quinta-feira, 4 de abril de 2024

Império Vijayanagara, Índia (de 1.336 até 1.646 d.C.)


O Império Vijayanagara - também chamado Reino de Karnata, ou também Reino de Bisnaga, como aparecia mencionado nos antigos relatos dos navegantes portugueses – sediava-se na região do Planalto de Deccan, no sul da Índia. Ele foi estabelecido em 1.336 d.C. pelos irmãos Harihara I e Bukka Raya I, da dinastia Sangama, membros de uma comunidade pastoril de vaqueiros que reivindicavam a linhagem Yadava. Karnata Rajya (Reino Karnata) era um outro nome para o Império Vijayanagara, tendo sido utilizado em algumas inscrições e obras literárias da época, incluindo a obra sânscrita Jambavati Kalyanam, do Rei Krishnadevaraya, e a obra Telugu Vasu Charitamu.

O império ganhou proeminência como culminação das tentativas das potências do sul de afastar as invasões islâmicas ao final do Século XIII. No seu auge, subjugou quase todas as famílias dirigentes do Sul da Índia e empurrou os sultões do Deccan para além da região do doab do rio Tungabhadra-Krishna, além de anexar Odisha (antiga Kalinga), dos tempos modernos do Reino de Gajapati, tornando-se assim uma potência notável. Durou até 1.646 d.C., embora o seu poder tenha diminuído após uma grande derrota militar na Batalha de Talikota em 1.565 d.C. pelos exércitos combinados dos sultanatos Decanos.


O império tem o nome da sua capital, Vijayanagara, cujas ruínas rodeiam hoje Hampi, agora Património Mundial em Karnataka, Índia. O legado do império inclui monumentos espalhados pelo Sul da Índia, o mais conhecido dos quais é o grupo em Hampi. Diferentes tradições de construção de templos no Sul e Centro da Índia foram fundidas no estilo arquitetônico Vijayanagara. Esta síntese inspirou inovações arquitetônicas na construção de templos hindus. Uma administração eficiente e um vigoroso comércio ultramarino trouxeram novas tecnologias à região, tais como sistemas de gestão de água para irrigação. O patrocínio do império permitiu que as belas artes e literatura atingissem novas alturas em Kannada, Telugu, Tamil e Sânscrito, com temas como astronomia, matemática, medicina, ficção, musicologia, historiografia e teatro ganhando popularidade. A música clássica do sul da Índia, a música carnativa, evoluiu a partir de então para a sua forma atual. O Império Vijayanagara criou uma época na história do sul da Índia, que transcendeu o regionalismo ao promover o hinduísmo como fator unificador.



Antecedentes e teorias de origem

Antes da ascensão do Império Vijayanagara, no início do Século XIV, os estados hindus do Deccan – o Império Yadava de Devagiri, a dinastia Kakatiya de Warangal, e o Império Pandyan de Madurai – foram repetidamente invadidos e atacados por muçulmanos do norte. Em 1336, a região deccan superior (Maharashtra e Telangana dos tempos modernos) tinha sido derrotada pelos exércitos do sultão Alauddin Khalji e de Muhammad bin Tughluq, do Sultanato de Deli.

Mais a sul, na região de Deccan, o comandante de Hoysala, Singeya Nayaka III, declarou a independência após as forças muçulmanas do Sultanato de Deli terem derrotado e capturado os territórios do Império Yadava em 1.294. Ele criou o reino Kampili, perto de Gulbarga e do rio Tungabhadra, na região nordeste do atual estado de Karnataka. O reino acabou desmoronando após uma derrota para os exércitos do Sultanato de Deli e, após esta derrota, a população cometeu um “jauhar” (suicídio ritual em massa) em 1327 e em 1328. Em sequência a estes acontecimentos, o Reino Vijayanagara foi fundado em 1336, como sendo o sucessor dos até então prósperos reinos hindus dos Hoysalas, dos Kakatiyas, e dos Yadavas, com o Reino Kampili separatista acrescentando uma nova dimensão à resistência à invasão muçulmana do sul da Índia.

Duas teorias foram propostas relativamente às origens linguísticas do império de Vijayanagara. Uma é que Harihara I e Bukka I, os fundadores do império, foram Kannadigas e comandantes do exército do Império Hoysala, estacionados na região de Tungabhadra para afastar as invasões muçulmanas do norte da Índia. Outra teoria é que Harihara e Bukkaraya foram do povo Telugu, primeiro associado ao Reino Kakatiya, que assumiu o controle das partes setentrionais do Império Hoysala durante o seu declínio. Acreditava-se que tinham sido capturados pelo exército de Ulugh Khan em Warangal. Os historiadores concordam que os fundadores foram apoiados e inspirados por Vidyaranya, um santo no mosteiro Sringeri, para combater a invasão muçulmana do sul da Índia.



Os primeiros anos

Nas primeiras duas décadas após a fundação do império, Harihara I ganhou o controle da maior parte da área a sul do rio Tungabhadra, ganhando o título de "mestre dos mares oriental e ocidental" (Purvapaschima Samudradhishavara). Em 1374, Bukka Raya I, sucessor de Harihara I, derrotou o domínio principal de Arcot, os Reddys de Kondavidu, e o sultão de Madurai, ganhando controle sobre Goa a oeste e sobre o doab do rio Tungabhadra-Krishna a norte. A capital original do império encontrava-se no principado de Anegondi, nas margens norte do rio Tungabhadra, no Karnataka de hoje. Foi transferida para Vijayanagara durante o reinado de Bukka Raya I, porque ali era mais fácil defender-se contra os exércitos muçulmanos, que atacavam persistentemente a partir das terras do norte.

Com o Reino Vijayanagara agora imperial em estatura, Harihara II, o segundo filho de Bukka Raya I, consolidou ainda mais o reino para além do rio Krishna, e foi assim que o sul da Índia acabou controlado pelo Império Vijayanagara. O governante seguinte, Deva Raya I, teve sucesso contra os Gajapatis, de Odisha, e empreendeu obras de fortificação e irrigação. Firuz Bahmani, do Sultanato Bahmani, celebrou um tratado com Deva Raya I em 1407, que exigia que este último pagasse a Bahmani um tributo anual de "100.000 hunos, cinco maldições de pérolas e cinquenta elefantes". Como consequência, o sultanato invadiu Vijayanagara em 1417, quando este último falhou no pagamento do tributo. Tais guerras pelo pagamento do tributo por Vijayanagara repetiram-se no século XV.


Deva Raya II (elogiado na literatura contemporânea como Gajabetekara) sucedeu ao trono em 1424. Ele foi possivelmente o mais bem sucedido dos governantes da Dinastia Sangama. Ele rechaçou os senhores feudais rebeldes e os Zamorin de Calicut e Quilon ao sul. Invadiu o Sri Lanka e tornou-se o soberano dos reis da Birmânia em Pegu e Tanasserim. Em 1436 os chefes rebeldes de Kondavidu e os governantes de Velama foram dominados com sucesso e tiveram de aceitar a soberania de Vijayanagara. Após alguns anos de tranquilidade, eclodiram guerras com o Sultanato de Bahamani em 1443, com alguns sucessos e algumas reviravoltas. O visitante persa Firishta atribui aos preparativos de guerra de Deva Raya II, que incluíam o aumento dos seus exércitos com arqueiros e cavalaria muçulmanos, como sendo a causa do conflito. O contemporâneo embaixador persa Abdur Razzak atribuiu a guerra ao sultão Bahamani, que teria buscado capitalizar sobre uma confusão causada por uma revolta interna dentro do Império Vijayanagara, incluindo uma tentativa de assassinato a Raya tentada pelo seu irmão.

Deva Raya II foi sucedido pelo seu filho mais velho Mallikarjuna Raya em 1446. O rei Gajapati perdeu o controle de Vijayanagara sobre o país Tamil, dos reinos Reddi (em Rajahmundry), Kondaveedu, Kanchi e Tiruchirpalli. Estas derrotas reduziram o prestígio do Império Vijayanagara, descrito por uma inscrição detalhando ao rei Gajapati como "um leão bocejante para as ovelhas do rei Karnatak". O sucessor de Mallikarjuna - Virupaksha Raya II - levou uma vida de prazer ao utilizar vinho e mulheres, levando à perda de Goa e grande parte de Karnataka para o Sultanato de Bahmani. Foi o governador Saluva Narasimha quem reduziu a perda de territórios ao deter quase todo o Andhra Pradesh costeiro a sul do rio Krishna, Chittoor, os dois Arcots e Kolar. Narashimha derrotou os Gajapatis e conquistou Udayagiri, expulsando os Pandyas de Tanjore, e fazendo a procissão de Machilipatnam e Kondaveedu. Mais tarde, derrotou as forças Bahmani e recuperou a maior parte das perdas anteriores do império.

Após a morte de Virupaksha Raya II, em 1485, Saluva Narasimha liderou um golpe que pôs fim à regra dinástica, ao mesmo temo em que continuava a defender o império dos ataques dos sultanatos criados a partir da contínua desintegração do Sultanato Bahmani ao norte. Saluva Narasimha deixou os seus dois filhos adolescentes sob os cuidados do general Tuluva Narasa Nayaka, que defendeu habilmente o reino dos seus inimigos tradicionais, o rei Gajapati e o sultão Bahamani. Ele também subjugou os chefes rebeldes dos territórios Chera, Chola e Pandya. Apesar das muitas tentativas dos nobres e membros da família real para o derrubar, Narasa Nayaka manteve o controle como rei regente até 1503.

Em 1503, o filho de Narasa Nayaka, Vira Narasimha, teve o príncipe Immadi Narasimha, da dinastia Saluva, assassinado, e assumiu o domínio com um golpe, tornando-se assim o primeiro dos governantes da dinastia Tuluva. Isto não foi bem aceito pelos nobres, que se revoltaram. Vendo crescer os problemas internos, o rei Gajapati e o sultão Bahamani começaram a invadir o império, mesmo quando os governadores de Ummattur, Adoni, e Talakad conspiraram para capturar do império a região do doab do rio Tungabhadra-Krishna. O império ficou sob o domínio de Krishna Deva Raya em 1509, outro filho de Tuluva Narasa Nayaka. Inicialmente Krishnadevaraya enfrentou muitos obstáculos, incluindo nobres insatisfeitos, o chefe rebelde de Ummattur ao sul, um ressurgente reino Gajapati sob o rei Prataparudra, uma ameaça crescente do recém-formado sultanato Adil Shahi, de Bijapur, sob a liderança de Yusuf Adil Khan, e o interesse português em controlar a costa ocidental. Não se deixando enervar por estas pressões, ele fortaleceu e consolidou o império, uma vitória de cada vez. Foi um rei astuto que contratou tanto hindus como muçulmanos para o seu exército. Nas décadas seguintes, o império cobriu o sul da Índia e derrotou com sucesso as invasões dos cinco Sultanatos Decanos estabelecidos ao norte.



Pico do império

O império atingiu o seu auge durante o domínio de Krishna Deva Raya, quando os exércitos de Vijayanagara foram consistentemente vitoriosos. O império ganhou território anteriormente sob os sultanatos no Deccan do norte, como Raichur e Gulbarga do Sultanato das Bahamas, territórios no Deccan oriental das guerras com o sultão Quli Qutb Shahi, de Golkonda, e Kalinga, da região dos Gajapatis de Odisha. Isto somou-se à presença já estabelecida no Deccan meridional. Muitos monumentos importantes foram concluídos ou encomendados durante o tempo do rei Krishnadevaraya.

Krishna Deva Raya foi sucedido pelo seu meio-irmão mais novo Achyuta Deva Raya em 1529. Quando Achyuta Deva Raya morreu em 1542, Sadashiva Raya, o sobrinho adolescente de Achyuta Raya, foi nomeado rei, e Aliya Rama Raya, genro de Krishna Deva Raya, tornou-se seu zelador. Quando Sadashiva Raya tinha idade suficiente para afirmar a sua reivindicação independente sobre o trono, Aliya Rama Raya fez dele um prisioneiro virtual e tornou-se o governante de fato. Contratou generais muçulmanos no seu exército a partir das suas anteriores ligações diplomáticas com os sultanatos e autodenominou-se "Sultão do Mundo". Ele estava empenhado em interferir nos assuntos internos dos vários sultanatos e em pôr os poderes muçulmanos uns contra os outros, ao mesmo tempo que se tornava o governante da potência regional mais poderosa e influente. Isto funcionou durante algum tempo, mas acabou por torná-lo muito impopular entre o seu povo e os governantes muçulmanos. Fez um tratado comercial com os portugueses para impedir o fornecimento de cavalos a Bijapur, depois derrotou o governante Bijapur e infligiu derrotas humilhantes a Golconda e Ahmednagar.



Derrota e declínio

Eventualmente os sultanatos a norte de Vijayanagara uniram-se e atacaram o exército de Aliya Rama Raya em janeiro de 1565, na Batalha de Talikota. Relativamente à derrota de Vijayanagara em batalha, Kamath opina que os exércitos do sultanato, embora numericamente desfavorecidos, estavam mais bem equipados e treinados. A sua artilharia era tripulada por peritos pistoleiros turcos, enquanto o exército de Vijayanagara dependia de mercenários europeus utilizando artilharia ultrapassada. A cavalaria do sultanato montava cavalos persas de movimento rápido, e usava espigões de 15 a 16 pés de comprimento, dando-lhes um maior alcance, e os seus arqueiros usavam arcos cruzados de metal que lhes permitiam alcançar alvos de maior distância. Em comparação, o exército de Vijayanagara dependia de elefantes de guerra de movimento lento, uma cavalaria que cavalgava na sua maioria cavalos mais fracos de raça local, empunhando javelines de menor alcance. E os seus arqueiros usavam arcos tradicionais de bambu, com um alcance mais curto. Apesar destas desvantagens, Kamath, Hermann Kulke e Dietmar Rothermund concordam que o vasto exército Vijayanagara parecia ter a vantagem até que dois generais muçulmanos (identificados como os irmãos Gilani, mercenários segundo Kamath) trocaram de lado e uniram forças com os sultanatos, virando a maré decisivamente a favor dos sultanatos. Os generais capturaram Aliya Rama Raya e decapitaram-no, e o sultão Hussain teve a cabeça cortada recheada de palha para exibição. A decapitação de Aliya Rama Raya criou muita confusão e caos no exército de Vijayanagara. O exército dos sultanatos saqueou Hampi e reduziu-o ao estado ruinoso em que permanece até hoje.

Após a morte de Aliya Rama Raya, Tirumala Deva Raya iniciou a dinastia Aravidu, fundando uma nova capital de Penukonda para substituir os destruídos Hampi, e tentando reconstituir os restos mortais do Império Vijayanagara. Tirumala abdicou em 1572, dividindo os restos mortais do seu reino com os seus três filhos. Os sucessores da dinastia Aravidu governaram a região, mas o império ruiu em 1614, e os restos mortais finais terminaram em 1646, devido a guerras contínuas com o sultanato de Bijapur e outros. Durante este período, mais reinos no sul da Índia tornaram-se independentes e separados de Vijayanagara, incluindo os reinos Mysore, Nayakas de Keladi, Nayakas Madurai, Nayakas de Tanjavur, Nayakas de Chitradurga e Nayakas de Gingee.

Os governantes do Império Vijayanagara mantiveram os métodos administrativos desenvolvidos pelos seus predecessores, os reinos Hoysala, Kakatiya e Pandya. O rei, ministério, território, fortaleza, tesouro, exército e aliado formaram os 7 elementos críticos que influenciaram todos os aspectos da governança. O rei era a autoridade máxima, assistido por um gabinete de ministros (Pradhana) chefiado pelo primeiro-ministro (Mahapradhana). Outros títulos importantes registados foram o secretário principal (Karyakartha ou Rayaswami) e os oficiais imperiais (Adhikari). Todos os ministros e oficiais de alta patente foram obrigados a ter formação militar. Um secretariado perto do palácio do rei empregava escribas e oficiais para manterem registos oficializados, utilizando um selo de cera impresso com o anel do rei. Nos níveis administrativos inferiores, os proprietários feudais ricos (Goudas) supervisionavam os contabilistas (Karanikas ou Karnam) e os guardas (Kavalu). A administração do palácio foi dividida em 72 departamentos (Niyogas), tendo cada um deles várias mulheres assistentes escolhidas pela sua juventude e beleza (algumas importadas ou capturadas em batalhas vitoriosas) que foram treinadas para tratar de assuntos administrativos menores e para servir homens de nobreza como cortesãs ou concubinas.

O império foi dividido em cinco províncias principais (Rajya), cada uma sob um comandante (Dandanayaka ou Dandanatha) e dirigida por um governador, muitas vezes da família real, que utilizava a língua nativa para fins administrativos. Um Rajya foi dividido em regiões (Vishaya Vente ou Kottam) e posteriormente dividido em condados (Sime ou Nadu), eles próprios subdivididos em municípios (Kampana ou Sthala). As famílias hereditárias governavam os seus respectivos territórios e prestavam homenagem ao império, enquanto algumas áreas, tais como Keladi e Madurai, ficavam sob a supervisão direta de um comandante.

No campo de batalha, os comandantes do rei lideraram as tropas. A estratégia de guerra do império raramente envolvia invasões maciças; mais frequentemente empregava métodos de pequena escala, tais como atacar e destruir fortalezas individuais. O império foi dos primeiros na Índia a utilizar artilharia de longo alcance, que era normalmente tripulada por artilheiros estrangeiros. As tropas militares eram de dois tipos: o exército pessoal do rei, diretamente recrutado pelo império, e o exército feudal sob cada disputa. O exército pessoal do rei Krishnadevaraya consistia em 100.000 homens de infantaria, 20.000 cavaleiros, e mais de 900 elefantes. O exército inteiro contava com mais de 1,1 milhão de soldados, tendo sido registados até 2 milhões, juntamente com uma marinha liderada por um Navigadaprabhu (comandante da marinha). O exército recrutado de todas as classes da sociedade, apoiado pela coleção de tributos feudais adicionais dos governantes feudais, e consistia em arqueiros e mosqueteiros que usavam túnicas acolchoadas, homens com espadas e pungentes nas suas cintas, e soldados com escudos tão grandes que não era necessária armadura. Os cavalos e elefantes estavam totalmente blindados, e os elefantes tinham facas presas às presas para causar o máximo dano na batalha.

A capital estava dependente de sistemas de abastecimento de água construídos para canalizar e armazenar água, assegurando um abastecimento consistente ao longo de todo o ano. Os restos destes sistemas hidráulicos deram aos historiadores uma imagem dos métodos predominantes de distribuição de água de superfície em uso naquela época nas regiões semi-áridas do sul da Índia. Registos e notas contemporâneos de viajantes estrangeiros descrevem enormes tanques construídos por operários. As escavações revelaram os restos de um sistema de distribuição de água bem ligado, existente apenas dentro do recinto real e dos grandes complexos do templo (sugerindo que era para uso exclusivo da realeza, e para cerimônias especiais) com canais sofisticados que utilizavam a gravidade e sifões para transportar água através de condutas. Nas zonas agrícolas férteis perto do rio Tungabhadra, foram escavados canais para guiar a água do rio para tanques de irrigação. Estes canais tinham comportas que eram abertas e fechadas para controlar o fluxo de água. Noutras áreas, a administração encorajou a escavação de poços, que foram monitorizados pelas autoridades administrativas. Grandes tanques na capital foram construídos com o patrocínio real, enquanto tanques mais pequenos foram financiados por indivíduos ricos para ganharem mérito social e religioso.

A economia do império dependia em grande parte da agricultura. O sorgo (jowar), o algodão e as leguminosas de pulso cresciam em regiões semi-áridas, enquanto a cana de açúcar, o arroz e o trigo prosperavam em áreas chuvosas. As folhas de betel, areca (para mastigar), e coco eram as principais culturas comerciais, e a produção de algodão em grande escala abastecia os centros de tecelagem da vibrante indústria têxtil do império. Especiarias como o curcuma, a pimenta, o cardamomo e o gengibre cresceram na remota região das colinas de Malnad, e foram transportados para a cidade para comércio. A capital do império era um próspero centro de negócios que incluía um mercado florescente em grandes quantidades de pedras preciosas e ouro. A construção de templos prolíficos proporcionou emprego a milhares de pedreiros, escultores, e outros artesãos qualificados.

De acordo com Abdur Razzak, grande parte do império era fértil e bem cultivado. A maioria dos cultivadores eram agricultores rendeiros e foi-lhes dado o direito de propriedade parcial da terra ao longo do tempo. As políticas fiscais que encorajavam os produtos necessários faziam distinções entre a utilização da terra para determinar as imposições fiscais. Por exemplo, a disponibilidade diária no mercado de pétalas de rosas era importante para os perfumistas, pelo que o cultivo de rosas recebia uma avaliação fiscal mais baixa. A produção de sal nas salinas eram controlados por meios semelhantes. O fabrico de ghee (manteiga clarificada), que era vendido como óleo para consumo humano e como combustível para acender lâmpadas, era rentável. As exportações para a China intensificaram-se e incluíram algodão, especiarias, joias, pedras semi-preciosas, marfim, corno de rinoceronte, ébano, âmbar, coral, e produtos aromáticos, tais como perfumes. Grandes embarcações da China fizeram visitas frequentes e levaram produtos chineses para os 300 portos do império, grandes e pequenos, no Mar Arábico e na Baía de Bengala. Os portos de Mangalore, Honavar, Bhatkal, Barkur, Cochin, Cannanore, Machilipatnam, e Dharmadam foram importantes, pois não só forneceram portos seguros para comerciantes de África, Arábia, Aden, Mar Vermelho, China e Bengala, mas alguns também serviram como centros de construção naval.

Quando os navios mercantes atracavam, a mercadoria erai levada à custódia oficial e os impostos cobrados sobre todos os artigos vendidos. A segurança da mercadoria era garantida pelos funcionários da administração. Comerciantes de muitas nacionalidades (árabes, persas, Guzerates, Khorassanians) estabeleceram-se em Calicut, atraídos pelo próspero negócio comercial. A construção de navios prosperou e os navios descascados entre 1000 e 1200 bahares (carga) foram construídos sem convés, cosendo todo o casco com cordas em vez de os prenderem com pregos. Navios navegaram para os portos do Mar Vermelho de Aden e Meca com mercadorias Vijayanagara vendidas tão longe como Veneza. As principais exportações do império foram pimenta, gengibre, canela, cardamomo, mirobalão, madeira de tamarindo, anafístula, pedras preciosas e semipreciosas, pérolas, almíscar, âmbar-cinzento, ruibarbo, aloé, pano de algodão e porcelana. O fio de algodão foi enviado para a Birmânia e o anil para a Pérsia. Os principais produtos importados da Palestina eram cobre, mercúrio, vermelhão, coral, açafrão, veludos coloridos, água de rosas, facas, camlets coloridos, ouro e prata. Os cavalos persas foram importados para Cannanore antes de uma viagem terrestre de duas semanas à capital. A seda chegou da China e o açúcar de Bengala.

As rotas comerciais da costa oriental estavam ocupadas, com mercadorias a chegarem de Golkonda onde se cultivava arroz, painço, leguminosas e tabaco em grande escala. Foram produzidas colheitas de tintura de índigo e raiz de chanfro para a indústria da tecelagem. Uma região rica em minerais, Machilipatnam, era a porta de entrada para exportações de ferro e aço de alta qualidade. A extração de diamantes era ativa na região de Kollur. A indústria de tecelagem de algodão produzia dois tipos de algodão, calico liso e musselina (castanho, branqueado ou tingido). Panos impressos com padrões de cor criados por técnicas nativas eram exportados para Java e para o Extremo Oriente. Golkonda especializou-se em algodão liso e Pulicat em estampado. As principais importações na costa oriental foram metais não ferrosos, cânfora, porcelana, seda e artigos de luxo.

O festival Mahanavami marcou o início de um ano financeiro a partir do qual o Tesouro do Estado contabilizou e reconciliou todas as dívidas pendentes no prazo de nove dias. Nesta altura, foi criado por decreto real um registo anual atualizado das contribuições provinciais, que incluía rendas e impostos, pagos mensalmente por cada governador.

Os templos foram tributados pela propriedade da terra para cobrir despesas militares. Nos distritos de Telugu, o imposto do templo chamava-se Srotriyas, nos distritos de língua tâmil chamava-se Jodi. Impostos como o Durgavarthana, Dannayivarthana e Kavali Kanike eram cobrados para proteção da riqueza móvel e imóvel contra roubos e invasões. Jeevadhanam foi recolhido para o gado que pastava em terras não privadas. Destinos populares do templo cobravam taxas de visita chamadas Perayam ou Kanike. Os impostos sobre a propriedade residencial eram chamados Illari.



Vida social

O sistema de castas hindus era predominante e influenciou a vida quotidiana no império. Os governantes que ocupavam o topo desta hierarquia assumiram o honorífico Varnasramadharma (iluminado, “ajudantes das quatro castas”). De acordo com Talbot, a casta era determinada sobretudo pela ocupação ou pela comunidade profissional a que pertenciam, embora a linhagem familiar (nomeadamente o Brahmin ou sacerdotal, o Kshatriya ou guerreiro, o Vaishya ou comerciante e o Shudra ou artesão) fossem também fatores considerados. A estrutura também continha sub-castas (Jati) e grupos de castas. De acordo com Vanina, a casta como identidade social não era fixa e era constantemente alterada por razões que incluíam política e comércio, e era normalmente determinada pelo contexto. A identificação de castas e sub-castas era feita com base em afiliações a templos, linhagem, unidades familiares, comitivas reais, clãs guerreiros, grupos ocupacionais, grupos agrícolas e comerciais, redes devocionais, e até mesmo cabals sacerdotais. Também não era impossível para uma casta perder a sua posição e prestígio e descer a escada, enquanto outras subiam a mesma. Estudos epigráficos realizados por Talbot sugerem que os membros de uma família poderiam ter um estatuto social diferente com base na sua ocupação e o movimento ascendente de uma casta ou sub-casta não era raro, acontecendo com base nos avanços alcançados por um indivíduo ou um grupo de indivíduos da comunidade.

A filiação da casta estava intimamente ligada à produção artesanal e os membros de um ofício comum formavam filiações coletivas. Muitas vezes, os membros de artesanato relacionados formavam comunidades de castas inter-castas. Isto ajudou-os a consolidar a sua força e a ganhar representação política e benefícios comerciais. De acordo com Talbot, terminologia como Setti foi utilizada para identificar comunidades através de classes comerciais e artesanais, enquanto Boya identificava pastores de todos os tipos. Os artesãos consistiam em ferreiros, ourives e carpinteiros. Estas comunidades viviam em seções separadas da cidade para evitar disputas, especialmente quando se tratava de privilégios sociais. As conquistas levaram a uma migração em grande escala de pessoas, levando à marginalização dos nativos de um lugar. Os Tottiyans eram pastores que mais tarde ganharam estatuto de governantes marginais (poligares), os Sourastras eram comerciantes que vinham de Gujarat e rivalizavam com os Brahmins por alguns benefícios, os Reddys eram agricultores e os Uppilia eram salineiros.

Para além do seu monopólio sobre os deveres sacerdotais, Brahmins ocuparam altos cargos nos campos político e administrativo. O viajante português Domingo Paes observou uma presença crescente de Brahmins nas forças armadas. A separação da classe sacerdotal da riqueza material e do poder tornou-os árbitros ideais em assuntos judiciais locais, e a nobreza e aristocracia garantiu a sua presença em todas as cidades e aldeias para manter a ordem. Vanina observa que dentro da classe guerreira Kshatriya havia um conglomerado de castas, parentesco e clãs que geralmente provinham de comunidades de proprietários de terras e de pastores. Eles subiram a escada social abandonando as suas ocupações originais e adoptando um código de vida, ética e práticas marciais. No Sul da Índia, foram chamados vagamente de Nayakas.

A prática do Sati é evidenciada nas ruínas de Vijayanagara por várias inscrições conhecidas como Satikal (pedra Sati) ou Sati-virakal (pedra do herói Sati). Existem opiniões controversas entre os historiadores relativamente a esta prática, incluindo compulsão religiosa, afeto conjugal, martírio ou honra contra a subjugação por intrusos estrangeiros.

Os movimentos sócio-religiosos que ganharam popularidade nos séculos anteriores, como o Lingayatismos, proporcionaram um impulso para normas sociais flexíveis que ajudaram a causa das mulheres. Nessa altura, as mulheres do sul da Índia tinham atravessado a maioria das barreiras e estavam ativamente envolvidas em campos até então considerados como o monopólio dos homens, tais como a administração, os negócios, o comércio e as artes plásticas. Tirumalamba Devi, que escreveu Varadambika Parinayam, e Gangadevi, o autor de Madhuravijayam, estavam entre as notáveis mulheres poetas da língua sânscrita. As primeiras poetas Telugu, como Tallapaka Timmakka e Atukuri Molla, tornaram-se populares. Mais a sul, os provinciais Nayakas de Tanjavur patrocinaram várias mulheres poetas. O sistema Devadasi, bem como a prostituição legalizada, existia e os membros desta comunidade foram relegados para algumas ruas em cada cidade. A popularidade dos haréns entre os homens da realeza é bem conhecida dos registos.

Os homens bem-dispostos usavam o Petha ou Kulavi, um turbante alto feito de seda e decorado com ouro. Como na maioria das sociedades indianas, as joias eram utilizadas por homens e mulheres, e os registos descrevem o uso de tornozeleiras, pulseiras, anéis de dedos, colares e anéis de ouvido de vários tipos. Durante as celebrações, homens e mulheres adornavam-se com guirlandas de flores e utilizavam perfumes feitos de água de rosas, almíscar, almiscareiro ou sândalo. Em contraste com os plebeus cujas vidas eram modestas, as vidas da realeza estavam cheias de pompa cerimonial. As rainhas e princesas tinham numerosos tratadores que se vestiam e adornavam com joias finas. Os seus números garantiam que os seus deveres diários eram leves.

Os exercícios físicos eram populares entre os homens e a luta livre era uma importante preocupação masculina para o desporto e entretenimento, e lutadoras são também mencionadas nos registos. Os ginásios foram descobertos dentro dos aposentos reais e os registos mencionam o treino físico regular dos comandantes e seus exércitos durante o tempo de paz. Palácios e mercados reais tinham arenas especiais, onde a realeza e pessoas comuns se divertiam assistindo a desportos como a luta de galos, a luta de carneiro e a luta feminina. As escavações dentro dos limites da cidade de Vijayanagara revelaram a existência de várias atividades de jogo baseadas na comunidade. Gravuras em pedregulhos, plataformas de pedra e pisos de templos indicam que estes eram locais populares de interação social casual. Algumas destas são placas de jogo semelhantes às que são utilizadas atualmente e outras estão ainda por identificar.

O dote estava em prática e pode ser visto tanto nas famílias reais hindus como muçulmanas. Quando uma irmã do sultão Adil Shah, de Bijapur, foi casada com Nizam Shah, de Ahmednagar, a cidade de Sholapur foi dada à noiva pela sua família. Ayyangar observa que quando o rei Gajapati, de Kalinga, deu a sua filha em casamento em honra do vitorioso rei Krishnadevaraya, incluiu várias aldeias como dote. Inscrições dos Séculos XV e XVI registam a prática do dote também entre os plebeus. A prática de colocar um preço na noiva foi uma possível influência do sistema Mahr islâmico. Para se opor a esta influência, no ano 1553, a comunidade brâmane passou um mandato sob decreto real e popularizou o kanyadana dentro da comunidade. De acordo com esta prática, o dinheiro não podia ser pago ou recebido durante o casamento, e aqueles que o faziam eram responsáveis pela punição. Há uma menção de Streedhana (“riqueza da mulher”) numa inscrição e que os aldeões não devem doar terras como dote. Estas inscrições reforçam a teoria de que um sistema de mandatos sociais dentro de grupos comunitários existia e era amplamente praticado mesmo que estas práticas não encontrassem justificação nas leis familiares descritas nos textos religiosos.



Religião

Os reis de Vijayanagara eram tolerantes a todas as religiões e seitas, como mostram os escritos de visitantes estrangeiros. Os reis usavam títulos como Gobrahamana Pratipalanacharya (literalmente, “protetor das vacas e brâmanes”) que testemunhavam a sua intenção de proteger o hinduísmo e, ao mesmo tempo, adoptavam cerimônias, vestimentas e linguagem política islâmica, como refletido no título Hindu-raya-suratrana (iluminado, “Sultão entre os reis hindus”). Os fundadores do império, os irmãos Sangama (Harihara I e Bukka Raya I) vieram de um passado pastoral de vaqueiros (o povo Kuruba) que reivindicavam a linhagem Yadava. Os fundadores do império eram Shaivas devotos (adoradores do deus Shiva) mas fizeram concessões aos templos de Vishnu. O seu santo padroeiro Vidyaranya era da ordem Advaita, em Sringeri. O Varaha (o javali, um Avatar de Vishnu) era o emblema do império. Mais de um quarto da escavação arqueológica encontrou um “Bairro Islâmico” não muito longe do “Bairro Real”. Nobres dos reinos Timúridos, da Ásia Central, também chegaram a Vijayanagara. Os últimos reis Saluva e Tuluva eram Vaishnava pela fé, mas adorados aos pés do senhor Virupaksha (Shiva) em Hampi, bem como do senhor Venkateshwara (Vishnu) em Tirupati. Uma obra sânscrita, Jambavati Kalyanam, do rei Krishnadevaraya, refere-se ao senhor Virupaksha como Karnata Rajya Raksha Mani (“jóia protetora do Império Karnata”). Os reis patronizaram os santos da ordem dvaita (filosofia do dualismo) de Madhvacharya, em Udupi. Foram feitas doações aos templos sob a forma de terra, dinheiro, produtos, joias e construções.

O movimento Bhakti (devoto) esteve ativo durante este tempo, e envolveu Haridasas (santos devotos) bem conhecidos da época. Tal como o movimento Virashaiva do Século XII, este movimento apresentou outra forte corrente de devoção, que perpassou a vida de milhões de pessoas. Os haridasas representavam dois grupos, o Vyasakuta e o Dasakuta, sendo o primeiro exigido para ser proficiente nos Vedas, Upanishads e outros Darshanas, enquanto o Dasakuta apenas transmitia a mensagem de Madhvacharya através da língua Kannada ao povo, sob a forma de canções devocionais (Devaranamas e Kirthanas). A filosofia de Madhvacharya foi difundida por discípulos eminentes como Naraharitirtha, Jayatirtha, Sripadaraya, Vyasatirtha, Vadirajatirtha e outros. Vyasatirtha, o guru (professor) de Vadirajatirtha, Purandaradasa (Pitamaha ou “Pai da música carnativa”) ganhou a devoção do rei Krishnadevaraya. O rei considerou o santo o seu Kuladevata (divindade familiar) e homenageou-o nos seus escritos. Durante este tempo, outro grande compositor de música carnatica primitiva, Annamacharya, compôs centenas de Kirthanas em Telugu, em Tirupati, no atual Andhra Pradesh.

A derrota da Dinastia Jainista do Ganges Ocidental pelos Cholas no início do Século XI, e o número crescente de seguidores do Hinduísmo Vaishnava e do Virashaivismo no Século XII foi espelhado por um menor interesse no Jainismo. Dois locais notáveis do culto jainista no território de Vijayanagara foram Shravanabelagola e Kambadahalli.

O contacto islâmico com o sul da Índia começou já no Século VII, em resultado do comércio entre os reinos do Sul e as terras árabes. Jumma Masjids existiu no império Rashtrakuta no Século X e muitas mesquitas floresceram na costa de Malabar no início do Século XIV. Os colonos muçulmanos se casaram com mulheres locais; os seus filhos eram conhecidos como Mappillas (Moplahs) e estavam ativamente envolvidos no comércio de cavalos e em frotas de transporte marítimo de tripulações. As interações entre o império de Vijayanagara e os Sultanatos das Bahamas a norte aumentaram a presença de muçulmanos no sul. No início do Século XV, Deva Raya construiu uma mesquita para os muçulmanos em Vijayanagara, e colocou um Alcorão diante do seu trono. A introdução do cristianismo começou já no Século VIII, como demonstra a descoberta de placas de cobre inscritas com concessões de terras aos cristãos de Malabar. Os viajantes cristãos escreveram sobre a escassez de cristãos no sul da Índia na Idade Média, promovendo a sua atratividade para os missionários. A chegada dos portugueses no Século XV e as suas ligações através do comércio com o império, a propagação da fé por São Xavier (1545) e mais tarde a presença de povoações holandesas, tudo isto fomentou o crescimento do cristianismo no sul.



Epígrafes, fontes e monetização

As inscrições em pedra eram a forma mais comum de documentos utilizados nas paredes dos templos, limites de propriedades e locais abertos para exposição pública. Outra forma de documentação era em placas de cobre que se destinavam à manutenção de registos. Normalmente, as inscrições verbosas incluíam informações como uma saudação, um panegírico do rei ou governante local, o nome do doador, a natureza da doação (geralmente em dinheiro ou produto), a forma como a doação seria utilizada, obrigações do doador, parte recebida pelo doador, e uma declaração conclusiva que oficializava toda a doação e as suas obrigações. Algumas inscrições registam um exemplo de vitória na guerra ou festival religioso, e uma retribuição ou maldição sobre aqueles que não honram a doação.

A maioria das inscrições do Império de Vijayanagara recuperadas até agora encontram-se em Kannada, Telugu e Tamil, e algumas em sânscrito. Cerca de 7.000 inscrições em pedra, metade das quais estão em Kannada, e cerca de 300 placas de cobre, a maioria em sânscrito, foram recuperadas. Inscrições bilingues tinham perdido o favor até ao Século XIV. A maioria das inscrições recuperadas são do domínio da Dinastia Tuluva (de 1503 a 1565) com a Dinastia Saluva (de 1485 a 1503) tendo inscrito o mínimo no seu breve controle sobre o império. A Dinastia Sangama (de 1336 a 1485), que governou pelo período mais longo, produziu cerca de um terço de todas as epígrafes inscritas durante o período Tuluva. Apesar da popularidade da língua Telugu como meio literário, a maioria das epígrafes na língua foram inscritas no período limitado de 1500 a 1649. O império Vijayanagara foi originalmente fundado em Karnataka, com Andhra Pradesh a servir de província do império. Após a sua derrota para os sultanatos em 1565 e o saque da capital real Vijayanagara, o império diminuído mudou a sua capital para o sul de Andhra Pradesh, criando uma empresa dominada pela língua Telugu.

Para além de epígrafes e moedas, as fontes da história de Vijayanagara (a sua origem, vida social e política e eventual derrota) são os relatos de viajantes estrangeiros e fontes literárias contemporâneas em sânscrito, Kannada, Persa e Telugu. Os visitantes portugueses ao império foram Domingo Paes (1522), Fernão Nunes (1537), Duarte Barbosa (1516) e Barradas (1616), ademais de Athanasius Nikitin (1470) chegado da Rússia. Ludovico di Varthema (1505), Caesar Fredericci (1567) e Filippo Sassetti (1585) eram viajantes de Itália, e Abdur Razzak (1443) um visitante da Pérsia. Os escritores muçulmanos contemporâneos que estiveram sob o patrocínio de reinos rivais (os sultanatos), ou que foram visitantes de Vijayanagara, realizaram obras valiosas, como Ziauddin Barani (Tarikh-i-Firuz Shahi, 1357), Isamy (Fatuhat us salatin), Syed Ali Tabatabai (Burhan-i-Maisar, 1596), Nisammuddin Bakshi, Firishta (Tarik-i-Firishta) e Rafiuddin Shirazi (Tazkirat ul Mulk, 1611). Entre escritos de autores nativos, as importantes obras em sânscrito que lançam luz sobre o império são Vidyaranya Kalajnana, Ramabhyudayam de Dindima, sobre a vida do rei Saluva Narasimha, Achyutabhyudayam de Dindima II e Varadambika Parinayam de Tirumalamba. Entre as obras literárias de Kannada, Kumara Ramana Kathe de Nanjunda Kavi, Mohanatarangini de Kanakadasa, Keladiripavijayam de Linganna e Krishnadevarayana Dinachari são fontes úteis, e entre as obras de Telugu, Srinatha’s Kashikanda, Varahapuranamu de Mallayya e Singayya, Rayavachakamu de Vishvanatha Nayani, Parijathapaharanamu de Nandi Timmanna, Krishnaraja Vijayamu de Durjati, Manucharitamu de Peddanna e Amuktamalyada do rei Krishnadevaraya, são todas importantes fontes de informação.

O visitante persa Abdur Razzak escreveu que o império gozava de um elevado nível de monetização. Isto é especialmente evidente a partir do número de bolsas de dinheiro do templo que foram feitas. As moedas eram cunhadas utilizando ouro, prata, cobre e latão e o seu valor dependia do peso do material. As moedas eram cunhadas pelo Estado, nas províncias e por guildas mercantes. Havia moeda estrangeira em circulação. A denominação mais alta era o ouro Varaha (ou HunHonnu, Gadyana) com 50,65 – 53 grãos. O Partab ou Pratapa era avaliado em meio Varaha, o Fanam, Phanam ou Hana, uma liga de ouro e cobre, era a moeda mais comum avaliada em um terço do Varaha. Um Tar feito de prata pura era um sexto de um Phanam, e um Chital feito de latão era um terço do Tar. Haga, Visa e Kasu eram também moedas de denominações mais baixas.



Literatura

Durante o domínio do Império Vijayanagara, poetas, estudiosos e filósofos escreveram principalmente em Kannada, Telugu e Sânscrito, e também em outras línguas regionais, como o Tamil. Cobriram temas como religião, biografia, Prabandha (ficção), música, gramática, poesia, medicina e matemática. As línguas administrativas e judiciais do Império foram Kannada e Telugu, esta última tendo ganho ainda mais destaque cultural e literário durante o reinado dos últimos reis Vijayanagara, especialmente o Krishnadevaraya.

A maioria das obras em sânscrito foram comentários sobre os Vedas ou sobre os épicos Ramayana e Mahabharata, escritos por figuras bem conhecidas como Sayanacharya (que escreveu um tratado sobre os Vedas chamado Vedartha Prakasha, cuja tradução inglesa por Max Muller apareceu em 1856), e Vidyaranya, que exaltou a superioridade da filosofia Advaita sobre outras filosofias hindus rivais. Outros escritores foram famosos santos Dvaita da ordem Udupi, como Jayatirtha (ganhando o título de Tikacharya pelos seus escritos polêmicos), Vyasatirtha, que escreveu refutações à filosofia Advaita e às conclusões de anteriores lógrafos, e Vadirajatirtha e Sripadaraya, ambos criticando as crenças de Adi Sankara. Para além destes santos, notáveis sânscritos adornaram os tribunais dos reis de Vijayanagara e dos seus chefes feudais. Alguns membros da família real eram escritores de mérito e autores de obras importantes como Jambavati Kalyana do rei Krishnadevaraya, e Madura Vijayam (também conhecida como Veerakamparaya Charita) da princesa Gangadevi, nora do rei Bukka I, que se detém na conquista do sultanato Madurai pelo império Vijayanagara.

Os poetas e estudiosos Kannada do império produziram importantes escritos de apoio ao movimento Vaishnava Bhakti anunciado pelo Haridasas (devotos de Vishnu), Brahminical e Veerashaiva (Lingayatismos) literatura. Os poetas Haridasa celebraram a sua devoção através de canções chamadas Devaranama (poemas líricos) nos medidores nativos de Sangatya (quatrain), Suladi (baseado na batida), Ugabhoga (baseado na melodia) e Mundige (críptico). As suas inspirações foram os ensinamentos de Madhvacharya e Vyasatirtha. Purandaradasa e Kanakadasa são considerados os primeiros entre muitos Dasas (devotos) em virtude da sua imensa contribuição. Kumara Vyasa, a mais notável dos estudiosos de Brahmin, escreveu Gadugina Bharata, uma tradução do épico Mahabharata. Esta obra marca uma transição da literatura de Kannada da velha Kannada para a moderna Kannada. Chamarasa foi um famoso estudioso e poeta Veerashaiva que teve muitos debates com estudiosos de Vaishnava na corte de Devaraya II. A sua Prabhulinga Leele, mais tarde traduzida em Telugu e Tamil, foi um elogio de Saint Allama Prabhu (o santo foi considerado uma encarnação do senhor Ganapathi, enquanto Parvati tomou a forma de uma princesa de Banavasi).

Neste pico da literatura Telugu, a escrita mais famosa no estilo Prabandha era Manucharitamu. O rei Krishnadevaraya foi um estudioso de Telugu e escreveu a Amuktamalyada, uma história do casamento do deus Vishnu com Andal, o santo poeta Tamil Alvar e a filha de Periyalvar no Srirangam. Na sua corte estavam oito estudiosos famosos considerados como os pilares (Ashtadiggajas) da assembleia literária. Os mais famosos de entre eles foram Allasani Peddana, que realizou o honorífico Andhrakavitapitamaha (iluminado, “pai da poesia de Telugu”), e Tenali Ramakrishna, o bobo da corte, autor de várias obras notáveis. Os outros seis poetas foram Nandi Thimmana (Mukku Timmana), Ayyalaraju Ramabhadra, Madayyagari Mallana, Bhattu Murthi (Ramaraja Bhushana), Pingali Surana, e Dhurjati. Srinatha, que escreveu livros como Marutratcharitamu e Salivahana-sapta-sati, sendo patronizado pelo rei Devaraya II e gozando do mesmo estatuto que ministros importantes na corte.

A maior parte da literatura tâmil deste período provinha de regiões de língua tâmil, que eram regidas pelo pandya feudatório, que dava particular atenção ao cultivo de literatura tâmil. Alguns poetas foram também patronizados pelos reis de Vijayanagara. Svarupananda Desikar escreveu uma antologia de 2.824 versos, Sivaprakasap-perundirattu, sobre a filosofia Advaita. O seu aluno o asceta, Tattuvarayar, escreveu uma antologia mais curta, Kurundirattu, que continha cerca de metade do número de versos. Krishnadevaraya patronizou o poeta tâmil Vaishnava Haridasa, cujo Irusamaya Vilakkam foi uma exposição dos dois sistemas hindus, Vaishnava e Shaiva, com uma preferência pelo primeiro.

Entre os escritos seculares sobre música e medicina destacam-se o Sangitsara de Vidyaranya, o Ratiratnapradipika de Praudha Raya, o Ayurveda Sudhanidhi de Sayana e o Vaidyarajavallabham de Lakshmana Pandita. A escola de astronomia e matemática de Kerala floresceu durante este período com estudiosos como Madhava, que fez importantes contribuições para a trigonometria e cálculo, e Nilakantha Somayaji, que postulou sobre os orbitais dos planetas.



Arquitetura

A arquitetura Vijayanagara, segundo o crítico de arte Percy Brown, é uma combinação vibrante e florescente dos estilos Chalukya, Hoysala, Pandya e Chola, expressões idiomáticas que prosperaram nos séculos anteriores. O seu legado de escultura, arquitetura e pintura influenciou o desenvolvimento das artes muito depois de o império ter chegado ao fim. A sua marca estilística é a Kalyanamantapa (salão nupcial), a Vasanthamantapa (salões abertos de pilares) e a Rayagopura (torre). Os artesãos utilizaram o granito duro disponível localmente devido à sua durabilidade, já que o reino estava sob constante ameaça de invasão. Um teatro ao ar livre de monumentos na sua capital, Vijayanagara, é um Património Mundial da UNESCO.

No século XIV, os reis continuaram a construir monumentos ao estilo vesara ou Deccan, mas mais tarde incorporaram gopuras ao estilo Dravida para satisfazer as suas necessidades ritualísticas. O templo Prasanna Virupaksha (templo subterrâneo) de Bukka e o templo Hazare Rama de Deva Raya, são exemplos da arquitetura Deccan. A ornamentação variada e intrincada dos pilares é uma marca do seu trabalho. Em Hampi, os templos de Vitthala e Hazara Ramaswamy são exemplos do seu estilo Kalyanamantapa em forma de pilares. Um aspecto visível do seu estilo é o seu regresso à arte simplista e serena desenvolvida pela dinastia Chalukya. O templo de Vitthala levou várias décadas a completar durante o reinado dos reis de Tuluva.


Outro elemento do estilo Vijayanagara é a talha e consagração de grandes monólitos como o Sasivekaalu (mostarda), Ganesha e Kadalekaalu (noz moída) Ganesha em Hampi, os monólitos Gommateshwara (Bahubali) em Karkala e Venur, e o touro Nandi em Lepakshi. Os templos de Vijayanagara em Kolar, Kanakagiri, Sringeri e outras cidades de Karnataka; os templos de Tadpatri, Lepakshi, Ahobilam, Tirumala Venkateswara e Srikalahasti em Andhra Pradesh; e os templos de Vellore, Kumbakonam, Kanchi e Srirangam em Tamil Nadu, todos exemplos deste estilo. A arte de Vijayanagara inclui pinturas murais como o Dashavatara e Girijakalyana (casamento de Parvati, consorte de Shiva) no Templo Virupaksha em Hampi, os murais Shivapurana (contos de Shiva) no templo Virabhadra em Lepakshi, e os dos templos Kamaakshi e Varadaraja em Kanchi. Esta mistura dos estilos do sul da Índia resultou numa nova linguagem de arte não vista em séculos anteriores, um foco em relevos para além da escultura que difere da que existia anteriormente na Índia.

Um aspecto da arquitetura de Vijayanagara que mostra o cosmopolitismo da grande cidade é a presença de muitas estruturas seculares com características islâmicas. Enquanto a história política se concentra no conflito em curso entre o império de Vijayanagara e os Sultanatos Decanos, o registo arquitetônico reflete uma interação mais criativa. Há muitos arcos, cúpulas e abóbadas que mostram estas influências. A concentração de estruturas como pavilhões, estábulos e torres sugere que eram para uso da realeza. Os detalhes decorativos destas estruturas podem ter sido absorvidos pela arquitetura Vijayanagara durante o início do Século XV, coincidindo com o domínio de Deva Raya I e Deva Raya II. Sabe-se que estes reis empregaram muitos muçulmanos no seu exército e corte, alguns dos quais podem ter sido arquitetos muçulmanos. Esta troca harmoniosa de ideias arquitetônicas deve ter acontecido durante períodos raros de paz entre os reinos hindu e muçulmano. A “Grande Plataforma” (Mahanavami Dibba) tem esculturas em relevo nas quais as figuras parecem ter os traços faciais dos turcos da Ásia Central que eram conhecidos por terem sido empregados como assistentes reais.



quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

POR QUE NAÇÕES FRACASSAM


ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Por Que as Nações Fracassam. Editora Campus, 2012. (357 páginas)


- A inovação tecnológica contribui para a prosperidade das sociedades humanas, porém implica sempre em processos de substituição do antigo pelo novo, destruindo privilégios econômicos e poder político de alguns para os dar a outros. Para haver crescimento econômico sustentado, são necessárias viabilizações para a implementação de novas tecnologias e novas maneiras de fazer as coisas. Sempre haverá barreiras a esta destruição criativa por parte daqueles que trabalham com as antigas tecnologias, que enxergam seus meios de subsistência ameaçados.

- Na Idade Média, Veneza era muito provavelmente o lugar mais rico do mundo. Tendo conquistado a sua independência em 810 d.C., num momento no qual a economia da Europa estava se recuperando do declínio sofrido pelo colapso do Império Romano, com a reconstrução de poderes políticos centrais fortes que proporcionavam maior estabilidade, segurança e expansão comercial, Veneza tinha uma posição geográfica privilegiada da qual tirou proveito. Posicionada bem no meio do Mar Mediterrâneo, seus portos estavam cheios de especiarias chegadas do Oriente, produtos de fabricação bizantina, e um intenso comércio de escravos, fatores que lhe proporcionavam uma intensa circulação monetária e muitas oportunidades de negócio. Um dos principais fundamentos de sua expansão econômica foi uma série de inovações contratuais inclusivas, sendo a mais célebre a "commenda", um tipo rudimentar de sociedade anônima constituída por tempo determinado, durante uma determinada missão comercial. Envolvia basicamente dois sócios, um sedentário que permanecia sempre em Veneza e outro em movimento constante, que saía junto com as missões comerciais. O sedentário era quem injetava a maior parte do capital na empreitada (o financiador). Os lucros eram divididos de duas formas, dependendo do contrato assinado: na commenda unilateral, o financiador colocava 100% dos recursos e ficava com 75% dos lucros, e na commenda bilateral, o financiador entrava com 67% do capital e ficava com 50% do lucro. Estes modelos de negócio proporcionaram enriquecimento a uma ampla quantidade de jovens com espírito empreendedor, num modelo que ampliou a participação da fatia da sociedade que tinha acesso às decisões políticas.

- Em 1.445 d.C., na cidade germânica de Mainz, Johannes Gutenberg levou a público uma inovação com profundas consequências para a histórica econômica posterior: uma prensa tipográfica baseada em tipos móveis. Até então os livros precisavam ou ser copiados à mão por escribas, processo muito lento e laborioso, ou eram xilogravados, com uma peça de madeira entalhada específica para cada página. Os livro eram poucos e esparsos, e caríssimos. Depois da inovação de Gutenberg as coisas começaram a mudar. Os livros, agora impressos, aumentaram em número e disponibilidade. Sem tal inovação, a alfabetização e a escolaridade em massa teriam sido impossíveis. Mas foram muitas as sociedades que não aceitaram esta novidade e impediram por muito tempo a sua implementação. Aquelas que superaram as resistências e se abriram à nova técnica, obtiveram uma enorme vantagem competitiva e alcançaram um patamar de desenvolvimento diferenciado a partir de então.

- Por volta de 1500, quando os europeus chegaram às Américas, a densidade populacional na região que veio a ser os Estados Unidos, exceto por alguns bolsões, era no máximo de 3/4 de pessoa a cada 2,5 quilômetros quadrados, enquanto que na região central do que hoje é o México, e na região da Cordilheira dos Andes onde hoje está o Peru, chegava a 400 pessoas para a mesma área, um número mais de 500 vezes maior. Quando espanhóis e portugueses impuseram seus modelos de colonização das áreas mais densas das Américas, que eram onde estavam as maiores riquezas a serem extraídas, erigiram sociedades sobre a exploração das populações nativas locais, criando monopólios, bloqueando incentivos econômicos e concentrando o poder em grandes latifúndios. Enquanto isto, nas áreas menos densamente povoadas e sem tantos atrativos econômicos a serem explorados, a colonização quando houve foi mais tardia e em outras bases socioeconômicas, onde as riquezas estavam mais igualitariamente distribuídas. As instituições políticas e econômicas extrativistas implementadas pelos colonizadores na América Latina afetaram a capacidade de desenvolvimento da região: as regiões neste subcontinente que se saíram relativamente melhor foram aquelas negligenciadas por Espanha ou Portugal, onde não havia uma grande concentração de população nativa ou riquezas minerais. As partes menos desenvolvidas da América Latina no Século XXI são justamente aquelas que representavam a maior pujança econômica tanto para espanhóis quanto para portugueses nos Séculos XVIII e XIX.

- Os países mais ricos se desenvolveram porque seus cidadãos derrubaram aqueles que centralizavam o poder autoritariamente e criaram uma sociedade em que os direitos políticos foram distribuídos de forma muito mais ampla, onde o governo tinha de prestar contas de seus atos a seus cidadãos, e onde a grande massa da população tinha condições de tirar vantagem das oportunidades econômicas. Em 1688, os ingleses promoveram uma revolução que transformou sua política e, por conseguinte, a economia do país. As pessoas lutaram por mais direitos políticos e os conquistaram, usando-os para expandir suas oportunidades econômicas. O resultado foi uma trajetória essencialmente distinta que culminaria anos depois na Revolução Industrial. Houve mais acesso de uma maneira sem precedentes em relação ao tempo no qual as políticas públicas eram centralizadas pela Coroa Britânica, com os membros do Parlamento sendo eleitos. Ainda que menos de 2% da população tivesse acesso ao voto, já que a Inglaterra estava muito longe de ser uma democracia naquele momento, e tal acesso tenha gerado apenas um pequeno grau de responsividade, só o fato de ter havido uma abertura para que qualquer um pudesse enviar petições ao Parlamento - petições que se multiplicaram exponencialmente - e que este de fato avaliasse e votasse cada petição recebida, os efeitos da ascensão do pluralismo a partir de 1688 mudou os rumos da Grã-Bretanha. Ademais, formulou-se um registro de arrecadação muito bem elaborado a partir de 1710, com um tão notável grau de supervisão da sociedade pelo Estado que superava já naquele momento, e em muito, à capacidade dos governos de mais da metade dos países do planeta no Século XXI, mais de três séculos depois. Outro elemento significativo foi que após 1688 o Estado começou a depender mais do talento e menos de indicações de cunho político, desenvolvendo uma complexa infraestrutura para administrar ao país.

- As grandes revoluções econômicas na Inglaterra que determinaram a Revolução Industrial, foram precedidas por uma revolução política que produziu um conjunto específico de instituições muito mais inclusivas do que as encontradas em qualquer sociedade anterior. O apogeu dessas querelas institucionais dos Séculos XVI e XVII se deu em dois eventos-chave: a Guerra Civil entre 1642 e 1651, e sobretudo a Revolução Gloriosa de 1688, a qual restringiu os poderes do rei, e abriu o sistema político para um amplo corte transversal, aumentando a parcela da sociedade capaz de exercer uma considerável influência sobre o funcionamento do Estado, incentivando os investimentos, a rede de comércio e as inovações. Os direitos de propriedade e de patentes foi assegurado com firmeza - sendo o que estimulou a inovação - e a lei e a ordem foram rigidamente garantidas, facilitando a construção da infraestrutura de estradas, canais e ferrovias, o que seria crucial para a expansão industrial. Grandes inventores, como James Watt (que aprimorou o motor a vapor), Richard Trevithick (construiu a primeira locomotiva a vapor), Richard Arkwright (inventor da máquina de fiar algodão hidráulica) e Isambard Kingdom Brunel (construtor de vários navios a vapor revolucionários) puderam aproveitar as oportunidades econômicas geradas por suas ideias, confiando que seus direitos como inventores seriam respeitados e não apropriados por terceiros. Se no começo do Século XVIII eram necessárias 50.000 horas para fiar à mão 45 quilos de algodão, a máquina hidráulica de Arkwright era capaz de realizar o mesmo volume de trabalho em 300 horas, as inovações de James Hargreaves em 1764 e Samuel Crompton 1779 permitiram que o mesmo trabalho fosse feito em 135 horas. Tudo na Revolução Industrial foi fruto de uma sequência de escolhas bem feitas, decisões conjuntas que viabilizaram a construção de um caminho próspero de desenvolvimento.

- A conquista da prosperidade depende da resolução dos problemas políticos mais básicos. É exatamente por partir do pressuposto de que os problemas políticos já foram solucionados que a economia se torna incapaz de apresentar uma explicação convincente para as desigualdades de renda e desenvolvimento mundiais, para a qual é necessário a compreensão de como os diferentes tipos de políticas e acordos sociais afetam os comportamentos econômicos. São as instituições inclusivas, e não extrativistas, aquilo que fomenta a atividade econômica, gerando aumento de produtividade e prosperidade coletiva. Os direitos de propriedade são cruciais, uma vez que somente quem os tiver assegurados vai se dispor a investir para aumentar a produtividade. Quem acredita que corre o risco de ter a sua produção usurpada ou exageradamente tributada terá pouco incentivo para trabalhar e gerar uma maior produtividade e, por conseguinte, uma maior multiplicação de renda, não tendo assim incentivos para investir e inovar. Mas é fundamental que tais direitos estejam garantidos para a ampla maioria da sociedade. Para esta multiplicação produtiva, é necessário que se assegure serviços públicos, leis, direitos de propriedade e de liberdade de firmar contratos e construir relações de troca, com uma instituição (o Estado) detentora de uma capacidade coercitiva de impor a ordem, impedir roubos, fraudes, corrupção, ou qualquer outra forma de desvio de recursos. Numa dinâmica coletivamente inclusiva, as pessoas têm a liberdade para realizar em sua vida as suas vocações mais adequadas aos seus talentos. Quem tiver boas ideias, as direcionarão a atividades que aumentarão a produtividade e multiplicarão a riqueza coletiva, as menos eficientes serão substituídas pelas mais eficientes.

- São pequenas diferenças o que fazem a diferença, com um acúmulo de escolhas que vão se somando e criam um processo de distanciamento. Do mesmo modo que as diferenças entre duas populações isoladas de organismos vão gradualmente se aprofundando - em um processo de diferenciação genética devido a um acúmulo de mutações - duas sociedades similares acumulam diferenças no tempo que as distanciam em termos de organização e desenvolvimento, sem um caminho pré-determinado. Não é um processo linear, pois como todo processo humano envolve avanços e retrocessos, mas após um longo período de tempo, o peso da balança entre escolhas certas e erradas pende para um lado, definindo o grau de evolução organizacional e, por conseguinte, o padrão de desenvolvimento.

- Por três séculos a Europa foi amplamente regida por monarquias absolutistas. Os aristocratas (a nobreza) compunham o Primeiro Estado, o clero (a igreja) compunha o Segundo Estado, e todos os demais formavam o Terceiro Estado, com cada um destes três estados sujeitos a diferentes leis. A nobreza e o clero não pagavam impostos, enquanto sobre todos os demais cidadãos incidiam os mais variados tributos. O monarca e a realeza (família real), a nobreza e o clero desfrutavam de um estilo de vida luxuoso, ao passo que o restante da população vivia na mais abjeta pobreza. A vida nas cidades do Século XVIII era árida e insalubre, e nas aldeias fora da cidade era provavelmente ainda pior. Este regime começou a ruir com a Revolução Francesa. Em 4 de agosto de 1789, as leis na França foram totalmente reformuladas por uma Assembleia Nacional Constituinte; os impostos passaram a incidir sobre todo cidadão e toda e qualquer propriedade, sob uma carga tributária proporcional e universal. Várias décadas de instabilidade e beligerância se seguiram após estas deliberações, acarretando muita violência, sofrimento, instabilidade e guerras; não obstante, foi graças a ela que os franceses não se viram atados a instituições extrativistas que lhes bloqueavam o crescimento econômico e a prosperidade coletiva.

- A deterioração do sistema monárquico na França vivia de um longo processo de deterioração em função de uma carga tributária cada vez mais agressiva e onerosa. A Guerra dos Sete Anos contra a Inglaterra, entre 1756 e 1763, na qual a França perdeu o Canadá para os ingleses, foi particularmente onerosa. Para tentar reverter as consequências da crise política, em 1789 uma Assembleia de Notáveis, que não conseguiu construir um consenso, decretando que só um órgão mais representativo, os Estados-Gerais - que não eram convocados desde 1614 -, poderia construir uma reforma que equacionasse os problemas franceses. Quando este se reuniu em Versalhes, ficou claro que não seria possível se chegar a nenhum acordo, havia um impasse intransponível, com a reunião encerrada em 5 de maio de 1789. Em 9 de julho foi convocada então uma Assembleia Nacional Constituinte. Os ânimos pelo país iam se exaltando, e em 14 de julho (portanto, cinco dias depois) houve a Queda da Bastilha e o início de uma revolução popular. Em 4 de agosto a Assembleia promulgou a Nova Constituição, que abolia os privilégios especiais do Primeiro e do Segundo Estados. Seguiu-se uma radicalização, com a organização de diferentes clubes políticos locais, dentre os quais se destacou os Jacobinos, que assumiria às rédeas da revolução. A versão definitiva da Constituição foi promulgada somente em 29 de setembro de 1791, convertendo a França numa monarquia constitucional sob igualdade de direitos a todos os homens. A dinâmica da revolução se viu irreversivelmente modificada pela guerra que irrompeu em 1792 entre a França e a "Primeira Coalizão" de nações monarquistas-absolutistas liderada pela Áustria. O resultado foi o período chamado de "Terror" sob o comando da facção jacobina liderada por Maximilien de Robespierre e Louis Antoine de Saint-Just, no qual foram executados na guilhotina o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta, um enorme número de aristocratas e contra-revolucionários, e mesmo personagens centrais da própria revolução como os líderes populares Brissot, Danton e Desmoulins, que ao final não foram considerados suficientemente radicais. O Terror logo saiu de controle, e em julho de 1794 terminou na execução também dos líderes jacobinos Robespierre e Saint-Just. A ordem foi aos poucos sendo restabelecida por um Diretório, do qual fazia parte uma liderança que se destacou, o general Napoleão Bonaparte, cuja influência cresceu a partir de 1799, com as suas vitórias na Guerra da Segunda Coalizão, que durou até 1801. A França sob a liderança militar de Napoleão passou então a derrubar todas as demais monarquias a seu redor na Europa até 1815, quando o exército de Napoleão foi derrotado pela Inglaterra.

- Instalado o terror, não é toda a sociedade que consegue se reerguer e se reorganizar para retomar um rumo próspero; um claro exemplo disto são os países da África que passaram por guerras civis na segunda metade do Século XX - como foram os casos de Angola, Camarões, Chade, Congo, Libéria, Serra Leoa, Sudão e Zimbabwe - que ao final de tais conflitos não conseguiram regressar ao padrão social e econômica que detinham antes do início de tais guerras.

- As Guerras Napoleônicas e as decorrentes vitórias impostas aos sistemas monárquicos de seus vizinhos europeus, levaram a uma fragilização política que teve consequências nas Américas, levando ao fim do colonialismo na região, onde apenas os Estados Unidos eram independentes, desde 1776. O enfraquecimento dos poderes monárquicos levou a processos de independência de Equador em 1809, Chile e México em 1810, Venezuela e Paraguai em 1811, Argentina em 1816, Peru e Colômbia em 1821, Brasil em 1822, e Bolívia em 1825. Entretanto, o Brasil tem uma particularidade frente a todos os demais casos, pois sua independência não foi conquistada por líderes burgueses republicano-democratas influenciados pelos ideais da Revolução Francesa, senão por um monarquista membro da realeza - Dom Pedro I, filho do rei de Portugal, Dom João VI - com ideais republicano-democratas só vindo a ser implementados no país em 1889. Esta exceção se deu porque houve um único caso de fuga de Família Real na história para fora da Europa, quando em 1808 a realeza junto a pouco menos de 15.000 membros da nobreza abandonaram Lisboa, em Portugal, fugindo de Napoleão Bonaparte e seu exército, e rumaram para o Rio de Janeiro, que foi alçado a capital do Império Português.

- O segmento da população que havia ascendido ao poder arrostando o direito divino dos reis concedido por entidades inumanas superiores, pressionado por agitações sociais crescentes, iniciou um processo de concessão de direitos a uma pequena minoria. Tanto na Inglaterra quanto na França, as aberturas a um maior pluralismo ainda não tinham gerado uma democracia de fato. A maioria dos homens adultos não tinha acesso ao voto, e nenhuma mulher o tinha. A marcha rumo à democracia foi lenta. Na Grã-Bretanha, as reformas de 1832 foram modestas, limitando-se a duplicar o direito de voto de aproximadamente 8% para cerca de 16% da população de homens adultos (de cerca de 2% para 4% da população total). Somente a Segunda Lei da Reforma, de 1867, finalmente alçou a classe trabalhadora à condição de maioria em todas as zonas eleitorais urbanas. O eleitorado novamente voltaria a dobrar de tamanho com a Terceira Lei da Reforma, de 1884, quando o direito de voto chegou a 60% dos homens adultos. Após a Primeira Guerra Mundial, a Lei de Representação Popular, de 1918, estendeu o direito de voto a todos os homens acima de 21 anos e a toda mulher acima de 30 que fosse casada com um deles. E logo após, em 1928, as mulheres receberiam os mesmos direitos de voto que os homens detinham. Esta transformação gradual na Inglaterra evitou uma derrubada violenta do sistema como as ocorridas na França e na Rússia, onde o custo, em ambos os casos, de se necessitar reconstruir algo inteiramente novo no lugar do que foi removido e destruído, teve consequências pesadas através de um alto número de vítimas mortas, ou pela violência ou pela fome, decorrentes das crises instauradas nestes países.

- Em 14 de outubro de 1867, Okubo Toshimichi um dos principais cortesões do domínio de Satsuma, no Japão feudal, chegou desde a capital japonesa (então chamada Edo, e posteriormente renomeada como Tóquio) até Yamaguchi, onde se reuniu com os líderes do domínio Choshu, com o objetivo de juntar forças para derrubar o xogum, governante supremo do país. Toshimichi já tinha o apoio dos domínios Tosa e Aki para executar seu plano. A união destes quatro domínios foi chamada de Aliança Satcho. A família Tokugawa, uma classe de senhores feudais que administrava e tributava seus domínios, controlava o país desde 1600, e junto a seus vassalos militares, os temidos samurais, dirigiam uma sociedade muito similar à da Europa medieval, com categorias ocupacionais rígidas e elevada carga tributária sobre os agricultores. A Aliança Satcho desejava derrubar o xogunato feudal, acabar com os monopólios de comércio com o exterior, e transformar o Japão em um estado moderno. O xogum Yoshinobu acabou renunciando, e em 3 de janeiro de 1868 foi declarada a Restauração Meiji. Ainda assim se seguiu uma guerra civil, que se estendeu por meses até que os Tokugawa fossem completamente derrotados. Em 1869 o feudalismo foi definitivamente abolido no Japão, com a tributação centralizada num novo estado democrático. A classe dos samurais foi extinta. Em 1890, O Japão foi o primeiro país da Ásia a adotar uma Constituição escrita e a estabelecer uma monarquia constitucional, com Parlamento eleito por voto direto e um Poder Judiciário independente. 

- As nações fracassam quando suas instituições econômicas não conseguem engendrar os incentivos necessários para que as pessoas poupem, invistam e inovem. Os caminhos da história não são destino, são resultado das escolhas que foram feitas ao longo do processo de caminhada, pois as melhorias nunca são automáticas nem fáceis, sendo consequência de uma confluência de fatores e de amplas coalizões que pressionem para que a prosperidade aconteça. Instituições políticas e econômicas que assegurem direitos e condições o mais igualitárias possíveis para os acessos a recursos, e estabeleçam e lei e a ordem, incentivam assim a realização de investimentos, que são os geradores de prosperidade. E para que tal desenvolvimento seja sustentado no tempo, o processo requer inovações, as quais não podem ser dissociadas de destruições criativas, as quais sempre tendem a desestabilizar as relações estabelecidas de poder na esfera política. A capacidade de sustentação deste processo ao longo do tempo foi o que segmentou as civilizações que prosperaram daquelas que não o fizeram. Do mesmo modo como os genes de duas populações isoladas de organismos vão se diferenciar pouco a pouco, em virtude de mutações aleatórias no chamado processo de diferenciação evolutiva ou genética, duas sociedades que sob outros aspectos são similares também se diferenciam em termos institucionais ao longo do tempo também devagar, através da maturação de pequenos detalhes que impulsionem prosperidade e evolução.


quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Cronica Universalis: a primeira referência sobre terras nas Américas no centro da Europa


Um texto redescoberto em 2013, revelou que escritos antigos indicam que marinheiros de Gênova - a cidade natal italiana onde teria nascido Cristóvão Colombo - já tinham escutado referências a terras a oeste da Groenlândia, em área onde está a América do Norte, por volta de 1340 d.C. (a estimativa é de que tal texto tenha sido escrito no período entre 1339 e 1345) ou seja, 150 anos antes da famosa "Descoberta de Colombo".

O autor deste antigo documento do Século XIV foi o frade milanês Galvaneus Flamma (Galvano Fiamma, em italiano) - um padre da ordem dominicana - cujo texto foi destacado em publicação do professor Paolo Chiesa, do Departamento de Estudos Literários, Filologia e Linguística da Universidade de Milão, um especialista em literatura latina medieval.

Em 2013 foi Sante Ambrogio Céngarle Parisi - professor italiano laureado em literatura grega antiga, e um especialista em história da cartografia - quem identificou, pela primeira vez, a "Cronica Universalis", chamando atenção para a obra, um manuscrito escrito por um copista chamado Pietro Ghioldi (Petrus de Guioldis, em latim) também responsável pela transcrição de outras obras históricas de Galvaneus Flamma.

Os manuscritos das obras de Galvaneus transcritos por Ghioldi são frequentemente defeituosos, não tanto por sua inadequação como copista, mas sim porque ele teve que lidar com modelos inconsistentes. Há evidências de que ele usou alguns manuscritos incompletos e inacabados deixados por Galvaneus, documentos muitas vezes difíceis de ler e repletos de notas marginais e imprecisões.

Nessa situação, Ghioldi cometeu muitos erros ao transcrever palavras incomuns (por exemplo, nomes pessoais e geográficos) e deixou em aberto vários problemas na estrutura geral do trabalho (duplicações de frases, falta de números de capítulos, referências cruzadas internas incongruentes, etc). No entanto, ele era um copista profissional e bastante correto onde as palavras em latim eram mais facilmente compreensíveis ou quando o antígrafo era inequivocamente legível. Na verdade, a atitude de Ghioldi em relação ao texto testemunha a favor de uma fidelidade substancial aos modelos originais de Galvaneus.

Galvaneus Flamma era ligado a uma família que governava sua região, e deixou escritas várias obras literárias em latim, principalmente sobre temas históricos. Ele nasceu em 1283 e viveu na cidade de Milão, onde tinha relação estreita com a Casa de Visconti, que então governava a cidade. Segundo seu texto, tais terras eram denominadas Marckalada (nome provavelmente reproduzido assim pelos marinheiros italianos que receberam tais relatos como uma derivação de Markland, que era o nome dado pelos nórdicos).

Paolo Chiesa apresentou tais evidências em uma publicação na revista científica Terrae Incognitae. Como ele mesmo definiu: "Estamos na presença da primeira referência ao continente americano na região do Mediterrâneo, ainda que de forma embrionária". São evidências sem precedentes de que notícias sobre terras onde hoje é o continente americano circularam na região do Mar Mediterrâneo um século e meio antes de Cristóvão Colombo chegar a ele. O texto faz menção a informações citadas por marinheiros genoveses recebidas de fontes islandesas a respeito de terras a oeste da Groenlândia; estima-se que se referindo a terras na região de Labrador ou Terra Nova, onde hoje está o Canadá.

Estas referências aparecem num texto intitulado "Cronica Universalis", que seria possivelmente uma das últimas obras de Galvaneus Flamma – talvez a última – pois foi deixada inacabada e sem aperfeiçoamento. Seu objetivo com ela era detalhar a história de todo o mundo, desde a "Criação" até aqueles dias. As citações eram rumores vagos que teriam chegado a Gênova sobre tais terras, tanto que não foram consideradas suficientemente consistentes a ponto de entrar nas representações cartográficas ou acadêmicas da época como uma nova terra. A menção a Marckalada aparece no terceiro livro de "Cronica Universalis", quando o autor insere uma longa digressão geográfica referente a áreas consideradas exóticas: extremo oriente, terras árticas, ilhas oceânicas e a África.

A Marckalada descrita por Galvaneus era "rica em árvores" e animais viviam lá. Esses detalhes podem ser padrão - como distintivos de qualquer boa terra - mas não são triviais, porque a característica comum das regiões do norte que eram conhecidas naquela época pelos genoveses comuns eram de terras desoladas e áridas, como na verdade a Groenlândia foi descrita no relato de Galvaneus, ou como a Islândia foi descrita por Adão de Bremen.

As cartas portulanas (náuticas) do Século XIV, desenhadas em Gênova e na Catalunha, já ofereciam uma representação geográfica mais avançada do norte, o que certamente foi alcançado por meio de contatos diretos com essas regiões dos Mares do Norte. Estas noções sobre o noroeste provavelmente chegaram a Gênova por meio das rotas de navegação para as Ilhas Britânicas e para as costas continentais do Mar Ártico. Foram os casos da carta de João de Carignano e de Angelino Dulcert, que é considerado o elo entre a prática cartográfica de Gênova e a de Mallorca.

Em "Cronica Universalis", Galvaneus declara em todo o documento onde ouviu falar de histórias orais, e apoia suas afirmações com elementos extraídos de relatos (lendários ou reais) pertencentes a tradições anteriores em diferentes terras, mesclados juntos e reatribuídos a um local específico.

Não haveria evidências de que marinheiros genoveses ou catalães tenham chegado à Islândia ou à Groenlândia naquela época, mas eles certamente foram capazes de adquirir mercadorias daquela origem do norte da Europa para serem transportadas para a região do Mar Mediterrâneo. Neste contexto, os genoveses devem ter levado à sua cidade notícias espalhadas sobre estas terras - mais uma vez: algumas reais e outras fantasiosas e lendárias - que ouviram nos portos do norte de marinheiros escoceses, britânicos, dinamarqueses e noruegueses com quem eles estavam negociando.

Este novo contexto compõe uma peça a mais na história para se somar às evidências da presença dos Vikings na América do Norte. Desde a Década de 1960, sabe-se que os Vikings chegaram ao continente pelo norte antes de que a expedição de Cristóvão Colombo partisse da Espanha e chegasse à América Central em 1492. Um sítio nórdico na América, o "L’Anse aux Meadows", foi descoberto como sendo um local de assentamento Viking datado de em torno de 1.000 d.C., região que diversas fontes escritas, especialmente islandesas, mencionaram como Markland. Um texto de 1340 fazendo menção a terras chamadas Marckalada a oeste da Groenlândia - uma palavra com uma inquestionável semelhança gramatical com Markland - e ainda fazendo citação a tradições de conhecimento oral adquiridas por italianos que tinham tido contatos com marinheiros do norte da Europa, é uma evidência fortíssima a mais sobre a presença de europeus na América muito antes de Colombo.

Só há uma única cópia existente do livro Cronica Universalis, tendo ela sido rastreada por pesquisadores até um colecionador particular em Nova York. A equipe liderada por Paolo Chiesa pode visualizar o manuscrito, e com autorização do possuidor de tais documentos, pode preservá-lo através de imagem digital. Durante a tradução do texto, a equipe se deparou com a passagem em questão: "Mais para o oeste há outra terra, chamada Marckalada, onde vivem gigantes. Nesta terra, há construções com placas de pedra tão enormes que ninguém poderia construí-las, exceto enormes gigantes. Há também árvores verdes, animais e uma grande quantidade de pássaros".

Aqui o trecho ainda permite uma abertura para especulação. Ao mencionar "construções de pedras enormes que só poderiam ser feitas por gigantes", e sabendo-se que não há indícios de pirâmides de pedra de civilizações antigas na região do Canadá, estando estas em abundância mais ao sul, em terras onde hoje está o México, seria natural especular até onde estes marinheiros nórdicos poderiam ter descido pelo litoral da América do Norte. Mas não há qualquer evidência ainda que faça desta possibilidade algo mais do que mera especulação.

Enquanto novas evidências são buscadas para complementar este quebra-cabeças, o que a história tradicional conta é que Cristóvão Colombo (Cristoforo Colombo em italiano, Christophorus Columbus em latim, ou Cristóbal Colón em espanhol) navegou financiado pela Coroa Espanhola, partindo de Palos de la Frontera, na Espanha, em 3 de agosto de 1492, com o objetivo de dar a volta ao globo e chegar à Índia, tendo aportado em 12 de outubro numa ilha centro-americana. Ele fez outras três viagens às Américas, em 1493, 1498 e 1503, e veio a falecer em 1506 em Valladolid seguro de ter chegado à Índia. Por isso dizem que Cristóvão Colombo partiu sem saber para onde estava indo, aportou sem saber onde tinha chegado, e voltou sem saber explicar aonde havia estado.

Foi o florentino Américo Vespúcio o explorador que estabeleceu o conceito revolucionário de que as terras para as quais o genovês havia navegado eram parte de um continente separado. Ele fez parte de uma expedição financiada pela Coroa Portuguesa que em 1502 percorreu o litoral do Brasil. Quando regressou à Europa, escreveu um livro descrevendo sua viagem que se tornou um 'best seller'. Suas descrições referentes a um vasto litoral não deixavam dúvidas de que se tratava de um novo continente. Foi um mapa criado em 1507 pelo franco-alemão Martin Waldseemuller o primeiro a ter representado o novo continente já batizando-o com o nome de América, em alusão às desrições de Vespúcio.

Por isso há todo um significado e uma importância especial em existir um relato escrito por volta de 1340 fazendo referência a terras mais a oeste com temperatura mais amena do que as gélidas existentes no Mar do Norte. E é muito relevante que tão antes do que é contado pela história tradicional haja um relato assim na região do Mediterrâneo, sendo uma forte evidência de circulação precoce, fora da área nórdica, de informações sobre terras a oeste da Groenlândia. Ninguém na Europa no Século XIV tinha consciência de que tais terras formavam um outro continente inteiro, e o relato em Cronica Universalis em nada muda isto. Este não é o fator mais relevante - embora certamente será o gancho principal para as notícias sensacionalistas em torno do texto de 1340 - pois não havia qualquer conhecimento em 1340 de que Markland, ou Marckalada, fazia parte de um enorme continente.

O ponto é que o testemunho de Galvaneus Flamma é valioso para se obter informações sobre fatos contemporâneos milaneses, dos quais ele tem conhecimento de primeira mão. Quando Galvaneus lida com o passado ou com contextos não milaneses, ele reúne informações de diferentes fontes sem julgamento crítico. É muito difícil estimar que espécie de rumores circularam pelo Mar Mediterrâneo entre os ricos centros econômicos de Gênova, Florença e Milão entre 1340 e 1492, quando os avanços tecnológicos a respeito da navegação oceânica haviam germinado na Península Ibéria, nos reinos de Portugal e da Espanha.

O escritor também é ciente das noções científicas medievais sobre zonas climáticas e interessa-se em desenvolver em "Cronica Universalis" discussões teóricas sobre a habitabilidade de terras não temperadas. Ele considera ambas as terras - do sul e do norte - a fim de demonstrar que as pessoas também viviam ali. É neste contexto que ele menciona Marckalada: "[Nossas] autoridades dizem que, sob o Equador, existem montanhas muito altas, onde há assentamentos temperados, possibilitados pelos ventos, ou pela sombra das montanhas, ou pela notável espessura das paredes, ou por cavernas subterrâneas nos vales. No Equador, também existem muitas ilhas que são bem temperadas por causa dos rios, ou dos pântanos, ou dos ventos, ou por motivos que desconhecemos. E por uma razão semelhante, existem assentamentos abaixo ou ao redor do Polo Ártico, apesar do frio muito intenso. Esses assentamentos são tão temperados que as pessoas não podem morrer lá: este fato é bem conhecido na Irlanda. As razões pelas quais isso acontece são desconhecidas para nós. Marco Polo fala explicitamente sobre isso, quando diz que há um certo deserto de 40 dias onde nada cresce, nem trigo nem vinho, mas o povo vive da caça de pássaros e animais, e monta veados. Mais ao norte fica o oceano, um mar com muitas ilhas onde vive uma grande quantidade de falcões-peregrinos e gerifaltes. Essas ilhas estão localizadas tão ao norte que a estrela polar permanece atrás de você, em direção ao sul. Os marinheiros que frequentam os mares da Dinamarca e da Noruega dizem que ao norte, além da Noruega, fica a Islândia; mais adiante, há uma ilha chamada Groenlândia, onde a Estrela Polar permanece atrás de você, em direção ao sul. O governador desta ilha é um bispo. Nesta terra não há trigo, nem vinho, nem fruta; as pessoas vivem de leite, carne e peixe. Moram em casas subterrâneas e não se aventuram a falar alto ou a fazer barulho, por medo de que os animais selvagens as ouçam e as devorem. Lá vivem enormes ursos brancos, que nadam no mar e trazem marinheiros naufragados para a costa. Lá vivem falcões brancos capazes de grandes voos, que são enviados ao imperador de Katai. Mais a oeste, há outra terra, chamada Marckalada, onde vivem gigantes; neste terreno, existem edifícios com lajes de pedra tão grandes que ninguém poderia construí-los, exceto enormes gigantes. Também há árvores verdes, animais e uma grande quantidade de pássaros. No entanto, nenhum marinheiro foi capaz de saber algo com certeza sobre esta terra ou sobre suas características".

Por todos esses fatos, é claro que existem assentamentos no Polo Ártico. O primeiro argumento diz respeito a terras onde moram pessoas, apesar da suposta temperatura elevada. Sobre este ponto, Galvaneus deriva sua informação daqueles a quem, geralmente, chama de "auctores", isto é, à tradição geográfica passada à Idade Média desde a Antiguidade Tardia, representada por Solino e Isidoro, e mais recentemente por Bartolomeu da Inglaterra, Alberto Magno, Benzo de Alexandria, e outros.

No que diz respeito às terras do norte, a autoridade maior é Marco Polo, que é citado de forma explícita, especialmente a sua descrição das regiões ao norte de Karakorum, a cidade real dos mongóis. Relatamos a passagem correspondente na tradução latina (antes de 1320) do frade dominicano Francesco Pipino. Essa versão, muito difundida, parece ter sido a fonte direta de Galvaneus, que também era dominicano.

Mas uma parte de Cronica Universalis não depende de Marco Polo, nela Galvaneus afirma que "marinheiros que frequentam os mares da Dinamarca e da Noruega" fornecem informações sobre algumas terras do extremo norte: Yslandia e em seguida Groenlândia, cuja posição geográfica pode ser deduzida pelo uso do advérbio "inde" (ou seja, "além da Islândia na mesma direção") e que é descrita como o extremo norte, onde a estrela polar é deixada para trás.

Daí se supõe que os marinheiros sejam também a fonte da última passagem, dedicada a Marckalada, que se diz estar a oeste da Grolandia (Groenlândia). Ao contrário das informações sobre Yslandia e Grolandia (Groenlândia), as notícias sobre Marckalada são decididamente vagas. Há boatos, mas nada com certeza: "nec umquam fuit aliquis marinarius qui de ista terra nec de eius condictionibus aliquid scire potuerit pro certo"; ou seja, nenhum marinheiro nunca pôde saber nada de certo sobre esta terra ou as suas características.

As terras chamadas Yslandia e Grolandia não apresentam problemas de identificação, uma vez que são facilmente reconhecíveis como Islândia e Groenlândia. Quanto à terra mencionada Marckalada, ela não é especificamente definida "ínsula", como Galvaneus faz para a Groenlândia. Nenhuma outra terra parece poder ser levada em consideração, exceto Markland, mencionada em um número escasso de fontes medievais, todas provenientes da Islândia e, de fato, colocando-a ao sudoeste da Groenlândia.

A maioria das pequenas diferenças de ortografia entre Marckalada, de Galvaneus, e o islandês Markland, não representam um problema: é impossível saber se tais diferenças derivam das fontes de Galvaneus ou se deveriam ser atribuídas ao próprio Galvaneus ou ao copista do manuscrito. Como já dito, Ghioldi muitas vezes escreveu erroneamente nomes pessoais e geográficos com os quais não estava familiarizado, mas transcreveu fielmente seus modelos onde a formulação era simples.

Aparentemente este é o caso: o copista pode ter escrito errado o nome da terra, mas não há razão para pensar que ele modificou o resto da frase, um comportamento que seria incomum para ele. O único elemento da grafia que nos parece estranho é o grafema "ck", extremamente raro nos manuscritos italianos do Século XIV e único em toda a Cronica Universalis. O uso de -ck- implica uma pronúncia anômala (reforçada ou acentuada) do som gutural. É improvável que esse traço incomum e isolado seja uma criação de Galvaneus ou de Ghioldi, e a sua singularidade gera a suspeita de que dependa da persistência de uma fonte anterior.

Todas as fontes nórdicas medievais que mencionam Markland são bem conhecidas pelos estudiosos, que concordam em identificá-la como alguma parte da costa atlântica da América do Norte, onde islandeses e groenlandeses fizeram explorações e assentamentos marginais, como já foi demonstrado por evidências arqueológicas. Markland costuma ser geralmente considerada como sendo Labrador ou Terra Nova, ilhas Helluland, Baffin ou Labrador, Vinland, ou algum litoral mais ao sul.


A menção a Marckalada/Markland por Flamma é um novo testemunho sobre esta região a se somar aos poucos já conhecidos e herdados das Sagas Vikings. O que torna a passagem excepcional é a sua proveniência geográfica: não na região nórdica, como no caso das outras menções, mas no norte da Itália. A primeira referência ao continente americano, ainda que de forma embrionária, na zona do Mar Mediterrâneo. E voltando a entrar num campo especulativo é possível imaginar que tendo os rumores sobre tais terras sido suficientemente fortes para terem viajado toda a distância da costa nórdica até o Mediterrâneo, provavelmente tais rumores e conhecimentos estavam ainda mais presentes entre marinheiros da Grã-Bretanha, uma vez que Inglaterra, Escócia e Irlanda são geograficamente muito mais próximas a Islândia, Noruega, Finlândia, Suécia e Dinamarca, do que aos reinos situados no território que hoje forma a Itália.

Além da surpreendente referência a Markland, o conhecimento que Galvaneus mostra da Groenlândia também é notável. A esta terra, ele dedica outra passagem, onde ocorre a grafia alternativa "Gorlandia". Embora a cúria papal fosse ciente da existência da Groenlândia desde o Século XI, Galvaneus é o primeiro a dar algumas informações sobre suas características na área italiana e, de forma mais geral, em uma obra latina "científica" e enciclopédica, como é o propósito de Cronica Universalis. De onde Galvaneus consegue as suas informações sobre o norte, tão incomum para um estudioso que, até onde se sabe, nunca saiu do norte da Itália? Uma hipótese pode ser formulada levando em consideração o método usual de trabalho dele, as fontes que sabemos que ele tinha à disposição e o meio em que viveu. Galvaneus foi um escritor que se preocupou em indicar as suas fontes.

Logo no início de Cronica Universalis (e de suas outras obras historiográficas), ele fornece uma lista "bibliográfica" dos livros que explorou para montar seu tratado, declarando também a biblioteca milanesa onde consultou cada um deles. Além disto, indica escrupulosamente a fonte de cada informação relatada na crônica, citando o nome de cada autor dentro do texto e sublinhando-o, de modo que há páginas de suas obras onde encontramos dezenas de referências bibliográficas. Curiosamente, para os itens relativos à Marckalada e à Groenlândia, Galvaneus refere-se apenas a alguns "auctores" genéricos (para a discussão inespecífica sobre habitabilidade) e a Marco Polo, de quem, como já dito, ele extrai informações parciais e superficiais.

Galvaneus obteve certamente conhecimento sobre Marckalada por relatos orais, pois se ele tivesse alguma fonte escrita à sua disposição, certamente teria declarado (como costumava fazer) na "lista bibliográfica" de Cronica Universalis, o que não o fez. Compatível com as fontes orais é também a fusão de elementos extraídos de várias histórias - lendárias ou reais - pertencentes a tradições anteriores em diferentes terras, misturados e reatribuídos a um lugar específico. Além disso, Galvaneus identifica sua origem como junto a marinheiros ("marinarii qui conversantur in mari Datie et Norvegye"). Sujeitos alternativos, como peregrinos nórdicos ou clérigos de passagem por Milão a caminho de Roma para ver o papa, não podem ser obviamente excluídos, mas é uma hipótese que não corresponde à especificação de Galvaneus, pois ele não fala de peregrinos ou mesmo de clérigos em nenhuma parte da Cronica Universalis, e nem cita documentos eclesiásticos relacionados à Islândia ou à Groelândia, embora tais qualificações ou documentos teriam dado mais força ao depoimento.

Os detalhes que ele relata são consistentes com os interesses e preocupações dos marinheiros: a posição da Estrela Polar visível ao sul, a menção singular de ursos brancos trazendo marinheiros naufragados para terra, o comércio de aves de rapina, que era muito lucrativo na época, a dificuldade de chegar aos groenlandeses por causa de ondas de tempestade que danificavam os navios, tornando-os impossíveis de serem usados em uma viagem posterior. São muitas referências. Por outro lado, Galvaneus afirma explicitamente que usa uma fonte oral: embora sua descrição do Extremo Oriente se baseie em relatos escritos - em particular dos de Marco Polo, Odorico de Pordenone e João de Montecorvino - ele também relata as informações coletadas de algum Frei Simão, um dominicano que passou cinco anos nestas regiões. Ele afirma que o testemunho de "Frater Symon" é oral (dicit, narrat, habui ex ore) mas, no entanto, considerado digno de menção, mesmo em um contexto erudito como o de Cronica Universalis.

Onde Galvaneus pode ter ouvido, direta ou indiretamente, sobre a experiência dos marinheiros? Ele morava em Milão, uma cidade do interior, a qual não era exatamente um destino comum e habitual para marinheiros. A suposição então é de que ele esteja relatando informações em primeira ou segunda mão vindas de Gênova, o porto marítimo mais próximo de Milão, o principal porto e principal centro econômico no Mar Mediterrâneo naquela época. De fato, na Cronica universalis Galvaneus também mostra familiaridade com Gênova e com fontes genovesas em outros casos. Os genoveses eram de fato os grandes marinheiros por excelência para o público milanês do escritor. Uma derivação imediata de marinheiros nórdicos parece menos provável: não há evidências de viagens ou contatos dele no norte da Europa, nem vestígios de que ele tenha utilizado fontes escritas ou orais dessa proveniência direta.

O comércio entre estas regiões existia, e as informações viajavam tanto quanto as mercadorias. O tratado geográfico de al-Maghribi, escrito em algum momento entre 1250 e 1270, é uma evidência por escrito do comércio de falcões e ursos brancos que existia a partir do norte da Europa em direção ao Mar Mediterrâneo. Supõe-se que a "ilha dos falcões brancos" seja a Islândia, conhecida pelos geógrafos árabes e representada, por exemplo, no mapa mundial de al-Idrisi, sem indicar a nacionalidade dos mercadores que levaram tais pássaros ao Sultão do Egito. É difícil pensar que os genoveses negligenciaram totalmente um comércio tão lucrativo, embora não haja evidências históricas concretas que o comprovem. As notícias de Galvaneus sobre Marckalada, assim como as da menos evanescente Groenlândia, permanecem isoladas, sem que haja vestígios de uma recepção precoce, seja nos tratados geográficos latinos, seja na cartografia mediterrânea.

Sem fontes definitivas, o que se pode supor é que os gráficos e mapas não desdenham o uso de noções coletadas de fontes orais, como fazem os viajantes e comerciantes, sugerindo um cenário de informalidade: os genoveses estavam interessados em explorar os "rumores dos marinheiros" sobre as terras do extremo noroeste para eventual benefício comercial, mas esses rumores eram muito vagos para encontrar consistência em representações cartográficas ou acadêmicas. Apesar da sua posição isolada, e independentemente dos pressupostos que se possam fazer sobre a sua proveniência, a narrativa de Galvaneus testemunha a circulação de conhecimento geográfico entre o mundo nórdico e o Mediterrâneo na primeira metade do Século XIV, e traz evidências inéditas para as especulações de que notícias sobre o continente americano, oriundas de fontes nórdicas, circularam na Itália um século e meio antes de Cristóvão Colombo carpar do porto espanhol em 1492.



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