A Disputada Conquista das Américas
Fonte: Revista FAPESP
Artigos científicos
SKOGLUND, P. et al. Genetic evidence for two founding populations of the Americas. Nature. 21 jul. 2015
RAGHAVAN, M. et al. Genomic evidence for the Pleistocene and recent population history of Native Americans. Science. 21 jul. 2015.
Um tema controverso voltou à cena no final de julho de 2015: a chegada dos seres humanos às Américas. No dia 21, duas equipes independentes publicaram estudos em duas revistas concorrentes, a Science e a Nature, comparando as características genéticas de populações nativas americanas com as de povos de outras regiões do mundo. Os trabalhos analisaram o mais amplo conjunto de informações genéticas disponíveis de povos do Novo Mundo para tentar reconstruir a história da ocupação do último continente, exceto a Antártida, em que o Homo sapiens se estabeleceu. Os artigos chegaram a conclusões aparentemente distintas, mas ambos indicam que alguns grupos indígenas atuais do Brasil apresentam algum grau de parentesco com povos da Oceania.
No estudo da Science, o grupo do biólogo Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, afirma que os primeiros humanos chegaram às Américas em uma única leva migratória. Eles teriam partido do leste da Ásia em algum momento nos últimos 23 mil anos e alcançado o Novo Mundo depois de ter permanecido quase 8 mil anos na Beríngia, uma vasta extensão de terras (hoje submersa) que conectava a Sibéria, na Ásia, ao Alasca, na América do Norte.
Willerslev e seus colaboradores – entre eles a arqueóloga Niede Guidon, da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), no Piauí – chegaram a essa conclusão depois de sequenciar o genoma de 31 indivíduos de 11 populações atuais nativas das Américas, da Sibéria e da Oceania e de comparar esses dados com os do genoma de 23 indivíduos de povos extintos das Américas do Norte e do Sul e com variações genéticas de outras 28 populações.
Os resultados sugerem que, uma vez no Novo Mundo, essa população ancestral teria se separado em duas, por volta de 13 mil anos atrás. Uma delas teria permanecido no norte do continente e originado o povo Atabascano, do Alasca, e os grupos indígenas Chipewyan, Cree e Ojibwa, do Canadá. A outra teria se espalhado pelo sul da América do Norte e pelo restante do continente, gerando a maior parte das demais etnias.
Mesmo com mais dados à disposição, Willerslev não propõe algo totalmente novo. Nos últimos 15 anos, outros grupos, brasileiros inclusive, já haviam sugerido que os primeiros humanos a chegar às Américas poderiam ter vindo do leste da Ásia em um único deslocamento, até mesmo com uma parada na Beríngia. Tanto a proposta apresentada na Science como suas versões anteriores confrontam ideias mais antigas, segundo as quais duas, três ou até mais levas teriam sido necessárias para originar a diversidade genética e de feições de crânio encontrada nas Américas.
Como a maior parte dos trabalhos que falam de uma só entrada no continente americano, o modelo de Willerslev funciona bem para explicar como surgiram os povos nativos das Américas geneticamente mais próximos dos asiáticos atuais, com os quais compartilham algumas características anatômicas, como a face mais plana e o crânio arredondado. Mas falha em outros pontos. A ideia de uma só viagem torna difícil justificar, por exemplo, a semelhança genética encontrada entre os índios Suruí, da Amazônia brasileira, os Atabascanos e os nativos das ilhas Aleutas, no Alasca, e os povos nativos da Oceania, no Pacífico Sul.
Para Willerslev e seus colegas, os dados podem indicar que houve um intercâmbio genético posterior ao povoamento inicial. Uma leva mais modesta de indivíduos aparentados dos aborígines da Austrália e da Melanésia teria se miscigenado com populações asiáticas que, mais tarde, teriam entrado nas Américas, possivelmente a partir das ilhas Aleutas.
Enquanto Willerslev e seus colaboradores falam em uma chegada, talvez complementada por uma segunda, o geneticista David Reich, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e seus colegas dizem ter evidências de que foi necessária a entrada de duas populações distintas em momentos diferentes para explicar a diversidade genética dos nativos americanos. Não estariam os dois grupos fazendo a mesma afirmação? Bem, sim e não.
No artigo da Nature, Reich e seus colaboradores, quatro deles brasileiros, argumentam que só a vinda de duas levas com características distintas ajudaria a entender por que os Suruí e outros grupos indígenas brasileiros guardam uma afinidade genética com povos do Pacífico Sul. Mas essa não é toda a história.
O estudo de 2015 é um refinamento de um trabalho anterior. Em 2012, Reich e os pesquisadores Maria Cátira Bortolini e Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maria Luiza Petzl-Erler, da Universidade Federal do Paraná, e Tábita Hunemeier, da Universidade de São Paulo (USP), além de outros colaboradores, compararam cerca de 365 mil trechos do genoma de 493 indivíduos de 52 populações nativas das Américas com os de 245 integrantes de 17 povos da Sibéria e os de 1.613 pessoas de 52 populações do restante do mundo. Na época, em artigo também publicado na Nature, concluíram que as Américas haviam sido povoadas por três levas migratórias diferentes: uma primeira e mais densa, com indivíduos de características genéticas e traços asiáticos, que teria chegado às Américas, via Beríngia, há pelo menos 15 mil anos e originado a maior parte das populações americanas extintas e atuais; uma segunda, que, ao se miscigenar com a inicial, contribuiu para gerar os esquimós, na Groenlândia, e os habitantes das ilhas Aleutas, no Alasca; e uma terceira, que, ao chegar, misturou-se com os primeiros habitantes do continente e levou ao surgimento dos grupos indígenas canadenses.
Agora, ao analisar mais trechos (cerca de 600 mil) do genoma de mais populações nativas (25) das Américas Central e do Sul e comparar com os dados de 197 populações de outras partes do mundo, eles encontraram algo semelhante ao que Willerslev observou e propuseram mais uma migração – a quarta, que teria alcançado a América do Sul há mais de 6 mil anos – para justificar a diversidade étnica do continente.
Além dos Suruí, que vivem na floresta amazônica em Rondônia, essa migração mais recente teria originado também o povo Karitiana, de Rondônia, e os índios Xavante, do Cerrado do Mato Grosso. Esses três grupos compartilham de 1% a 2% do seu genoma com os povos da Oceania. "Essa proporção parece ser pequena, mas é importante", afirma Tábita. "Temos de imaginar que ela era muito mais elevada na população ancestral que chegou às Américas e depois se diluiu ao longo de centenas de gerações", explica.
História da ocupação humana das Américas fica cada vez mais confusa
Autor: Reinaldo José Lopes
Fonte: Folha de São Paulo (21/07/2015)
Povos indígenas da Amazônia e do cerrado carregam em seu DNA as marcas de um parentesco insuspeito com aborígines da Austrália e nativos de Papua-Nova Guiné. O resultado, que aparece de forma independente em dois estudos, reforça a ideia de que o povoamento original do continente americano foi muito mais complexo do que os arqueólogos costumavam imaginar. A questão é como explicar exatamente essa complexidade. Enquanto uma das pesquisas diz que duas populações diferentes se misturaram logo no início da presença humana nas Américas, outra defende uma única grande onda migratória no começo, com a vinda posterior de grupos aparentados aos povos da Oceania. Os levantamentos estão na "Science" e na "Nature", as duas maiores revistas científicas do mundo, e ambas têm participação de pesquisadores brasileiros. No caso da "Science", a arqueóloga Niede Guidon, da Fundação Museu do Homem Americano (PI), é coautora da pesquisa, enquanto o estudo da "Nature" teve participação de Tábita Hunemeier, da USP, Francisco Salzano e Maria Cátira Bortolini, da UFRGS, e Maria Luiza Petzl-Erler, da UFPR.
A pesquisa traz dados novos para uma polêmica que se arrasta desde o fim dos anos 1980. A questão é saber se a mais antiga brasileira, a célebre Luzia, que morreu há 11,5 mil anos em Lagoa Santa (MG), de fato representa uma população primitiva com traços "negros". É isso o que sugerem diversos estudos assinados pelo bioantropólogo Walter Neves, da USP, e seus colegas. Além de Luzia, dezenas de outros esqueletos de Lagoa Santa com mais de 8.000 anos, bem como restos humanos de outras regiões das Américas, apresentariam um crânio cujo formato lembra o de africanos, aborígines australianos e outras populações de pele e cabelos escuros da orla do Pacífico. Já o crânio da maioria dos indígenas atuais se parece mais com o de populações da atual Sibéria. Para Neves e seus colegas, isso indica que Luzia e seu povo teriam surgido a partir de uma população com traços vagamente africanos, os quais, na verdade, eram uma espécie de modelo básico da morfologia craniana dos primeiros seres humanos modernos, mantido pelos habitantes da Oceania, que ficaram confinados em suas ilhas por dezenas de milhares de anos. Essa população teria chegado primeiro às Américas, atravessando o estreito de Bering. Mais tarde, grupos da Sibéria mais semelhantes aos índios atuais teriam se miscigenado com o grupo de Luzia, dando origem aos indígenas modernos. O estudo da "Nature" comparou centenas de milhares de pequenas variantes genéticas dos indígenas da América do Sul e da América Central com variantes equivalentes de outras populações espalhados pelo mundo todo. O método é complicado, mas pode-se dizer que ele procurou testar se algumas dessas populações do resto do mundo tinha mais variantes em comum com os indígenas das Américas do que as outras.
O resultado é que justamente os povos da Oceania, tanto na Austrália quanto em Papua-Nova Guiné e ilhas pertencentes às Filipinas e a Índia, apresentam sutis semelhanças genéticas com os nativos de regiões brasileiras: os suruís e karitianas (grupos de Rondônia) e os xavantes (de Mato Grosso). Algumas análises também incluem os guaranis de Mato Grosso do Sul na lista. Curiosamente, os povos da Oceania têm características vagamente africanas, como a pele negra e o formato do crânio. É claro que ninguém diria que os xavantes são "negros", porém, o que os autores do estudo propõem, na verdade, é que o grupo que daria origem aos povos da Oceania passou por episódios de miscigenação com tribos de aparência que chamaríamos de "asiática". Essa população já híbrida batizada por eles com o termo guarani "Ypykuéra", ou "ancestrais" é que teria chegado aqui e, por sua vez, misturada a uma nova onda siberiana, gerou os índios modernos. A contribuição "oceânica" original não teria passado de uns 2% do total da herança genética dos indígenas amazônicos de hoje.
Rasmus Nielsen, dinamarquês da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA) que coordenou a pesquisa na "Science", discorda. Ele também encontrou variantes "australianas" no DNA dos suruís, mas diz que esse aporte genético parece ter vindo bem depois da colonização original do continente, talvez por meio de outros migrantes da própria Sibéria. De quebra, seu grupo reanalisou os crânios de Lagoa Santa e afirma não ter visto sinal de traços "aborígines" no povo de Luzia. O interessante é que os geneticistas brasileiros do grupo da "Nature" também sempre viram com ceticismo a ideia da ancestralidade da Oceania nos primeiros habitantes das Américas. Agora, estão revisando essa posição. "Quando eu vi os resultados pela primeira vez, tive primeiro de desconstruir alguns argumentos que me pareciam muito sólidos, para depois repensar e construir novos", disse Tábita Hunemeier. "Acho que o ponto principal é que nós geneticistas não havíamos planteado, por impossibilidade técnica, a possibilidade de os indivíduos de Lagoa Santa serem já misturados com nativos americanos, por causa da morfologia austromelanésia [da Oceania]. Agora sabemos que Luzia poderia muito bem ser uma representante da 'População Y'", explica ela. A esperança de testar essa ideia, afirma Tábita, é obter genomas dos esqueletos de Lagoa Santa para testar a ideia algo tecnicamente muito difícil, mas que talvez não seja totalmente impossível.
Filhos de Ypikuéra
Fonte: Revista FAPESP
Projeto Diversidade genômica dos nativos americanos (nº 15/26875-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (USP); Investimento R$ 1.352.437,20.
Artigo científico: CASTRO-SILVA, M. A. et al. Deep genetic affinity between coastal Pacific and Amazonian natives evidenced by Australasian ancestry. PNAS. 29 mar. 2021.
Indígenas de diversas regiões da América do Sul guardam uma pequena semelhança genética com povos que hoje vivem na Oceania e no sul da Ásia, separados por milhares de quilômetros de distância. Integrantes de grupos como os Suruí, os Karitiana, os Xavante e os Guarani-Kaiowá, no Brasil, e os Chotuna, no Peru, têm uma pequena porção de seu genoma – algo entre 1% e 3% – igual à encontrada no material genético dos aborígenes da Austrália e da Papua-Nova Guiné, na Australásia, e dos Onge, da Ilha de Andamão, na Índia, segundo estudo coordenado pela geneticista Tábita Hunemeier, da Universidade de São Paulo (USP), e publicado em 29 de março de 2021 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
Para os pesquisadores, essa semelhança genética entre grupos étnicos vivendo em regiões geograficamente tão distantes indica que esses povos da América do Sul seriam descendentes de um dos primeiros grupos humanos que teriam entrado nas Américas há mais de 10 mil anos. Conhecida como "população Y", inicial de Ypykuéra (ancestral, em tupi), esse grupo de antepassados distantes de algumas etnias sul-americanas seria composto por indivíduos mestiços, resultado do cruzamento de populações nativas do Sudeste Asiático (descendentes de um ramo-irmão dos ancestrais dos povos da Oceania e sul da Ásia) com grupos que viviam na Beríngia, a extensão de terra que conectava a Sibéria, na Ásia, ao Alasca, na América do Norte, e estava exposta durante o último período mais intenso de glaciação. "O sinal genético da população Y está amplamente distribuído na América do Sul, embora não esteja presente em todos os povos nativos da região e possa variar de um grupo para outro", relata Hunemeier.
Mesmo entre etnias aparentadas vivendo em regiões próximas, o sinal pode variar. A proporção do genoma semelhante à dos povos da Oceania chega a 3% em povos nativos do litoral do Peru e está estimada entre 1% e 2% nos Xavante, que vivem no planalto Central, e os Suruí e os Karitiana, originários da Amazônia. Essa distribuição em mosaico, de acordo com os geneticistas, ocorre tipicamente com trechos do genoma que foram compartilhados há milhares de anos por populações distintas. "Com o tempo, traços genéticos podem ser mantidos ou perdidos ao acaso", explica Hunemeier, responsável por um projeto do Programa Jovem Pesquisador, da FAPESP, que investiga a diversidade genômica dos povos nativos das Américas.
A geneticista da USP e colaboradores das universidades federais do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Paraná (UFPR), no Brasil, e da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, já haviam identificado os sinais (marcadores) genéticos da população Y nos Karitiana e Suruí, que vivem em Rondônia, e nos Xavante, que habitam Mato Grosso, em 2015. Os dados disponíveis à época, no entanto, sugeriam que a população Y teria sido um grupo isolado, que haveria entrado nas Américas há mais de 6 mil anos, e não davam pistas do provável trajeto percorrido para chegar à América do Sul.
No trabalho de 2021, os biólogos Marcos Araújo Castro e Silva e Tiago Ferraz, da equipe de Hunemeier, em parceria com colaboradores da UFRGS e da Universidade Pompeu Fabra, na Espanha, analisaram marcadores genéticos distribuídos por quase todo o genoma de 383 indivíduos integrantes de 58 grupos nativos das Américas (49 da América do Sul e 9 da América do Norte), a maior amostra já avaliada de populações nativas do continente. Em seguida, os pesquisadores compararam esse material com o de 67 povos de todo o mundo, obtido em bancos de dados internacionais.
O aumento do número de populações amostradas indicou agora que a população Y não teria permanecido isolada na Beríngia, mas se miscigenado com os povos que viviam ali. Os dados atuais também sugerem que a herança genética da população Y é mais antiga do que se estimava anteriormente, com idade superior a 10 mil anos, e que ela está mais bem distribuída na América do Sul do que se imaginava. Etnias que habitam tanto a oeste como a leste da cordilheira dos Andes e falam línguas diferentes apresentam, em graus variados, um trecho do material genético semelhante ao dos povos da Oceania. Das cinco etnias que vivem próximo ao litoral do Peru, quatro compartilham algum grau de ancestralidade da população Y – entre elas, os Chotuna, que apresentam o sinal genético mais forte (3% do genoma deles é semelhante ao dos povos do Pacífico Sul). A localização desses grupos levou os pesquisadores a suspeitarem de que a dispersão da população Y pelas Américas tenha se dado pelo litoral. "O mais provável é que, depois de passar pela Beríngia, esses migrantes rumaram para o sul pela costa do Pacífico, possivelmente usando embarcações", sugere Hunemeier.
Análises estatísticas feitas pelo grupo da geneticista sugerem ainda que essa leva migratória, que teria entrado na América do Sul pela costa do Pacífico, compartilhou seus genes com as etnias que já estavam estabelecidas no interior do continente. É possível que a partir do litoral do Peru, onde a altitude dos Andes não intimida tanto, alguns grupos tenham adentrado o continente e se espalhado pela Amazônia.
Como sempre acontece nas migrações, o grupo que partiu para a travessia das montanhas levou apenas uma porção da diversidade genética da população que ficou no litoral. Sendo raros, esses marcadores também podem desaparecer quando os indivíduos morrem ou se misturam com os de outros grupos. Assim, parte dessas características teria se perdido pelo caminho, deixando o sinal cada vez mais fraco nas populações do interior do continente.
"A hipótese da rota da costa do Pacífico faz todo sentido", defende o antropólogo físico Rolando Gonzáles-José, do Centro Nacional Patagônico (Cenpat), na Argentina, que também investiga a chegada dos seres humanos às Américas, mas não participou do trabalho publicado na PNAS. "Os beringianos deviam estar habituados a explorar os recursos da fauna costeira, como focas e aves marinhas, para alimentação". Para o pesquisador, seria natural que essas populações seguissem por uma rota com ecologia costeira semelhante desde o ponto de origem, no Alasca, até a Terra do Fogo, no extremo sul da América do Sul.
A rota de dispersão pela costa do Pacífico também pode explicar por que esses marcadores genéticos ainda não foram localizados em populações nativas do litoral e do interior das Américas Central e do Norte. "Eles podem ter feito paradas pontuais na América do Norte, sem se estabelecer por causa do frio intenso do final da última glaciação, descendo até os trópicos, onde o clima era mais ameno", supõe a geneticista da USP. Para Gonzáles-José, a ausência do marcador Y nessa região das Américas também pode ser decorrente de um problema de amostragem.
Línguas e genes
O sinal genético da população Y, mostra o trabalho atual, não está restrito a grupos culturais específicos. Ele foi encontrado em indivíduos que falam pelo menos cinco línguas indígenas da América do Sul: tupi-arikém, tupi-mondé, guarani, jê e descendentes dos falantes da língua mochica. Esse fato sugere que o tal sinal já existiria em uma população ancestral sul-americana que, mais tarde, originou os povos falantes dessas línguas.
Línguas e genes geralmente caminham juntos porque os mesmos idiomas são usados dentro de grupos étnicos aparentados. "Como a diversificação dos troncos linguísticos da América do Sul aconteceu há 6 mil anos, a população Y deve ter chegado a essa parte do continente bem antes disso", explica Hunemeier. "Os integrantes dessa população podem ter sido os primeiros a colocar os pés nas Américas, há cerca de 15 mil anos", sugere. Nessa época, as geleiras da última glaciação começavam a recuar, tornando a costa do Pacífico o local de clima mais quente e aprazível do continente e uma boa rota de migração.
Um indício de que a chegada da população Y pode ser muito anterior à separação dos troncos linguísticos sul-americanos é que os marcadores genéticos desse grupo foram encontrados anos atrás em um povo que viveu há cerca de 11 mil anos onde hoje é Lagoa Santa, em Minas Gerais. Um estudo publicado em 2018 na revista Science pelo grupo do biólogo Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, identificou em um dos sete indivíduos dos quais foi possível extrair o DNA trechos do genoma semelhantes aos dos povos nativos da Oceania. "Esse, no entanto, não é um dado conclusivo, porque pode resultar de erro de amostra ou de análise", aponta a geneticista da USP. Como o DNA extraído de material arqueológico se degrada com o tempo, é possível ainda que o sinal tenha desaparecido do genoma dos outros representantes desse grupo.
Apesar das novas evidências, ainda restam várias dúvidas sobre a identidade dos integrantes da população Y e se teriam, de fato, existido. "Não sabemos a data das migrações, o que torna mais difícil entender quem eram essas populações", afirma o arqueólogo André Strauss, da USP, que também investiga a ocupação das Américas, mas não participou do estudo da PNAS. "Além disso, em um trabalho publicado na Nature em 2019, o grupo de Willerslev não encontrou os marcadores da população Y no genoma de 34 indivíduos pertencentes a populações da Sibéria que viveram entre 31 mil anos e 600 anos atrás. O fato é que ainda não conhecemos direito essas populações", conclui.
"Falta ainda preencher muitas lacunas sobre a história da ocupação da América", afirma Hunemeier. "Ainda não sabemos, por exemplo, quando e com quem os antecessores dos beringianos interagiram, uma vez estavam relativamente isolados das demais populações da Ásia". A pesquisadora ressalta que os povos nativos das Américas são os menos estudados do mundo e que novas evidências devem ajudar a entender os detalhes da ocupação do continente.
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