre 70 e 30 mil anos atrás houve a invenção por humanos de barcos rústicos, lâmpadas a óleo, agulhas, arco e flechas, além do surgimento das artes, de religiões, do comércio, e da estratificação social. Há sinais no período Paleolítico Superior do acontecimento de uma verdadeira "Revolução Cognitiva". Junto a estas inovações, surge também uma explosão cultural, constatada por registros de manifestações artísticas e simbolismos encontrados nos lugares onde eles habitavam, com o início de representações abstratas.

O principal fator de diferenciação da raça humana frente aos demais animais do planeta se deu justamente pela grande capacidade de criação de elaborações simbólicas, coisa que nenhum outro animal no Planeta Terra é capaz de reproduzir. Nesta época, surgiu uma explosão criativa, com o surgimento de pensamentos simbólicos que nenhuma outra espécie animal, nem mesmo de hominínios, desenvolveu. Registros arqueológicos constatam ornamentos, adereços, ferramentas mais complexas, manifestações artísticas e rituais de sepultamento. Supõe-se que foram mudanças neuronais as responsáveis por tal mudança cognitiva abrupta.

Em meio a tudo isto, há 45 mil anos atrás o Homo sapiens chegou à Oceania, ocupando ilhas que estavam a 200 quilômetros de distância uma da outra, sendo certo que utilizaram embarcações para fazer estas travessias. E em meio a esta expansão, já foram deixando a sua marca nos novos territórios aonde chegavam: em alguns milhares de anos após a sua chegada à Austrália, de 24 espécies de animais com 50 quilos ou mais, 23 foram extintas. O mesmo aconteceu após a chegada à América do Norte, quando 34 das 47 espécies de grandes mamíferos foi extinta, e na América do Sul, onde 50 de 60 espécies foram extintas. A astúcia para realizar a caça predatória de subsistência em animais muito mais fortes e robustos mostrava-se com um diferencial em seu instinto.

Astúcia aplicada nas mais diferentes frentes: uma das mais importantes decisões da história ancestral humana era a escolha de quais eram as plantas comestíveis e não venenosas. Certamente muitos morreram por envenenamento em meio a este processo de descoberta. Foi superando a todas estas adversidades, que os ancestrais humanos dominaram o planeta!

Nos últimos 12 mil anos, o Homo sapiens foi a única espécie do gênero Homo que existiu, tendo todas as demais terminado extintas, muito provavelmente por não terem conseguido acompanhar a capacidade de inovação e de criação de novas técnicas para competir na disputa por alimentos e subsistência. Mas não foi uma extinção por completo. Evidências em estudos moleculares indicam que seres humanos modernos no Oriente Médio e na Europa têm de 1% a 4% de DNA neandertal e que melanésios e aborígenes têm até 6% de DNA de denisovanos em seus respectivos sangues. E não há qualquer sinal de DNA neandertal nos humanos na África, único lugar onde somente existem seres humanos em cujo sangue há um DNA sendo 100% descendente de Homo sapiens.

Desde então a marca da presença humana nunca mais deixou de ser multiplicada. A humanidade desenvolveu uma complexidade única, jamais vista neste planeta. A nossa humanidade, como civilização, começou a construir a sua história tão só nos últimos 150 séculos (ou seja, nos últimos 15.000 anos). Por volta de 13.000 a.C. há sinais da domesticação do arroz e do milhete na região onde hoje é a China e ao redor de 12.500 a.C. os natufianos passam a explorar espécies selvagens de gramíneas e a ter um estilo de vida mais sedentário; e com sinais de sofisticação cultural, pois eles viviam em acampamentos permanentes na região do Levante, onde hoje estão Israel, Palestina, Síria e Líbano. Estes agrupamentos foram crescendo, e proporcionando mais intercâmbio, e desta forma gerando mais inovações. Por volta de 11.000 a.C. eles domesticam também ao trigo e ao centeio.

Em todo o planeta passaram a surgir indícios de cultivo agrícola, o que aconteceu associado a um estilo sedentário em torno de regiões com recursos naturais abundantes. Entre 12 e 9,6 mil anos atrás aconteceu a "Revolução Neolítica", com a domesticação massiva de plantas e animais, e com o Homo sapiens passando a ser ator e interventor de um processo de "Seleção Artificial".

No período entre 10.800 e 9.600 a.C. aconteceu a fase chamada "dryas recente", quando há um resfriamento global, passando a existir um clima mais seco, e a haver aumento das regiões glaciais do planeta.

Apesar dos primeiros indícios da domesticação de espécies vegetais para cultivo agrícola, a constituição de áreas de sedentarismo ainda era muito incipiente, com as populações humanas ainda tendo um comportamento massivamente de caçadores-coletores nômades. E antes mesmo de formar cidades ou áreas de fixação, os primeiros grandes centros de convívio coletivo parecem se formar em torno de áreas de peregrinação. A evidência mais antiga deste comportamento se dá por volta de 9.500 a.C., época de quando são datadas as ruínas do Templo de Gobekli Tepe, localizado onde hoje está a Turquia. Lá há a prova de que os primórdios de cultos de religião também eram praticados por grupos de caçadores-coletores. Este templo reunia estruturas com pilares de pedra de 7 toneladas e 5 metros de altura, e com gravuras esculpidas. Foram encontradas mais de 10 estruturas monumentais, a maior com quase 30 metros. E não há nenhum sinal da fundição de residências fixas próximas a ele.

Por volta de 8.500 a.C. há a domesticação de trigo, cevada, linho, fava e grão de bico em toda a região do Crescente Fértil (desde o Egito até a Mesopotâmia) a região onde, em 7 mil a.C., parece ter surgido também a cerâmica. Bem longe dali, e de forma claramente independente, por volta de 8 a 7 mil a.C. aparecem indícios no México de que as populações humanas que ali viviam domesticaram primeiro a abóbora (em 8 mil a.C.) e depois o milho (em 7 mil a.C.).

Foi somente em 7.500 a.C. que aparecem indícios - em ÇatalHoyuk, onde hoje está a Turquia - do que seria uma "primeira cidade", onde parecem ter se reunido para viver conjuntamente cerca de 5 mil habitantes, e onde há indícios de ter havido pela primeira vez a domesticação do gado bovino. Em 7.000 a.C. há a domesticação de ovelhas e cabras em Jericó, onde hoje está Israel, e também por volta desta época, do outro lado do planeta, há provas do surgimento da cerâmica na região da Floresta Amazônica, onde por volta de 6.500 a.C. há a domesticação de mandioca, pupunha, amendoim e pimenta, sobretudo na região do rio Madeira, onde surgiu o tronco linguístico tupi. Por volta de 6 mil a.C. há a domesticação da batata, da quinoa e da coca na Cordilheira dos Andes, nas regiões onde hoje estão Peru, Bolívia e Colômbia, onde também foram domesticados animais (a lhama, a alpaca, a vicunha e o guanaco).

Aos poucos, lentamente, durante séculos, a raça humana consolidava a sua diferenciação. Por volta de 4.000 a.C. há sinais de uma maior urbanização em Uruk, abrigando cerca de 30 mil habitantes. Mesma época na qual o Antigo Testamento cita que teria havido a criação do mundo (em 4.004 a.C.), tendo um "Grande Dilúvio" acontecido em 3.500 a.C. e destruído todas as outras espécies tirando aquelas que não foram colocados em casal dentro de uma arca por um cidadão Noé. As crenças humanas começavam a se constituir, sendo as religiões o que propiciaria a dimensão ideológica que sustentou a formação dos Estados, com um poder de agregação que alimentou o processo de complexidade social.

Uma das principais funções da religião foi oferecer coesão social, questão de grande relevância para as sociedades primitivas (tema ao qual voltaremos mais a frente, quando serão citadas nossas crenças). Aparecem então os primeiros sinais de complexidades sociais, com uma divisão de papéis sociais e estruturas hierárquicas.

Tais complexidades começam a se manifestar de forma independente por todas as regiões do planeta onde havia presença humana: em 3.200 a.C. houve a unificação dos Reinos do Egito, em 2.600 a.C. há evidências de irrigação do solo na região onde hoje é o Peru, nos sítios arqueológicos de Caral, Norte Chico e Ventarrón, região que abrigou sociedades complexas como as chavin, wari, tiwanaku, chimú, nazca e moche, todas antecedentes ao Império Inca, e em 2 mil a.C. surge a civilização olmeca no México, a qual antecede às civilizações zapoteca, tolteca, maya, mixteca e mexica (azteca). Nas regiões da China e da Índia grandes aglomerados humanos também se formam. Nossa humanidade aflora de forma definitiva!

Porém, antes de falar, entender e aprofundar as características da nossa humanidade, precisamos, para nos conhecer, entender a nossa natureza animal. Ainda que hoje os seres humanos estejam completamente diferenciados de seus parentes mais próximos no mundo animal, nós jamais deixamos de estar ligados a eles, uma vez que a nossa natureza carrega características dos instintos animais que compartilhamos com todos os demais parentes nossos na árvore biológica da vida.

É importante que aqui já tenha sido construído um entendimento claro: a humanidade não evoluiu dos macacos, ela tem ancestrais em comum com todos eles, mas com cada um em graus diferentes. A similaridade genética entre um chimpanzé e um gorila é menor do que entre um chimpanzé e um ser humano.

Numa comparação entre pequenos grupos de indivíduos, chimpanzés e seres humanos são embaraçosamente parecidos. Os bonobos - também chamados como chimpanzés pigmeus - são a única outra espécie além do ser humano na natureza que usa relações sexuais sem fins reprodutivos para fortalecer laços sociais e reduzir conflitos internos no grupo. Outro exemplo: num experimento, cientistas reproduziram a gravação do chamado de um filhote específico de chimpanzé para um grupo quando este filhote não estava presente. Como resultado, só a mãe deste filhote olhou na direção do chamado, tendo todas as demais fêmeas olhado na direção desta mãe do filhote cujo chamado era reproduzido.

Ao mesmo tempo nós temos similaridades também com primatas mais distantes dentro de nossa árvore evolutiva: foi identificado em macacos-verdes padrões de comunicação alertando um para a presença de águias e outro para a de leões, seus dois principais predadores. Reproduzindo gravações destes chamados, sempre que soava o alerta contra águias, todo o grupo de macacos olhava para os céus, e sempre que soava o alerta contra leões, todo o grupo se movimentava conjuntamente em direção à parte mais alta das árvores. Igualmente foi observado alertas falsos dados para que indivíduos do grupo que recém tinham obtido um alimento abandonassem esta comida, que era roubada pelo indivíduo que disparou o alarme falso.

As diferenças significativas entre nós e nossos parentes mais próximos no mundo animal aparecem quando se ultrapassa o limite de se agrupar a quantidade de mais de 150 indivíduos. A capacidade de cooperar com uma grande quantidade de estranhos é o que deu ao Homo sapiens sua capacidade inventiva diferenciada, a qual o levou a dominar o planeta.

A vida em grupos protege os primatas dos ataques de predadores, e facilita o acesso a recursos quando há escassez. A vida em grupos e o comportamento social aprendido e transmitido são o que fazem com que se tenha formado culturas próprias de cada grupo. Chimpanzés vivem em grupos de 20 a 100 indivíduos, e nunca tiverem a capacidade de se organizar, conviver e compartilhar suas vidas em grupos maiores do que isto.

Em relação a nossos parentes mais próximos no mundo animal, o nosso corpo também nos diferencia. Um dos traços mais diferenciados da anatomia humana é a esclera (a parte branca dos olhos). Em todos os demais primatas a esclera mal pode ser vista, e é ela o que permite a identificação da direção do olhar e facilita a percepção do que uma pessoa está pensando, agindo assim na natureza social de interação dos seres humanos. O branco dos olhos é a marca de uma espécie altamente social e cooperativa.

Outro fator fundamental de diferenciação: chimpanzés nascem com 90% do cérebro formado, e seres humanos com 40% dele formado. O desenvolvimento cerebral mais lento dá maior capacidade de aprendizagem e de comportamentos mais complexos durante a infância. O desenvolvimento corporal dos macacos de grande porte na infância é mais rápido que do Homo sapiens, o que tem implicações para a estratégia de vida. O período de desenvolvimento mais estendido do Homo sapiens exige cuidados mais intenso dos pais, o que possibilita uma maior oportunidade de aprendizagem cultural, com consequências importantes sobre o tempo de maturação e de aprendizagem social coletiva. A capacidade de criar e ensinar a seus filhotes é um grande diferencial humano.

Em comum, o comportamento de todos os primatas parece ser mais adquirido através de aprendizagem do que por inscrições no material genético, havendo uma grande participação comportamental derivada de transmissões culturais. As relações sociais dos primatas foram em essência definidas pela necessidade dos machos de ter acesso às fêmeas, e das fêmeas de ter acesso à comida para elas e para seus filhotes. Já as fêmeas não precisavam se preocupar em competir por acesso aos machos, aos quais escolhem com base num grande número de fatores, como tamanho, cor dos pelos, nível de agressividade, nível de gentileza, e familiaridade.

Carregamos todas estas características em nossa natureza, como marcas de nossos instintos mais ancestrais, e devemos aprender a lidar com elas e a potencializá-las. Somos o produto do que foi criado por nosso universo cósmico e por nossa natureza terrestre. E a isto se junta aos fatores únicos de nossa humanidade, que nos fazem seres únicos.

Por milhares de anos nossos ancestrais sobreviveram como caçadores-coletores, e para isto precisavam de um conhecimento pleno de seu território, conhecendo cada planta, os hábitos de cada animal, qual alimento era mais nutritivo, mais nocivo, e qual podia ser usado como remédio, além de que cada indivíduo precisava saber como fazer as suas próprias ferramentas. O domínio de cada habilidade requeria anos de aprendizagem e prática.

O caçador-coletor médio tinha conhecimentos mais abrangentes, profundos e variados do que um ser humano que viveu milênios depois dele em sociedades mais tecnologicamente avançadas. A coletividade humana conhece no Século XXI muito mais do que os bandos antigos, mas a nível individual, os caçadores-coletores tinham muito mais habilidades. Porém, mais do que por suas capacidades individuais, nossos ancestrais realmente se diferenciaram por suas capacidades coletivas e pela forma como construíam meios de conviver e construir sociedades complexas. Chamaram de civilidade à capacidade elaborada de conviver com seus instintos e otimizar as relações humanas a partir destes instintos mais arcaicos.


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